Eu deveria ter escrito este post ontem, mas não deu.
Então. Ontem a pediatra Mayra Pinheiro, mais conhecia como Capitã Cloroquina, depôs na CPI da Covid, no Senado. Chamada para explicar sua atuação ao liderar uma comitiva do Ministério da Saúde ao Amazonas em janeiro, bem quando o Estado vivia um colapso, com falta de oxigênio e leitos, ela conseguiu um habeas corpus do STF para poder não falar sobre isso. Esteve lá basicamente para blindar o genocida-mor, mas, sem querer, contradisse o ex-sinistro Eduardo Pazuello (que deve ser convocado para depor novamente). Agências de checagem de fatos apontam pelo menos doze mentiras de Mayra na CPI.
Mayra foi uma das responsáveis pela lamentável plataforma TrateCov , que indicava cloroquina para pessoas (bebês inclusos) com qualquer sintoma. Para tentar se livrar da responsabilidade, inventou que a plataforma havia sido hackeada.
Ainda teve que passar pelo constrangimento de ser questionada sobre uma declaração absurda que fez algum tempo atrás sobre a Fiocruz, centro de excelência em pesquisa. Para a pediatra, a Fiocruz é um antro de esquerdistas tão perversos que até colocam pênis na entrada do prédio. Merecidamente, Mayra foi muito zoada na internet.
Essa desgraça é do Ceará.
Poucos tinham ouvido falar da figura antes d’ela estampar uma foto na capa do maior jornal do Brasil, a Folha de SP. Era final de agosto de 2013. Era o fim do primeiro dia de treinamento em Fortaleza de 96 médicos estrangeiros recém-chegados ao Estado. 79 desses médicos eram cubanos.
Um deles era Juan Delgado, negro, uma cor não muito comum entre médicos brasileiros, quase todos crias da elite. Juan e seus colegas saíam da Escola de Saúde Pública, quando foram vaiados e xingados por médicos brasileiros, que gritavam “escravos”, “incompetentes”, e “voltem pra senzala”.
Uma delas era Mayra Pinheiro, branca, loira, que não viu nenhum problema em chamar um colega negro de “escravo” e mandá-lo voltar pra senzala . Num país não racista, tal atitude, se não rendesse cadeia, no mínimo sepultaria as ambições políticas da médica. No Brasil, foi o que garantiu que Mayra sonhasse com o poder.
Mayra nega tudo — apesar de ter usado a sua participação nos protestos contra os médicos cubanos como parte de sua campanha para deputada. Tem foto e tudo, mas ela diz que não vaiou os cubanos. Na realidade, ela nem nega. Numa entrevista à Folha em 2018, ela explicou que chamar os cubanos de escravos não era racismo, era porque a maior parte do pagamento iria para Cuba. Perguntada se estava no protesto, ela respondeu: “Quando eu chegar no céu São Pedro vai falar: é verdade que você vaiou os médicos cubanos? E eu falo: pergunta para Deus que ele sabe. Não adianta o quanto eu fale, sempre vão me perguntar isso”.
Em outras palavras: Mayra vaiou os médicos cubanos, como mostra a foto, e os chamou de escravos? Só Deus sabe. E olhe lá.
Um mês depois desse incidente vergonhoso, racista e xenófobo, a então presidenta Dilma pediu desculpas a Juan e o homenageou em uma cerimônia em que anunciava que mais 3,5 mil médicos estariam atendendo brasileiros nos rincões do país através do Mais Médicos.
Em 2014 Mayra foi candidata à deputada federal pelo PSDB, mas não se elegeu. Em 2018, ainda pelo mesmo partido, candidatou-se à senadora e foi bem votada (ficou em quarto lugar). Depois se filiou ao Partido Novo. Faz parte do grupo RenovaBr (o mesmo que está por trás da deputada Tabata Amaral, recém-saída do PDT). Saiu do Novo recentemente por discordar com João Amoedo, que defende o impeachment de Bolso.
Mandetta foi responsável por levá-la ao Ministério. Adivinhe pra quê? Para ser secretária da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, responsável pelo programa Mais Médicos . Uma opositora ferrenha do programa tornou-se a diretora do programa. Faz sentido: o ministro do Meio Ambiente é lobista contra o meio ambiente, todos os ministros da Educação odeiam a educação (principalmente os professores e alunos universitários).
Mayra ficou no ministério muito mais do que Mandetta. Quando Pazuello assumiu a pasta, ela virou uma das poucas médicas no Ministério da Saúde, repleto de milicos. Acabou acompanhando o general em várias coletivas. Além do mais, o Exército estava ansioso para despachar o estoque de cloroquina. Encontrou em Mayra uma porta-voz perfeita da anti-ciência.
Mayra se descreve no Instagram como “uma vida inteira dedicada à medicina. São mais de 30 anos de estudos, mestrados e doutoramentos até chegar ao Ministério da Saúde”. Incrível como ela coloca essas titulações no plural, visto que ela tem apenas um mestrado (de 2002), e está no terceiro ano do doutorado em Bioética na Universidade do Porto, em Portugal. Ela se formou em medicina em 1991 na UFC e foi presidente do Sindicato dos Médico do Ceará entre 2015 e 2018.
Além do mais, a Capitã Cloroquina é um dos principais nomes antiaborto no Ceará. Outro é o senador Eduardo Girão (Podemos), criador do projeto Bolsa Estupro. O movimento “Ainda Há Bem” mistura pró-cloroquina e anti-aborto. Em abril o Coco Bambu bancou 10 outdoors do movimento (vale destacar a observação do ginecologista obstetra Cristião Rosas, que diz que nunca houve tantos movimentos de médicos conservadores no Brasil. Ele, que é presbiteriano, é contra misturar religião e ciência: “Também sou médico pela vida, mas pela vida das mulheres. Ser pró-vida não é ser antidireitos”).
Esta CPI está lhe fazendo muito bem, rendendo-lhe popularidade e fama entre bolsominions. Ela deve se candidatar à deputada federal ano que vem. Se for esperta, vai esperar Bolso se filiar a algum partido para então entrar no mesmo ninho.
O post “ANTES DE VIRAR CAPITÃ CLOROQUINA, DOUTORA MANDAVA MÉDICOS NEGROS VOLTAREM À SENZALA” foi publicado em 26th May 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva