Por Winnie Byanyima*
Como mulher africana, as lembranças da AIDS estão gravadas em mim: de membros da família que se foram muito cedo nos deixando em luto e despedaçados; dos desvios de curso nos planos de desenvolvimento dos países; e de temer que a ameaça fosse impossível de derrotar .
Mas tenho outras lembranças que me trazem força, principalmente de como as pessoas começaram a reagir, muitas vezes se colocando em grande risco. A coragem delas mudou tudo, e fomos capazes de mobilizar a ciência, recursos internacionais, inovação e parcerias para começar a progredir contra a epidemia. E o progresso feito contra a epidemia é um milagre — não um milagre que vem de cima, mas um milagre derivado do trabalho conjunto entre comunidades.
Mas devemos manter os olhos abertos. O trabalho não está concluído e a última etapa é a mais difícil. Chegou a hora de mirarmos no pico mais alto. Sem isso, a AIDS permanecerá invicta, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estarão em risco e milhões de pessoas serão deixadas para trás.
Para acabar com a AIDS, precisamos de uma nova era de liderança — séria, corajosa e justa — nas seguintes áreas:
1. Liderança para trazer saúde a todos
Acesso a serviços de saúde são um direito humano e nunca devem depender de quanto dinheiro você tem no bolso. Os ativistas exigem medicamentos de ponta e cuidados de saúde para as pessoas que vivem com HIV, entregues a preços acessíveis e em escala, não importa onde morem. Essa visão está no coração da saúde para todos. Os governos devem fornecer a todas as pessoas assistência médica pública, por meio de sistemas tributários progressivos nos quais os milionários e as grandes empresas paguem uma proporção justa. Os sistemas públicos de saúde devem oferecer serviços que alcancem as pessoas mais necessitadas, e os governos devem apoiar os grupos de pessoas que vivem com HIV (ou que são afetadas pelo HIV) para aumentar a provisão de serviços liderados pela comunidade.
2. Liderança para acabar com a desigualdade de gênero
Mulheres jovens e meninas, principalmente na África Subsaariana, enfrentam um risco inaceitavelmente alto de infecção pelo HIV, e os serviços oferecidos nem sempre são bem projetados para atender às necessidades por serviços abrangentes de saúde sexual e reprodutiva. A liderança precisa remover obstáculos estruturais que negam a mulheres e meninas seus direitos, igualdade de oportunidades e poder.
Garantir a educação primária e secundária abrangente deve alicerçar a igualdade, mas a liderança também precisa enfrentar regras e costumes que mantêm meninas e mulheres em posição inferior. Enfrentar a desigualdade de gênero exige compromisso de longo prazo para a mudança de leis e políticas, e coragem para defender os direitos das mulheres e meninas. Os líderes devem ouvir os movimentos das mulheres para entender o que elas precisam.
3. Liderança para acabar com a discriminação
A epidemia de HIV continuará enquanto comunidades marginalizadas — incluindo pessoas LGBTQ, homens que fazem sexo com homens, pessoas que usam drogas, profissionais do sexo, pessoas em privação de liberdade e migrantes — vivem com medo do estado ou de violência e violações. Com muita frequência, líderes não têm coragem de desafiar preconceitos profundamente arraigados ou se sustentar ao ceder ao estigma e à discriminação. Os líderes devem enfrentar multidões e defender a zero discriminação e o direito à saúde de todos os cidadãos, entendendo que o interesse público coletivo é prejudicado por abordagens punitivas. Ouvir grupos marginalizados é fundamental; eles conhecem as proteções legais de que precisam.
4. Liderança em inovação científica democrática
A resposta à AIDS sempre esteve na vanguarda da inovação, passando de um regime de tratamento de HIV que custava U$ 10.000 por ano, com oito comprimidos por dia, para um que custa U$ 74 por ano, com um comprimido por dia, além da implementação da prestação de serviços liderada pela comunidade. O ritmo da ciência e da inovação está acelerando, com o risco de uso indevido para vitimar e explorar ainda mais os marginalizados ou sua negação às pessoas mais necessitadas. Exigimos liderança científica democrática que se envolva em um diálogo respeitoso com as comunidades afetadas e que seja guiada pela ética, direitos humanos e justiça social.
5. Liderança de toda a sociedade
Empresas, mídia, sindicatos, grupos religiosos, organizações comunitárias, movimentos sociais e influenciadores culturais têm um papel a desempenhar. Os avanços acontecem quando as empresas se manifestam a favor da assistência universal à saúde, quando a mídia promove os direitos humanos e para de perpetuar estereótipos prejudiciais sobre a eficácia de abordagens punitivas contra pessoas que usam drogas e quando líderes religiosos chamam a atenção ao preconceito homofóbico ou a violência contra mulheres e meninas.
6. Liderança das Nações Unidas
O UNAIDS é responsável por coordenar a resposta à AIDS, mas não somos o chefe — somos um servo. Devemos ser firmes na defesa dos direitos humanos universais quando pressionados a não fazer isso, e em chamar a atenção a práticas injustas ou não informadas por evidências. Precisamos ser humildes e inclusivos e trabalhar para reforçar a liderança de outras pessoas — da sociedade civil em seu sentido mais amplo e, particularmente, das comunidades afetadas pelo HIV. Isso é mais vital do que nunca.
Liderança é difícil e envolve escolhas difíceis. Mas os líderes lembrados com honra não são os que fazem o que é popular ou politicamente conveniente no momento, mas os que fazem o que é certo. Dizem que onde há vontade, há um jeito. Acredito que existe um jeito, e juntos encontraremos a vontade. Esta deve ser a década de aceleração na luta contra a AIDS — uma década de liderança.
Quando contarmos à geração que ainda não nasceu, sobre a história da AIDS, vamos compartilhar com eles três lembranças: a memória de quando a AIDS nos atingiu pela primeira vez, a memória de quando começamos a lutar e a memória de enviar a AIDS apenas para a memória.
*diretora-executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS)
**Texto publicado originalmente (em inglês) no site Devex .
Fonte
O post “ARTIGO: Para acabar com a AIDS, precisamos de uma nova era de liderança — séria, corajosa e justa” foi publicado em 23rd March 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ONU Brasil