Nas discussões públicas que tratam da expansão do sistema prisional, ao mesmo tempo em que se empenham para desvencilhar o conceito de raça do projeto de encarceramento e genocídio, não consideram as questões de gênero e como estas são peças fundamentais para estruturar este mesmo sistema. Ainda que as prisões sejam lidas socialmente enquanto espaço de despejo de indivíduos que não obtém condições morais adequadas para o convívio público, é dentro delas que se estendem e consolidam as estruturas sociais e todas as suas problemáticas, incluindo as opressões e punições de gênero, raça e classe.
Muito disso se dá por conta da subjetividade criminológica construída no Brasil, que moldou e molda ideologias que compactuam com o auxílio e manutenção do punitivismo, tornando as cadeias e penitenciárias inquestionáveis e indispensáveis para a composição das paisagens que nos cercam, ou seja, não se pergunta o porquê e nem como funcionam estas instituições totalmente colonizadas e subnotificadas, o que diminui nosso conhecimento sobre o que acontece dentro destes espaços receptores de “criminosos”. Esta subnotificação não é questionada por grande parte dos cidadãos devido a esse projeto de subjetividade que recebe respaldo do Estado, para que não se rompa a ponto de nos interessarmos e nos preocuparmos com as condições em que vivem, em específico, as mulheres negras privadas de liberdade.
Se somos hoje o terceiro país que mais encarcera no mundo, tendo a posição de quarto lugar no ranking de maior população carcerária feminina, com 37.828 mulheres, sendo 63,55% destas, mulheres negras (Infopen Mulheres, junho de 2017), vale pensar na atuação do Estado para com a existência destas mulheres durante a pandemia da Covid-19, período em que a única política de prevenção de contaminação em massa dos presídios brasileiros, proposta pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), foi a utilização de containers como moradias temporárias para isolar os detentos e detentas de grupos de risco.
As desigualdades pré-existentes se aprofundaram com a chegada do novo coronavírus, fora das prisões e indiscutivelmente dentro delas, sem atenção pública necessária, uma vez que trata-se de um ambiente potencialmente endêmico por sua insalubridade, superlotação, racionamento de bens de higiene pessoal, água, etc., sendo as mulheres que vivem dentro dos muros do cárcere nestas condições, em sua grande maioria jovens cisgênero, negras, periféricas, com baixa escolaridade e mães solos. Não houve implementação de política pública capaz de evitar a contaminação no sistema prisional feminino e nenhuma estratégia essencialmente eficaz que diminuísse as possibilidades de uma vulnerabilidade ainda mais violenta.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou recomendação que apontava a necessidade de se diminuir a população prisional (Recomendação CNJ n. 62/2020) e enviou ofício aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais para que notificassem as medidas de prevenção e de infecção por coronavírus de mulheres gestantes, lactantes, mães de crianças de até 12 anos, idosas, ou que possuem doenças crônicas e respiratórias. A recomendação era que, para além de outros termos, houvesse uma reavaliação das prisões, medidas de soltura e a possibilidade de prisão domiciliar e pedido de habeas corpus. De acordo com dados levantados e disponibilizados pelo DEPEN, até o dia 29 de abril de 2020, das mulheres hoje privadas de liberdade, 208 estão grávidas, 44 são lactantes, 12.821 são mães de crianças de até 12 anos, 434 são idosas e 4.052 possuem doenças respiratórias ou crônicas. Destas, em prisão provisória estão 77 grávidas, 20 lactantes e 3.136 mães de crianças de até 12 anos, e em prisão provisória elas permanecem, por negação do Supremo Tribunal Federal ao habeas corpus deste grupo de risco.
Dados são essenciais para que possamos visualizar as problemáticas e atuar nas políticas públicas para resolvê-las. As prisões em si são peças-chave para o funcionamento deste Estado que tem como seu inimigo o corpo preto, e neste caso o encarceramento em massa é a resposta para a ameaça que estes tanto se esforçam para manter. Por serem peças-chave muito dificilmente se tem os dados claros sobre as ocorrências. O recorte de gênero e raça nos dados sobre a situação da Covid-19 nas prisões, por exemplo, teve de ser solicitado por movimentos da sociedade civil organizada, e apesar de todas as movimentações, tanto dos movimentos sociais e organizações, quanto das defensorias públicas não obtiveram o resultado esperado.
O abandono e esquecimento das mulheres encarceradas é projeto de longo prazo independentemente de contexto pandêmico. São estes processos negligentes que nos elucidam sobre esse controle incessante de corpos pretos e essa manutenção da formação colonial que desenvolve nossa subjetividade, para que não nos preocupemos, ou sequer saibamos das violências aos direitos humanos que atravessam as mulheres custodiadas.
Por Alice de Carvalho
Foto: Alice de Carvalho (2020)
Referências:
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. DEPEN. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/SEI_MJ11429916Informao_final.pdf. Acesso em: 14 de jan. de 2021
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. Editora Bertrand Brasil, 2018.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA, 2016.
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O post “Arquiteturas do esquecimento: gênero, raça e cárcere na pandemia do coronavírus” foi publicado em 14th January 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC