Autoridades do governo federal e lideranças do movimento indígena anunciaram, nesta quinta-feira (10), o lançamento de uma Comissão Internacional Indígena para garantir maior participação desses povos nas negociações da 30ª Conferência do Clima da ONU, a COP30, que será realizada em novembro, em Belém.
O anúncio foi feito durante a 21ª edição do Acampamento Terra Livre, a maior mobilização nacional indígena do país, que é realizado desde o início da semana, em Brasília. A comissão visa atender a uma demanda do movimento indígena brasileiro, que havia reivindicado a co-presidência da COP30. Como a conferência da ONU é um espaço de debate e negociação restrito aos governos nacionais, a co-presidência seria uma maneira de os povos indígenas influenciarem diretamente nas negociações.
A conquista do movimento, porém, acabou um pouco ofuscada por um tumulto ao fim do dia, quando a Polícia Legislativa e a Polícia Militar do Distrito Federal reagiram à tradicional marcha que eles fazem todo ano pela Esplanada dos Ministérios. Ao chegar em frente ao Congresso Nacional, alguns participantes da marcha tentaram acessar o gramado do Congresso Nacional, que estava bloqueado.
Agentes de segurança lançaram uma grande quantidade de bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta que atingiram diversas pessoas, entre elas a deputada Célia Xakriabá (PSOL). A Pública apurou que pelo menos cinco mulheres indígenas passaram mal e tiveram que ser atendidas por ambulâncias no local.Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), afirmou que “o acesso ao gramado do Congresso Nacional por parte dos manifestantes ocorreu de forma espontânea, sem qualquer ato de violência, depredação ou rompimento de barreira”. Também disse que “reforça o caráter pacífico e democrático da manifestação, que reuniu mais de 7 mil lideranças indígenas de diferentes povos de todo o país”.

A Secretaria de Polícia do Senado Federal também divulgou uma nota, alegando que, “devido ao avanço inesperado de manifestantes do Acampamento Indígena Terra Livre em direção à sede do Poder Legislativo, foi necessário conter os manifestantes, sem grandes intercorrências”. Afirmou ainda que “a dissuasão foi realizada exclusivamente por meios não letais e a ordem foi restabelecida”.
Influência sobre as negociações climáticas
O tema da marcha era o mesmo de uma campanha que os indígenas lançaram no início deste ano para cobrar o protagonismo indígena no enfrentamento à crise climática: “A Resposta Somos Nós”. Daí a importância da criação da Comissão Internacional Indígena junto à COP30.
“Esperamos que esse espaço inédito de articulação possa de fato responder à nossa demanda histórica de inclusão dos povos indígenas no centro do debate sobre as mudanças climáticas e que seja um legado para as próximas conferências do clima”, disse Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Apib.
A ideia é que a comissão possa, ao menos em parte, cumprir o papel de influenciar nas negociações, ao funcionar como uma espécie de instância de assessoramento para a Presidência da COP30, que está a cargo do embaixador André Corrêa do Lago.
Em entrevista à Agência Pública e ao programa Roda Viva, Lago já havia adiantado que está criando diferentes círculos – de ministros de Finanças, de ex-presidentes das COPs e de povos originários – para aconselhá-lo antes e durante a conferência. A comissão internacional dos povos indígenas fará parte do chamado “círculo dos povos”.
Lago esteve nesta quinta-feira no lançamento da comissão, anunciada pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, em uma sessão plenária do ATL, ao lado de lideranças das principais associações indígenas brasileiras e diante de uma plateia de dezenas de pessoas de povos do Brasil – e do mundo.
Também participaram do evento a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, o secretário-geral da Presidência, Marcio Macedo, a diretora-executiva da COP30, Ana Toni, e as deputadas federais Célia Xakriabá (PSOL) e Erika Hilton (PSOL).
“Teremos os indígenas que estarão credenciados para o espaço principal [de negociação na COP] e teremos os indígenas que estarão participando diretamente com os negociadores”, disse Guajajara, que vai presidir a comissão.
A Apib quer que sejam concedidas 1.000 credenciais aos representantes de povos indígenas de todo o mundo para que eles possam acessar a zona restrita de negociação na conferência.
Além da Apib, a comissão será formada pelas associações brasileiras Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e Anmiga (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade) e pelas organizações internacionais G9 da Amazônia Indígena (que reúne representantes dos nove países da bacia amazônica), Aliança Global de Comunidades Territoriais (que representa povos das Américas, Indonésia e África Central) e o Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas.
As lideranças de diferentes países também aproveitaram a oportunidade para entregar uma carta de mais de 180 organizações indígenas, ambientais e de jovens ao presidente da COP. No documento, elas pedem que a conferência reafirme o compromisso global pelo fim dos combustíveis fósseis e apoie a implementação de uma transição energética “justa e equitativa” para as energias renováveis.
