Por Lucas Seara¹ e Clara Marinho Nascimento² do Projeto OSC Legal
Chegou de Minas Gerais uma pergunta muito interessante, recorrente nas atividades que o Projeto OSC LEGAL vem realizando. Uma seguidora do projeto, da área de contabilidade, questiona: considerando a Lei nº 13.019/2014³, os templos religiosos poderão receber verbas públicas? Quais as premissas? Pode haver parcerias com base no MROSC?
A princípio, cabe destacar a natureza jurídica das organizações religiosas na legislação brasileira, com destaque para o Código Civil⁴, em seu artigo 44, IV, que as reconhece como pessoas jurídicas de direito privado. Por sua vez, o § 1º do mesmo art. 44 reconhece a liberdade de criação, de organização, de estruturação interna e de funcionamento das organizações religiosas, com vedação expressa do poder público de negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.
Segundo Grazzioli e Paes⁵, tais organizações “são constituídas, em linhas gerais, pelo universo de pessoas congregadas segundo uma doutrina de fé, afigurando, por isso mesmo, um modelo associativo atípico”. Apesar da semelhança com o regime geral das associações, os autores apontam que não existe uma definição legislativa específica ou um regramento para a atuação das organizações de cunho religioso, destacando-se o Código Civil e as regras gerais.
Retomando a questão central que nos foi enviada: sendo o templo religioso um ente social, ele pode ser uma OSC? Pode receber verbas públicas?
De antemão pode-se afirmar que as entidades religiosas podem ser reconhecidas como Organizações da Sociedade Civil (OSC), nos moldes da Lei nº 13.019/2014, o chamado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, com base no art. 2º, I, c. A lei estabelece que as organizações religiosas devem se dedicar a atividades ou projetos de interesse público e cunho social que se diferenciem das atividades exclusivamente religiosas.
Em outras palavras, para que se estabeleça uma parceria entre a administração pública e entidades religiosas, importa menos a natureza da pessoa jurídica ou a crença dos associados⁶, e mais o objetivo pretendido com a afetação da atividade como de interesse social. Ou seja, importa menos o credo e a atividade religiosa (culto) praticada, mas tem relevância os tipos de projetos e/ou atividades que serão desenvolvidos na comunidade (voltadas aos membros da instituição ou abertos a qualquer pessoa) e quais os impactos sociais dessa intervenção.
Com efeito, a simples existência de um templo religioso não o torna automaticamente uma OSC, muito menos o garante como apto à captação de parcerias e verbas públicas⁷. Não basta o professar da fé, mas a atuação social que a instituição religiosa realiza, as intervenções sociais que empreende. Alguns exemplos dessa atuação: abrigos de idosos mantidos por centros espíritas; comunidades terapêuticas ligadas a credos evangélicos; escolas ou creches mantidas por terreiros de candomblé; acolhimento de população em situação de rua e/ou imigrantes pelas iniciativas católicas; etc.
Deve-se também destacar que dentre os requisitos que a Lei exige para celebração das parcerias com o Poder Público, as entidades religiosas possuem duas exceções à regra geral, conforme o art. 33, § 2º, da Lei nº 13.019/2014. Primeiro o dispositivo dispensa tais organizações da exigência de itens nas normas de organização interna (estatutos) que prevejam objetivos voltados à promoção de atividades e finalidades de relevância pública e social; também dispensa a obrigatoriedade de transferência do respectivo patrimônio líquido a outra pessoa jurídica de igual natureza, em caso de dissolução da entidade.
Entretanto, todas as demais regras estabelecidas para as parcerias são exigidas, tais como: identificação do objeto pactuado, as obrigações das partes, as metas a serem atingidas, etapas ou fases de execução, detalhamento do trabalho a ser executado e público alvo, plano de aplicação dos recursos financeiros, cronograma de desembolso, regularidade jurídica, adimplência com os Poderes Públicos, etc.
Assim, respeitando os princípios da laicidade e reconhecendo a importância das atividades religiosas no fortalecimento de uma sociedade democrática e plural, o MROSC inclui as entidades religiosas em um dos polos da relação com a administração pública, possibilitando acesso às parcerias que viabilizam e reconhecem o papel histórico das instituições religiosas no fortalecimento dos sujeitos de direito no Brasil.
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1. Lucas Seara. Advogado. Consultor. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (Escola de Administração/UFBA). Colaborador Técnico do CONFOCO/Bahia. Coordenador do Projeto OSC LEGAL.
2. Clara Marinho Nascimento. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador
3. Lei nº 13.019, de 31/07/2014 — Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999
4. Lei nº 10.406, de 10/01/2002 — Institui o Código Civil
5. GRAZZIOLI, Airton; PAES, José Eduardo Sabo. Compliance no Terceiro Setor: Controle e Integridade nas Organizações da Sociedade Civil. São Paulo/SP, Editora Elevação: 2018.
6. Vale registrar que a liberdade de crença está ancorada na Constituição Federal, em seu art. 5º, VI, que estabelece como inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
7. Ressalte-se o princípio da laicidade do Estado, consagrado na Constituição Federal de 1988. O art. 19 veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
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