Já faz algumas semanas que terminei minha jornada na Pacific Crest Trail, nos Estados Unidos. Desde então, tenho tido contato diário com coisas que durante a trilha eram distantes e de difícil acesso. Coisas aparentemente banais para quem vive na cidade, como por exemplo, energia elétrica à disposição e frutas frescas – algo que era quase impossível de conseguir durante a caminhada. Tenho água gelada e potável a uma porta de geladeira de distância, durmo em uma cama confortável, tomo banho com água quente, falo diariamente com meus amigos e familiares… A vida voltou ao normal.
No total foram 126 dias percorrendo os 4.250 quilômetros da trilha. Eu andei do México ao Canadá – e isso é impressionante. Tive dias ruins, é claro, mas no geral, passei ali alguns dos melhores dias da minha vida. Mesmo com o esforço diário, com a falta do conforto da vida moderna, com o cansaço e a saudade.
Quando cheguei ao monumento que marca o extremo norte da trilha eu sabia que minha jornada não havia acabado. Eu estava na fronteira dos Estados Unidos com o Canadá. A única coisa que me dizia que eu estava deixando um país e entrando em outro era o marco da Pacific Crest Trail (PCT), idêntico àquele na fronteira com o México, ao sul, onde eu havia começado. Abri uma pequena garrafa de champagne que estava carregando havia alguns dias, celebrei o final do percurso e saí dos Estados Unidos. Precisei andar ainda uma dezena de quilômetros pelas florestas canadenses até chegar à sede do Manning Park. No estacionamento, consegui uma carona na carroceria de uma caminhonete até a cidade de Hope. De lá, meu objetivo era voltar para a Califórnia e terminar o trecho que eu havia saltado por causa da neve: os cerca de 600 quilômetros de Sierra Nevada (leia a coluna anterior ). Meu plano era fazer este trecho do norte pro sul e concluir a trilha no topo do Monte Whitney, o mesmo onde eu havia sofrido o acidente apenas algumas semanas atrás. Assim, peguei um ônibus que me levou à Vancouver e de lá voei até Reno, em Nevada, onde outro ônibus que me deixou na cidade de Truckee, na Califórnia. Estava de volta à PCT, prestes a encarar o trecho que antes julguei intransponível.
Dali foram quatro dias de caminhada até chegar a South Lake Tahoe, a cidade que marca o extremo norte de Sierra Nevada. Eu confiava no planejamento que havia feito: estava no auge do verão e acreditava que toda a neve já teria derretido. Ainda assim, levava comigo equipamentos de segurança, como os minicrampons – pequenos grampos de ferro – para usar nos tênis caso precisasse caminhar na neve. Havia despachado minha piqueta para uma agência dos correios e tinha que decidir se iria carregá-la ou não.
Caminhei alguns quilômetros por trechos que havia passado anteriormente, mas não reconhecia a paisagem. O local era o mesmo, porém o que antes estava coberto de neve agora estava seco. A vegetação começava a surgir novamente. “Eu tomei a decisão certa”, pensei.
Sierra Nevada é a cereja do bolo da Pacific Crest Trail. Durante os pouco mais de 600 quilômetros do trecho, a trilha tem um ganho de elevação de mais de 17 mil metros. Boa parte da caminhada é acima dos 3.000 metros de altitude e cruza alguns dos parques florestais mais famosos dos Estados Unidos, como o Sequoia & Kings Canyon e o Yosemite National Park . As chamadas High Sierras foram a inspiração para o escritor, naturalista e explorador John Muir escrever suas principais obras. Além disso, 400 quilômetros da trilha – os mais bonitos e difíceis da PCT – são chamados de ‘John Muir Trail’ em sua homenagem. Em um dos passos de montanha – locais de transição entre uma montanha e outra – durante a trilha, existe também um abrigo construído em 1930 e que leva o nome do explorador.
Com 3.644 metros de altitude o Muir Pass é apenas um dos diversos passos que se cruza ao longo da PCT. A cada dia é preciso vencer uma montanha diferente, com altitudes que vão de 2.933 metros (o Sonora Pass, o passo mais ao norte) a 4.009 metros (Forester Pass, ao sul, o ponto mais alto da Pacific Crest Trail). Além das montanhas existem dezenas de rios que precisam ser atravessados. Mais do que a própria neve, eles representam o maior risco da trilha: em 2017, duas caminhantes morreram levadas pelas correntezas. Mas nessa época do ano, com o tempo já seco e a neve derretida, as águas estavam calmas e baixas.
Outra dificuldade de Sierra Nevada é a logística: a altitude exige longos trechos sem contato com cidades – ou longas caminhadas montanha abaixo até chegar a um ponto onde se pode comprar comida. Assim, optei por andar o máximo possível a cada dia para minimizar minhas idas à cidades.
No dia 16 de setembro, 125 dias após ter começado minha jornada, eu descia o Forester Pass e chegava à base do Monte Whitney, no mesmo local onde acampei na noite do acidente. Eu havia completado a PCT, mas ainda não havia realizado o que tinha planejado: eu iria tentar novamente subir a montanha mais alta dos Estados Unidos continental.
Saí pela manhã do acampamento. Na medida em que eu caminhava, tentava identificar os locais por onde havia passado antes. Não parecia o mesmo lugar. Subi a montanha enquanto procurava pela pedra onde havia batido – e que havia salvado minha vida freando minha queda montanha abaixo -, mas não consegui reconhecer minha salvadora. Subi até o topo. Sem neve e com o clima agradável, a caminhada não me pareceu difícil. Ainda assim, agradecia internamente por não ter que passar ali em cima do gelo escorregadio que outrora cobria esse caminho. A vista de 360 graus do topo é incrível. O contorno das High Sierras ao norte emoldurava com majestade minha linha de chegada. Minha missão estava completa.
Escrevi meu nome no livro de registros e desci. Voltei ao camping, desmontei a barraca e percorri mais cem quilômetros até a vila de Kennedy Meadows. Eu havia terminado minha caminhada e estava de volta à civilização.
Nas semanas seguintes, já em casa, fiquei pensando nos quatros meses de caminhada. Nas dificuldades que passei, nas belezas que vi, em todo conforto de que abri mão para estar lá. Em alguns momentos penso em nunca mais fazer uma trilha tão longa. Mas na maior parte do tempo, penso nos motivos para não estar de novo com o pé na estrada.
A experiência de caminhar pela Pacific Crest Trail foi incrível. Percorrer a Sierra Nevada, onde a trilha está durante boa parte do tempo acima dos 3.000 metros foi inexplicável. Mas não creio que volto a essa altitude tão cedo, já que no Brasil mesmo as trilhas mais altas, como Pedra da Mina e Marins, não passam dos 2.800 metros acima do nível do mar. Para 2020 meu plano é ficar por aqui e conhecer meu quintal: andei pouco pelas trilhas brasileiras e quero ver de perto o trabalho que está sendo feito pelo Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso. Quero andar pela Transespinhaço e pela Transmantiqueira, percursos que estão sendo implementados pelo estado de Minas Gerais. Quero usar minha experiência para ajudar a deixar as trilhas brasileiras mais seguras, melhor sinalizadas e mais conhecidas. As montanhas estão me chamando e, como John Muir, eu preciso ir.
*Jeff “Speedy Gonzalez” Santos é autor do blog www.longadistancia.com .
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O post “As montanhas estão chamando e eu preciso ir” foi publicado em 24th November 2019 e pode ser visto originalmente na fonte ((o))eco