A julgar pelas controvérsias suscitadas, o que se anunciou como promessa de desfecho para uma complexa batalha judicial, prestes a completar 20 anos, já sinaliza ser mais um capítulo longe do fim. Pescadores questionam as bases do acordo firmado entre a Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (Feperj) e a Petrobras, homologado no último dia 3, para encerrar uma ação de reparação pelos danos decorrentes do vazamento de cerca de 1,3 milhão de litros de óleo na Baía de Guanabara, ocorrido em 18 de janeiro de 2000. Provocado pelo rompimento de um duto de interligação entre o terminal da Ilha D’água, na Ilha do Governador, e a Refinaria Duque de Caxias (Reduc), esse foi considerado, à época, como o maior acidente ambiental do Brasil. Seus impactos afetaram, principalmente, as comunidades de pesca artesanal.
Na segunda-feira, dia 09, uma comissão de pescadores foi à sede da Feperj, em Niterói, questionar o acordo, que segundo alegado, foi decidido sem diálogo e sem transparência com a categoria. Em seguida, foi protocolada uma representação no Ministério Público Federal solicitando a anulação da negociação.
O clima de revolta já havia sido manifestado durante uma reunião realizada no último sábado, na Colônia de Pesca Z-11, em Ramos, onde centenas de integrantes de várias colônias atuantes na Baía de Guanabara discutiram sobre esse pacto que prevê indenizações individuais, de cerca de R$ 7,9 mil para aproximadamente 12,8 mil pessoas, no início de 2020. O encontro também teve o objetivo de checagem da lista oficial de pagamento dos impactados por aquele acidente.
Após a espera em longas filas que se formaram a partir das 10 horas e se encerraram às 22 horas, somente 30 nomes de pessoas que por ali passaram foram encontrados na listagem. Além da ausência de identificação da maioria, os participantes perceberam a existência de nomes duplicados, dentre outros erros. Diante do descontentamento com a situação, decidiram se mobilizar contra o acordo.
Valores são injustos, segundo relatos
Além de considerarem o valor baixo da indenização, os pescadores também alegaram que terão que pagar 30% de honorários advocatícios. “Não vai sobrar quase nada para nós e não compensa para quem perdeu barco, rede e outros instrumentos de trabalho. A própria natureza não se recuperou desde aquele vazamento”, desabafa Márcia Regina Corrêa Santos, 55 anos, presidente da Associação de Caranguejeiros e Amigos dos Mangues de Magé (ACAMM). Ela é moradora de Suruí (distrito do município fluminense) e desde os 18 anos retira o sustento familiar da Baía de Guanabara. “Estamos todos decepcionados com essa negociação que não faz justiça a tudo o que passamos e ainda temos passado”, afirma em nome dos 250 associados da organização, criada em 2008.
Márcia conta que tem uma lembrança muito clara daquele vazamento. As imagens de pássaros e manguezais cobertos de óleo que repercutiram internacionalmente ainda estão vivas na sua memória. “Abrimos as portas das nossas casas e mostramos ao mundo o que enfrentamos naquela época. Filmavam as nossas panelas”, recorda. Ela relata que recebeu diversas equipes de reportagem brasileiras e estrangeiras em busca de informações sobre o cotidiano dos pescadores, caranguejeiros e outros profissionais diretamente dependentes dos recursos naturais da Baía de Guanabara. “Muitos visitantes choravam de tristeza por aquela tragédia.”
Desde então, segundo Márcia, a situação de empobrecimento dessas comunidades envolvidas com a pesca artesanal se ampliou na Baía de Guanabara e há sinais de que a natureza nunca mais foi a mesma. “Eu viajo de duas a três horas de barco de Suruí a Morro Grande (uma ilha entre Magé e Duque de Caxias) para encontrar caranguejo porque na nossa comunidade não existe mais”, afirma. “Até hoje têm blocos de óleo no fundo da baía”, denuncia.
O marido de Márcia, também pescador artesanal, morreu em dezembro de 2018, sem ter visto a reparação judicial reivindicada. “Ele enfrentou o alcoolismo e enfartou quatro vezes depois daquele acidente. Na última vez, se foi. Morreu de desgosto”, lamenta. A líder comunitária tem três filhos e se sente aliviada por eles não terem seguido a profissão dos pais. “Só se vê desumanidade e sofrimento na pesca. Vivemos marginalizados e não temos nenhuma garantia de uma velhice com dignidade”, desabafa.
A presidente da ACAMM ressalta que nas últimas duas décadas muitos outros vazamentos de óleo atingiram a Baía de Guanabara causando prejuízos às comunidades pesqueiras e ampliando o seu estado de degradação ambiental.
Marluce Corrêa Santos, 52 anos, atuante na coleta de caranguejo desde 1984, conta que ajudou a fundar a ACAAM, com a irmã Márcia, na tentativa de defender os direitos dos que dependem dos mangues da Baía de Guanabara para manter a sobrevivência familiar. “Na nossa família estamos na quarta geração de pessoas que vivem das atividades pesqueiras e temos presenciado muitas injustiças”, afirma.
No caso dos danos provocados pelo vazamento de óleo no ano 2000, Marluce conta que espera pela reparação, embora também considere que o acordo firmado não faz justiça aos afetados, além de ressaltar que já tomou conhecimento de muitos erros, inclusive de pessoas indenizadas, por meio de ações individuais, que nunca atuaram na atividade. “Tem gente que recebeu como caranguejeiro sem nunca ter colocado o pé na lama”, denuncia. “Enquanto isso, nós somos tratados como invasores por empresas que ocupam cada vez mais espaço na baía. A situação piorou com o pré-sal. Precisamos de apoio porque as atividades pesqueiras estão sendo dizimadas e a nossa sobrevivência está cada dia mais ameaçada”, ressalta a caranguejeira que, chorando, pediu ajuda à reportagem de O Eco para tornar pública a situação de pobreza extrema que as comunidades estão enfrentando.
Pescadores de longa trajetória estão entre os mais decepcionados
A memória da pescadora Zaine dos Santos Coutinho, 77 anos, sobre o vazamento de óleo de 2000 está muito vinculada ao grande prejuízo financeiro que sofreu. “Perdi barco, rede, peixe e tudo o que tinha na época. Tive que comprar outro barco por 10 mil reais e tudo se tornou mais difícil”, recorda. Depois de ter enfrentado todas as consequências dessa perda, seu relato, no sábado, expressou o desgosto sentido por não ter encontrado o seu nome na lista oficial de pagamento das indenizações. Ela considera que o acordo firmado entre a Feperj e a Petrobras está “carregado de injustiças” e ressalta que também teve um companheiro pescador que morreu sem ter tido a oportunidade de receber essa reparação. “Espero que os filhos dele (nascidos de uma união anterior) consigam receber essa indenização”, observa.
Documentada como profissional, desde a década de 1980, a pescadora conta com orgulho que integra a Colônia de Pesca Z-10, da Ilha do Governador, a primeira criada no Brasil, além de ter sido pioneira na Baía de Guanabara, abrindo caminho para outras mulheres nesse ambiente historicamente ocupado pelos homens. “Comecei a pescar em 1979. Embaixo da ponte Rio-Niterói muitas vezes eu chegava a tirar uma tonelada de peixe por dia. Mas com o passar do tempo, várias espécies foram desaparecendo. A poluição está acabando com a Baía de Guanabara e dificultando a continuidade da nossa profissão”, observa. Ela informa que, somente nos últimos três anos, deixou definitivamente de viver da pesca.
Outros pescadores mais antigos também demonstraram descontentamento com o desfecho do acordo anunciado. Geraldo de Jesus Coutinho Salles Paiva, 68 anos, dos quais, 40 anos dedicados à pesca na Baía de Guanabara, foi um deles. Na fila para a checagem do seu nome na lista de pagamento ele afirmou que esperava receber a sua parte, embora considerasse a falta de perspectivas de “compensação justa pela longa espera”. Argumentou, ainda, que tomou conhecimento de muitos casos de “oportunistas que se passaram por pescadores e receberam valores altos em ações judiciais individuais, enquanto a maioria, realmente prejudicada, espera até hoje pela indenização”.
Paiva conta que quando ingressou na profissão via cardumes de botos com frequência, além de outras espécies em abundância. “Tinha até tubarão-martelo na baía. Hoje a realidade é de lama, óleo, esgoto e todo tipo de poluição. Muitas empresas continuam causando danos e não pagando por isso”, afirma. Ele acrescenta que diante da falta de fiscalização, além da degradação ambiental, outro grave problema enfrentado é a falta de solução para o excesso de grandes embarcações que disputam de maneira desigual os recursos da baía com os pescadores artesanais.
Outro relato decepcionado foi apresentado por Sidnei Ferreira, 72 anos, mais de 50 dedicados à pesca na Baía de Guanabara. Embora tenha se expressado com orgulho por ser filho, neto e bisneto de pescador e por já ter atuado como presidente da Colônia Z-9, localizada em Magé, ele afirma que a profissão tem sido cada vez mais desrespeitada e desvalorizada. O desfecho da longa batalha judicial, segundo argumenta, é reflexo dessa realidade.
“Estou revoltado. Sinto que fomos prejudicados por um acordo que não representa a nossa vontade. Sabemos que muita gente se beneficiou desse acidente ao longo desses anos todos. Teve até baleiro de trem que recebeu ação individual, enquanto não se fez justiça ao verdadeiro pescador”, desabafa. Para Ferreira, faltou transparência ao longo do processo judicial. “Na federação ninguém nos esclarece nada. Não há informação alguma. Tudo sempre foi tratado em segredo de justiça”, reclama.
O pescador Miguel Pires Ferreira, 60 anos, dos quais, 30 de profissão, relatou a decepção de não ter sido contemplado na lista de pagamento. Ele recorda ter acompanhado de perto o processo de cadastramento dos pescadores e afirma que tomou conhecimento, na época do vazamento, “de que até atravessadores foram cadastrados para indenização”. Lamenta também a falta de diálogo entre a Feperj e as lideranças comunitárias. “A federação nunca quis conversar com a gente”, conclui.
Uma batalha judicial de muitos reveses
Desde 2000, uma complexa batalha judicial passou a ser travada para garantir a indenização das comunidades afetadas. Controvérsias ao longo desses quase 20 anos envolveram, sobretudo, a quantidade de atingidos pelo vazamento e o tempo de duração dos impactos ambientais que, por sua vez, prejudicaram as atividades pesqueiras.
Alguns dos principais movimentos dessa disputa judicial são recordados pela advogada Elza Maimone, representante do coletivo Pescador com Dignidade que ajudou a fundar, em 2015, atualmente com 9,8 mil integrantes de 42 comunidades do entorno da Baía de Guanabara. Inicialmente, uma ação coletiva foi ajuizada pela Feperj, em 2000, contra a Petrobras. Além de indenização por danos morais e materiais, a instituição reivindicava lucro cessante por dez anos, considerando esse o prazo necessário para a recuperação ambiental dos ecossistemas dos quais as comunidades pesqueiras dependem, diretamente.
Em 2007, o pedido foi julgado procedente pela justiça (em primeira instância), “mas a Petrobras recorreu”, explica a advogada. A decisão foi mantida em segunda instância. “A empresa recorreu novamente”. Segundo Maiomone, a companhia aceitava indenizar pouco mais de 12 mil pescadores (cadastrados pelo Ibama) somente por 45 dias, período em que a pesca ficou interrompida na Baía de Guanabara, além de contestar uma listagem “com cerca de 30 mil nomes elaborada pela Feperj”.
Mas depois de outros reveses que envolveram longas disputas judiciais para pagamento aos pescadores, por intermédio da Feperj, conforme a instituição reivindicava, além de contestação da Petrobras para que a indenização fosse efetuada de forma individual a esses afetados ou aos seus herdeiros, as partes firmaram um acordo para por fim ao litígio, embora as comunidades pesqueiras considerem que essa conciliação não responde às demandas de duas décadas.
Mas a advogada explica que a disputa jurídica ainda não chegou completamente ao fim já que deverá ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2020, o mérito dessa questão temporal. Maimone já havia entrado com petição, em 2018, em nome do coletivo, pedindo urgência nesse julgamento. Segundo recorda, um parecer do subprocurador-geral da República, Antonio Carlos Martins Soares, expedido naquele ano, já havia sinalizado ser favorável ao reconhecimento de reparação pelo período de dez anos.
Diante da gravidade das condições de pobreza dos pescadores, a advogada relata, ainda, que já foram realizadas três mobilizações recentes do coletivo para cobrança do pagamento das indenizações. A última delas ocorreu no dia 29 de novembro, quando uma comissão de lideranças foi recebida na sede da empresa, no centro do Rio, e informada de que até o final de dezembro haveria um desfecho dessa reivindicação. “Infelizmente, após esse movimento, a federação fechou um acordo sem consultar os pescadores e eles saíram perdendo”, conclui.
A inspetora educacional aposentada, Sidneia Maria Cândido do Nascimento, uma das fundadoras e apoiadoras do coletivo Pescador com Dignidade também considera que o acordo é prejudicial aos pescadores. Ao longo de quase 20 anos, segundo ressalta, muitos erros foram verificados no andamento do processo de reparação. “Eu mesma já fui prejudicada”, observa. Como herdeira de uma ação, ela conta que desde 2007 tenta se habilitar para o recebimento da indenização e, entre idas e vindas na burocracia judicial, seu processo já foi inclusive perdido. Foi preciso entrar com uma reclamação recentemente na Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para localizar as informações.
“Têm muitos pescadores que não sabem onde estão os seus processos e que não têm informações pessoais reconhecidas no sistema. Eu que sou uma pessoa esclarecida, defensora dos meus direitos, tenho enfrentado dificuldades, imagino o sofrimento de muita gente pouco instruída não sabe a quem recorrer. Esse foi um dos motivos que nos levaram a criar esse coletivo”, ressalta Sidneia.
Ela acrescenta que o coletivo Pescador com Dignidade também se mobiliza em rede para angariar donativos para os pescadores que se encontram em situação de maior vulnerabilidade social. Alimentos, roupas, calçados, produtos de primeiros socorros e outros itens são reunidos pelo grupo para doação. Neste momento, o recolhimento está sendo organizado para distribuição no Natal.
O pescador Santelmo Rezende de Carvalho, 59 anos, um dos que também não encontraram o seu nome na lista dos que serão indenizados, apesar de 30 anos de atuação na Baía de Guanabara, confirma o quadro de extrema pobreza enfrentado por muitos colegas de profissão. Ele relata que já perdeu a conta de quantas vezes se mobilizou para doar alimentos para famílias que têm cada vez menos recursos pesqueiros para vender e se alimentar. “A nossa categoria sofre com o descaso e com a falta de perspectivas. Somos uma profissão em extinção,” afirma. Durante a entrevista, ele mencionou a situação de um pescador que passou mal na fila. “Não duvido que ele tenha se sentido mal de fome. Já vi muitas situações assim”, lamenta apresentando uma cópia do pedido de seguro-defeso do colega que ainda aguarda pela confirmação do benefício previdenciário destinado aos pescadores artesanais que ficam impedidos de pescar devido à proteção de espécies marinhas. O defeso do caranguejo, por exemplo, vai de outubro a dezembro.
A reportagem de O Eco manteve contato com a Petrobras para solicitar esclarecimentos sobre o acordo firmado. Segundo resposta enviada, por intermédio de sua assessoria de imprensa, a companhia informou que “o Poder Judiciário homologou, nesta terça-feira (3/12), o acordo celebrado entre a Petrobras e a Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (FEPERJ) para pôr fim à ação judicial decorrente do vazamento de óleo ocorrido em 18/01/2000, na Baía de Guanabara”. Ainda segundo a resposta encaminhada “o acordo beneficia aproximadamente 12.000 pescadores indicados em lista definida pelo Poder Judiciário”. A nota esclarece que “a previsão é iniciar os pagamentos em até 60 dias, em cheque, diretamente para cada uma das vítimas.”
Foi mantido contato também com a Feperj, à qual foram encaminhadas várias questões referentes à disputa judicial decorrente do vazamento de 2000. Mas, por intermédio de sua assessoria de imprensa, a instituição respondeu que não havia mais nada a acrescentar às informações já divulgadas pela Petrobras. Posteriormente, foram solicitadas, ainda, respostas sobre o descontentamento dos pescadores com o acordo firmado, manifestado na reunião de sábado, mas a Federação reiterou nesta segunda-feira, dia 9, que não iria se pronunciar sobre o tema.
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O post “Após duas décadas de espera, acordo para indenização gera revolta” foi publicado em 10th December 2019 e pode ser visto originalmente na fonte ((o))eco