Demarcação para combater a crise do aquecimento global
“Demarcação já: é isso que precisamos na COP30 e precisamos que os estados saibam disso. E sabem por que? Porque nos nossos territórios está a biodiversidade, estão as florestas, estamos nós e estão as irmãs e os irmãos animais, as plantas medicinais. Por isso, precisamos ir ao Pará, todos os povos do Brasil e do mundo”, disse Olo Villalaz, do Panamá, representando a Aliança Global de Comunidades Territoriais.
Villalaz é uma das lideranças globais presentes no ATL que, pela primeira vez, recebeu delegações internacionais. São representantes de povos de todos os países da bacia amazônica (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela), além de lideranças das ilhas do Pacífico, da Austrália e do Canadá.
A principal demanda comum de todos esses povos é a demarcação e proteção de seus territórios tradicionais, responsáveis pela conservação de florestas, rios e mares. Eles pedem que a demarcação territorial seja considerada uma política climática e incluída nas metas que os países devem apresentar para reduzir emissões de gases do efeito estufa que aquecem o planeta.
Além disso, os povos indígenas dos diferentes países pedem a valorização do conhecimento tradicional indígena no enfrentamento da mudança do clima e demandam que o financiamento climático seja direcionado diretamente aos povos, sem passar por bancos multilaterais e organizações internacionais.
“Proteger legalmente os nossos territórios é evitar que milhares de toneladas de CO2 [gás carbônico, o principal gás do efeito estufa] cheguem à atmosfera”, afirmou Patricia Suarez, da Opiac (Organização dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana).
O objetivo é que metas de demarcação sejam incluídas nas NDCs – as Contribuições Nacionalmente Determinadas. As NDCs são os compromissos de redução de emissões definidos internamente por cada país. Neste ano, todos os países têm de rever suas metas a fim de torná-las mais ambiciosas.

O Brasil apresentou sua nova NDC no fim do ano passado, na COP29, em Baku, no Azerbaijão, com a promessa de reduzir suas emissões entre 59% e 67% em 2035, na comparação com os níveis de 2005. Não foi mostrado, porém, como isso vai ser alcançado, o que deve ser definido com o lançamento do Plano Clima, mas um compromisso já assumido pelo Brasil é zerar o desmatamento até 2030.
“A maior parte das emissões de CO2 do Brasil vem do desmatamento de nossos biomas. É comprovado que os territórios indígenas são as áreas com menor desmatamento em nosso país. Isso demonstra que nós somos parte fundamental da solução para a crise climática”, afirmou Karipuna.
Questionada pela Pública se a demarcação dos territórios indígenas será incluída na NDC, Ana Toni, diretora-executiva da COP30, afirmou que a política já é parte da meta. De fato, a NDC fala em acelerar a regularização fundiária e proteger as terras indígenas, mas não há uma meta específica e quantificada de demarcações desses territórios. Ela sinalizou, apenas, que o plano setorial de mitigação, que vai dizer quanto de redução de emissões vai caber a cada setor e atividade, deve ser anunciado em breve.
“Demarcação já” é, historicamente, a principal demanda dos indígenas e dos ATLs. Dias antes do início do evento, a Apib enviou uma série de demandas ao presidente Lula e a outros ministérios do Executivo Federal, entre elas o avanço nos processos demarcatórios. Ainda assim, até a publicação deste texto, não houve, por parte do governo federal, anúncio de nenhuma nova demarcação.
Segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), 156 terras indígenas estão em fase de estudo (primeira etapa do processo de demarcação), outras 37 já tiveram seus limites delimitados pela Funai e outras 70 foram declaradas pelo Ministério da Justiça (momento que antecede a homologação).
Desde que assumiu seu terceiro mandato como presidente, Lula homologou (última fase do processo demarcatório) 13 Terras Indígenas de uma lista de 14 territórios, elaborada ainda em 2022 pelo grupo de trabalho da transição, que apontou as áreas como prioritárias para serem demarcadas nos 100 primeiros. O governo Lula, porém, levou 704 dias para concluir o processo de 13 delas. Da lista inicial, ainda resta homologar a TI Xukuru-Kariri, em Alagoas.
Ameaças ainda prevalecem nas Terras Indígenas
Durante várias rodas de conversa e apresentações no ATL, representantes de diferentes povos denunciaram ameaças e pressões em territórios já demarcados, como invasões, retirada ilegal de madeira, garimpo, desmatamento e queimadas. Os problemas são tantos que vários povos têm se organizado para realizar ações de monitoramento, registrando e denunciando invasões e crimes ambientais, e para proteger seus territórios com brigadas contra incêndios e grupos de guardiões.

É o caso, por exemplo, dos povos Uru Eu Wau Wau, em Rondônia, dos Arara, no Pará, e dos Guajajara, no Maranhão. Em muitos casos, eles colocam a própria vida em risco para realizar funções que são, na verdade, obrigações do estado brasileiro.
“Nós iniciamos o trabalho sem nenhuma metodologia, temos feito a vigilância da nossa terra e já temos resultados. Amenizou a entrada de invasores ao norte”, contou Bushe Matis, coordenador da Univaja, a associação dos povos indígenas do Vale do Javari, Terra Indígena, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados. Matis contou que a Univaja trabalha com várias embarcações para dar conta dos mais de 8 milhões de hectares da Terra Indígena, que é a região com a maior presença de povos isolados do mundo.
Mas as situações mais graves são as das terras que ainda não foram oficialmente demarcadas, onde os indígenas estão particularmente vulneráveis a invasões e conflitos com outros grupos, como fazendeiros e posseiros. É o caso dos povos Pataxó e Tupinambá, na Bahia, dos Avá-Guarani, no Paraná, e dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, em que várias pessoas têm sido assassinadas, ameaçadas e perseguidas nos últimos anos.
“Não podemos, meus parentes, sediar uma COP onde lideranças indígenas ainda estão sendo mortas no território. Trago aqui um exemplo muito claro dos Pataxós, Guarani Kayowá e outras milhares de lideranças que estão tombando no território na defesa dos territórios indígenas”, disse Dinaman Tuxá, também coordenador da Apib.
Críticas à câmara de conciliação do Marco Temporal
Nesta quinta, durante o lançamento da comissão internacional indígena, Tuxá reconheceu o avanço representado pelo grupo, mas chamou atenção para o fato de, em paralelo, estar funcionando no Supremo Tribunal Federal (STF) a câmara de conciliação do Marco Temporal .
Criada pelo ministro Gilmar Mendes, a câmara discute uma alternativa para a lei do Marco Temporal, aprovada pelo Congresso Nacional em setembro de 2023, pouco depois de o STF ter declarado a inconstitucionalidade da tese – segundo a qual só poderiam ser demarcados os territórios em que seja comprovada que havia presença indígena em 5 de outubro de 1988.
A Apib se retirou da câmara, denunciando a composição desfavorável do colegiado, que reúne representantes dos ruralistas, e, ainda, a impossibilidade de “conciliar” direitos fundamentais – já que a Constituição Federal garantiu o direito originário dos povos indígenas às suas terras e determinou que a União faça a demarcação desses territórios.
“Nós não podemos mais aceitar a tramitação dessa câmara de conciliação. Nós pedimos a extinção imediata da câmara”, disse Tuxá diante das autoridades do governo.

Segundo os povos indígenas, a manutenção da câmara vem impedindo a demarcação de Terras Indígenas e acirrando conflitos com ocupantes e invasores desses territórios.
A existência da câmara de conciliação não foi a única incoerência do atual governo apontada por lideranças no ATL, que enxergam um descompasso entre o discurso, muitas vezes pró-meio ambiente e pró-povos indígenas, e as ações do governo, que vão na direção de autorizar grandes empreendimentos de exploração da natureza.
Para Luene Karipuna, da Articulação dos povos e organizações indígenas do Amapá e Norte do Pará, é contraditório, por exemplo, que o governo federal defenda a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas como necessária para financiar a transição energética, sendo que os combustíveis fósseis são, justamente, os principais responsáveis pela crise climática.
As críticas também se estendem ao governo do estado do Pará. Alaíde Arapiun, por exemplo, chamou atenção para o fato de o “governo da COP” ser o mesmo governo que autoriza a dragagem do rio Tapajós, prejudicando a água do rio, para permitir a passagem de grãos do agronegócio que, por sua vez, pressionam as terras indígenas com o avanço da monocultura e uso de agrotóxicos. “Tem territórios que o que divide da soja é só um arame farpado”, denunciou ela.
Realidade compartilhada em toda a bacia amazônica
Esse cenário de ameaças aos povos indígenas e seus territórios, inclusive por parte de governos, se repete nos outros países da bacia amazônica, como denunciaram as lideranças internacionais presentes no ATL.
“A situação [dos povos indígenas] é igual, porque as políticas dos países do Sul são iguais, são de extrativismo”, disse, em entrevista exclusiva à Pública, Ingry Paola, presidente da associação Inga, da Colômbia. “Agora estamos passando pela época de diminuição do petróleo, mas logo vão vir as mineradoras para a suposta transição energética”.
Para a Apib, a transição energética não pode provocar mineração nos territórios indígenas. “Exigimos comprometimento dos três Poderes contra qualquer medida que tente estabelecer qualquer projeto de mineração no nosso território indígena”, afirmou Kleber Karipuna, da Apib.
Diante da percepção de que não apenas os problemas são compartilhados, mas também as soluções, os povos indígenas de diferentes partes do mundo representados no ATL se juntaram à campanha “A Resposta Somos Nós”, lançada por organizações brasileiras, com o objetivo de exigir protagonismo indígena no enfrentamento à crise climática.
“Como no resto da Amazônia, temos problemas similares: mineração, madeireiras, petroleiras”, disse Eligio Dacosta, da Orpia, organização que defende os direitos coletivos dos povos indígenas da Venezuela. “É importante termos ainda mais unidade dos nossos povos, porque este é o momento que os governos dos nove países [da bacia amazônica] tem para nos escutar, porque nós somos a solução”.
Fonte
O post “ATL lança comissão indígena internacional para influenciar negociações da COP30” foi publicado em 11/04/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública