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A prisão de Braga Netto, primeiro general de quatro estrelas a ser preso pela Justiça, por envolvimento no planejamento de um golpe de Estado, surpreendeu os brasileiros na manhã de um sábado elétrico, no finzinho do ano. Poucos repararam, entretanto, na coincidência da data. Dois dias antes, o Superior Tribunal Militar (STM) havia condenado Márcio Andrade de Oliveira, general de brigada de saúde, a dois anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva. Foi a primeira vez que a corte máxima da Justiça Militar condenou um general.
A proximidade das datas pode dar a entender que, embora lentamente, os tempos mudam. E a próxima semana será crucial: na quarta-feira, dia 18, o STM vai concluir o julgamento do caso do músico Evaldo Rosa, morto em 2019 em Guadalupe, no Rio de Janeiro, após ter sido alvejado por 82 tiros de fuzil. Ele estava em um carro com a esposa, o filho de 7 anos, o sogro e uma amiga quando foi morto por soldados em um bairro residencial. Iam a um chá de bebê. Os jovens soldados foram orientados pelos seus superiores a participar de uma operação ilegal, como relatamos aqui na Agência Pública e, depois, no meu livro Dano colateral: era uma Operação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) sem aprovação do presidente da República.
O julgamento, que teve início em fevereiro, foi até agora vergonhoso: tanto o ministro relator quanto o revisor votaram pela absolvição dos oito militares pela morte de Evaldo e a uma pena de três anos em regime aberto, pelo fuzilamento do catador Luciano Macedo, que tentou socorrê-lo e foi executado ao lado do carro branco.
O julgamento foi suspenso por um pedido de vista da ministra Elizabeth Rocha, que deve entregar um voto forte na próxima audiência, uma vez que ela já declarou que o caso comprometeu a credibilidade das Forças Armadas.
Se o rumo da votação vai mudar depois do voto da ministra, está para se ver. Mas há ainda no seu bojo uma outra novidade, histórica, que pode mudar a cara do STM: pela primeira vez em 200 anos, uma mulher irá presidir a corte, a própria Elizabeth Rocha. Acaba de ser eleita para comandar, entre 2025 e 2027, a mais antiga corte do país, formada por dez juízes militares e cinco civis.
O poder da presidente é grande: ela irá decidir a pauta de julgamentos, deferir pedidos de sustentação oral, decidir em caso de empate, nomear os juízes civis que participam da primeira instância e representar o STM junto a outros poderes. De perfil progressista, a próxima presidente do STM já afirmou que “Os militares têm que ficar dentro dos quartéis. É importante que política e militarismo não se misturem. Isso nunca funcionou no Brasil. É um desastre”. Elizabeth Rocha prometeu também criar uma assessoria de gênero, raça e minorias, agenda que foi chamada de “woke” pela revista Oeste.
Mas o diabo, como sabemos, está sempre nos detalhes.
Quando o julgamento de Evaldo foi suspenso pelo pedido de vista, havia um vasto clima de apoio aos jovens militares. Como descrevi aqui na Pública , diversos ministros foram apertar as mãos do advogado de defesa. O clima era de alívio pela justificativa macambúzia que o relator Carlos Augusto Amaral Oliveira (brigadeiro do ar) havia encontrado para não puni-los pela primeira morte. Ele foi contra o exame de corpo delito e afirmou que Evaldo morreu mais cedo do que diz o exame, no primeiro tiro. Portanto, seria um caso de legítima defesa putativa, ou imaginária. Sobre todos os demais oito tiros que ele levou no corpo, não valeriam, pois Evaldo já estaria morto.
Agora, resta saber se os demais ministros terão a consciência de mudar o entendimento e, por maioria, dar um recado à sociedade de que soldados não podem fuzilar uma família de pretos no Rio de Janeiro em uma operação ilegal e saírem impunes. Se forem no sentido contrário, absolvendo os militares, terão que encarar o olhar de Luciana Nogueira, viúva de Evaldo Rosa, e seu filho Davi, hoje com 12 anos, que estarão presentes no tribunal.
No caso do general condenado, foi o que fizeram os demais ministros. Também ali, o relator havia proferido voto pela ausência de condenação. O tal general recebeu propinas ao dirigir a contratação de uma empresa de materiais hospitalares, no valor de R$ 290 mil, depositados em parcelas na sua conta. Os demais ministros votaram pela condenação. A sentença não foi das mais severas em um país em que boa parte dos militares acusa políticos civis de serem “corruptos” e chama o presidente Lula de “descondenado”: dois anos e quatro meses de prisão.
O caso da eleição da ministra, também, chama atenção. Embora seja a mais antiga na corte e, portanto, a candidata natural (como ocorre no STF), sua candidatura foi desafiada por um ministro homem, de perfil conservador, Péricles de Queiroz. Por pouco, mais essa conspiração militar poderia ter dado certo. A vitória da candidata natural deu-se por apenas um voto.
Esses meandros da Justiça Militar são fundamentais num momento em que, provavelmente, a investigação da PF sobre os militares golpistas – incluindo desde os “kids pretos” a generais como Braga Netto e Heleno – passará mais cedo ou mais tarde pela corte. Primeiro, existe a possibilidade de crimes de natureza militar terem sido cometidos: desobediência (artigo 163); críticas públicas a seus superiores ou governos (artigo 166); uso de pelo menos um automóvel pelo grupo que saiu de Goiânia para tentar assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes em 15 de dezembro (artigo 240). Cabe ao Ministério Público Militar denunciar os golpistas, assim que o Ministério Público da União comunicar se houve crimes militares. Além disso, sem sombra de dúvida caberá à Justiça Militar decidir pela sua expulsão do Exército e o fim dos salários que seguem recebendo do erário público.
Para quem quer entender se de fato a Justiça Militar está preparada para decidir entre o corporativismo e a democracia, esta será uma semana crucial. E o veredicto do caso Evaldo Rosa será uma ótima bússola.
Fonte
O post “Após prisão de Braga Netto, é hora da Justiça Militar mostrar compromisso com a democracia” foi publicado em 16/12/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública