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É chover no molhado dizer que o investimento em ciência anda de mãos dadas com o desenvolvimento. Essa é a regra de ouro das últimas décadas para os países mais desenvolvidos do mundo, mas Donald Trump, que diz querer fazer a América grande novamente, parece estar pouco se lixando para isso, abrindo mão da sua liderança histórica e mundial na produção de ciência, nas mais diversas áreas.
Com um mês de governo, o golpe sem precedentes na ciência norte-americana têm deixado atônitos e temerosos pesquisadores no país e em todo o mundo. O maior vencedor de Prêmios Nobel da história está ferindo sua própria produção, um movimento que poderá ser um tiro no pé dos Estados Unidos – afinal, é de imaginar que China e outras nações vão aproveitar para ocupar esse espaço –, mas os reflexos dos estilhaços cairão sobre todos nós.
As duas principais revistas de divulgação científica do mundo, Nature e Science, publicaram editoriais nesta semana alertando para isso e conclamando que a ciência reaja, como puder, tanto dentro quanto fora do país.
“Um assalto à ciência em qualquer lugar é um assalto à ciência em todo lugar” foi o título do editorial da Nature , que lembra que, logo nas primeiras ordens executivas, Trump cancelou ou congelou dezenas de bilhões de dólares em financiamento de pesquisa e em ajuda internacional.
Fora as demissões sem justificativa, os banimentos de estudantes pelo uso de palavras que se tornaram proibidas – como as relacionadas a gênero e raça – e programas de parcerias com pesquisadores de outros países sendo abandonados.
No editorial da Science , que descreve um clima de “barata voa” rolando entre as organizações científicas americanas – agindo sem muita coordenação nem união contra os ataques de Trump – , é citada uma declaração da reitora da Universidade George Washington, Ellen Granberg. Para ela, a situação atual é uma tragédia que põe em risco “destruir a empreitada científica que é a inveja do mundo, que salvou incontáveis vidas e produziu inovações que ajudaram a impulsionar a economia” dos Estados Unidos.
Realmente todo mundo deveria estar se preocupando com isso. Nem o próprio Trump fez em seu primeiro mandato o que ele está fazendo agora. Só para pegar um caso: imagine que o monitoramento de novas pandemias e a resposta a elas, como a rápida produção de vacinas, pode ser impactada com os cortes nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e com o rompimento do país com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Esse é um tipo de trabalho em rede e, claro, há cientistas de outros países atuando nisso, que não só vão continuar o trabalho como poderão, eventualmente, suprir essas lacunas. Mas perder parte dos recursos e da força de trabalho vai ter impacto. Só os antivacinas devem estar aplaudindo abestalhados a decisão. Os efeitos disso podem ser catastróficos.
Agora olhemos para a ciência do clima. Que Trump é um negacionista das mudanças climáticas, todo mundo já sabe. Um dos seus primeiros atos foi a saída do Acordo de Paris, como já era esperado, e, como no primeiro mandato, seu governo saiu deletando referências sobre o tema de todos os sites governamentais, como da própria Casa Branca e dos departamentos de Estado, da Defesa e da Agricultura.
Logo de cara, ele cancelou o financiamento federal para projetos internacionais de mudança climática, que em 2024 somaram cerca de 11 bilhões de dólares em 2024, ou 10% do financiamento climático público global anual.
Mas Trump 2.0 está atacando em cheio a própria produção de conhecimento sobre o tema – área na qual os Estados Unidos lideraram com ampla margem nas últimas décadas –, com cortes sobre Nasa (a agência espacial norte-americana) e o desmantelamento da Noaa (agência que monitora oceanos e atmosfera), importantes provedores de dados sobre o status do aquecimento global. Nesta sexta-feira (28), mais de 800 funcionários da Noaa , incluindo quem faz a previsão do tempo, foi demitido pelo governo.
Outro golpe recente foi sobre o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, que compila o estado da arte da ciência do clima. Os coordenadores do grupo estão reunidos na China nesta semana para discutir o escopo, o orçamento e o cronograma para a realização do próximo grande relatório de avaliação do IPCC, o sétimo, que deve ser produzido ao longo dos próximos anos.
O governo Trump, porém, proibiu a ida de pesquisadores ligados ao governo ao evento, o que afetou particularmente a presença de Katherine Calvin, cientista-chefe da Nasa, que é uma das copresidentes do grupo de trabalho 3 do IPCC, que lida diretamente com mitigação (que é a redução das emissões de gases de efeito estufa). Nesta reportagem que publicamos nesta quinta no site da Agência Pública, minha colega Isabel Seta e eu explicamos o que significa essa medida.
Essa lacuna, em si, pode ser preenchida. Há muitos outros cientistas no mundo que podem ocupar esse lugar de coordenação. Mas o impacto vai além. A Nasa rescindiu o contrato com um grupo de cientistas que fazia parte de uma unidade técnica fundamental para a produção do grupo de trabalho de Calvin.
Há a preocupação, ainda, sobre o impacto que essa decisão pode ter sobre a realização do relatório em si. Historicamente, os Estados Unidos são o país com mais cientistas entre os autores dos relatórios do IPCC – cerca de 18%, o dobro do segundo colocado, que é o Reino Unido, segundo uma análise feita pelo Carbon Brief em 2023 .
Não se sabe, ainda, se parte desses cientistas também será proibida de participar da confecção do 7º relatório de avaliação, o que, sim, poderia afetar – no mínimo, atrasar – a elaboração do material, considerado imprescindível para guiar as ações dos países contra as mudanças climáticas.
Como dizia um colega jornalista de ciência, você pode até negar a ciência, mas não vive sem o que ela descobre e produz. Sem ela, estaremos todos nas trevas.
Fonte
O post “Ataque de Trump à ciência é tiro no próprio pé, mas mundo inteiro vai sentir os estilhaços” foi publicado em 28/02/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública