Por várias noites, os latidos se repetiam. Sons que não deveriam ser ouvidos no coração de um Parque Nacional, mesmo quando a unidade em questão é o Parque Nacional da Tijuca, imerso na cidade do Rio de Janeiro. Tive o privilégio, durante meus dias de biólogo, de auxiliar no projeto de reintrodução de cutias na Tijuca , e – como o adorador de cães que sou – era estranho sentir um frio na espinha toda vez que um latido ecoava na floresta. Apesar dos esforços dos funcionários do Parque em controlar esses animais, alguns cachorros de casas do entorno da Tijuca adentravam a mata, e outros eram abandonados às escondidas por lá. Por conta disso, mais de uma vez, observamos um cão (ou vários) perseguindo uma cutia.
Felizmente, o projeto foi bem sucedido em restabelecer uma população desses roedores na floresta, que hoje se mantém lá por conta própria, sem qualquer auxílio humano. Outras histórias de conservação envolvendo animais domésticos não tiveram um final feliz. Cães foram os principais responsáveis pela extinção de 11 espécies de pequenos mamíferos, aves e répteis em todo o mundo. Gatos, dotados de instintos de caça que sobreviveram muito bem à milênios de domesticação, acrescentam 63 outras espécies a esta lista. Para além de extinções, estima-se que esses felinos matem algo entre 1,3 e 4 bilhões de pássaros e 6,3-22,3 bilhões de pequenos mamíferos anualmente apenas nos Estados Unidos. Juntos, nossos dois companheiros animais mais comuns continuam a ameaçar centenas de espécies, e são parte de um problema de conservação muito maior do que eu poderia imaginar há algumas poucas semanas atrás.
“Eu nunca estive no Brasil, mas este é o microcosmos perfeito da tensão que eu pretendia abordar,” conta Peter Christie. Peter é um jornalista especializado em questões de meio ambiente e vida selvagem, e sua obra mais recente – Unnatural Companions (Companheiros não-naturais) – é a compilação mais abrangente já feita de um tópico controverso dentro do mundo dos amantes de animais: os impactos de animais domésticos na conservação da vida selvagem.
Para minha surpresa, Peter já estava a par da situação de cachorros na floresta da Tijuca antes de eu mencioná-la em nossa conversa. De fato, ele parecia conhecer a questão de animais domésticos no Brasil muito melhor que eu. “Vocês tem mais de 52 milhões de cachorros em seu país – mais cães do que crianças . É inacreditável! Em alguns aspectos, acho que poderia ter escrito todo o meu livro apenas sobre o Brasil, porque essa tensão entre animais domésticos e a vida selvagem parece estar tão à mostra por aí.”
Ele não estava errado. Em 2018, pouco tempo depois de meus anos de campo na Tijuca, Katyucha Von Kossel – coordenadora de pesquisa e manejo do Parque – e colaboradores publicaram um estudo que estimava uma população de 29 cães circulando pelos 40 km2 da floresta, sendo a oitava espécie de mamífero mais detectada no local. Dois anos antes, Isadora Lessa e colaboradores vasculharam a literatura científica e entrevistaram diretores de parques para averiguar quão longe iam os impactos de cachorros domésticos em Parques Nacionais. Os resultados que encontraram foram surpreendentes: das 31 unidades de conservação avaliadas, 28 confirmaram a presença de cães em seu interior, e 26 já haviam registrado a interação entre esses animais e a fauna nativa, colocando-a em risco por predação, competição por território ou transmissão de doenças. O estudo também levantou uma lista de 37 espécies nativas que já foram observadas interagindo com cachorros em unidade de conservação. Destas, 19 são consideradas ameaçadas no país, e 8 pela Lista Vermelha da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN).
Mas o problema com animais domésticos vai muito além dos parques brasileiros, e muito além de cachorros e gatos domésticos. A atenção do próprio Peter foi conquistada por uma classe completamente diferente de animal. “Tudo começou quando eu estava fazendo uma história sobre os esforços do Canadá de parar a importação de salamandras por conta do potencial espalhamento de um fungo que havia sido introduzido na Europa, vindo do sul da Ásia, que estava dizimando populações de salamandra na Holanda e na Bélgica.” O fungo em questão era Batrachochytrium salamandrivorans, um parente próximo do fungo que infecta espécies de sapo no mundo inteiro, e já pode ter levado à extinção mais de 90 delas. Em ambos os casos, o comércio de animais de estimação exóticos parece estar implicado na propagação dos fungos através dos continentes.
Esse não é o único caso em que patógenos vindos de animais de estimação causam grandes estragos em populações de animais selvagens. A Cinomose Canina e a Toxoplasmose são outras duas doenças carregadas por nossos companheiros mais comuns que já causaram danos em todo o mundo, devastado populações de espécies ameaçadas (como no caso de diversos predadores africanos) e levando outras às portas da extinção (como o furão-do-pé-preto, na América do Norte). Também não é o único caso em que animais de estimação transportados através do mundo causaram graves problemas.
Pítons Birmanesas, nativas do sudeste asiático, encontraram seu caminho até os Everglades, da Flórida, passando pelas mãos de donos que as abandonaram, possivelmente porque seus animais – uma das cinco maiores espécies de cobra do mundo – haviam crescido “demais”. Chegando em seu novo lar por volta do ano 2000, essas constritoras encontraram um ambiente extremamente favorável para seu modo de vida. Hoje, as regiões ocupadas pelas cobras registram reduções de 99,3%, 98,9% e 87,5% nas populações de guaxinims, gambás e linces, respectivamente. Nenhum coelho, outro habitante nativo dos Everglades, foi detectado pelo estudo que averiguou este declínio .
A própria retirada de animais da natureza para servirem como animais de estimação é um problema grave para diversas espécies. Somente no Brasil, é estimado que o comércio ilegal de aves atinja mais de 400 espécies , quase um quarto de toda nossa avifauna, incluindo 36 espécies com algum grau de ameaça segundo a IUCN.
Esses são apenas alguns dos exemplos dos estragos que animais de estimação podem causar à populações selvagens diretamente. A indústria ligada a esses animais também traz impactos indiretos à conservação, principalmente no que diz respeito à derrubada de florestas e outros ambientes para atividades agropecuárias que servem nossos companheiros animais. O consumo de carne por apenas cães e gatos rivaliza com o de países inteiros , de forma que se esses animais formassem sua própria nação, ela seria a quinta maior consumidora de carne do mundo.
Apesar de todos esses impactos, Peter não é contra nossa prática de manter animais de estimação. Muito pelo contrário. “Eu sou um dono de animal também,” ele conta. Sua cadelinha, Maggie, foi uma companheira indispensável durante as longas horas de escrita que levaram ao seu livro. “Nós somos uma comunidade, uma tribo, e deveríamos agir conjuntamente pelo bem de todas as criaturas.”
Segundo o autor, os problemas que temos com a indústria de animais de estimação se deve a um erro em nosso senso de biofilia. Biofilia, uma hipótese cunhada por Edward O. Wilson – um dos biólogos mais reverenciados do mundo e professor na Universidade de Harvard, nos EUA –, é a tendência que nós humanos temos de buscar conexão com a natureza e com outros seres vivos. Peter acredita que nossos companheiros animais tenham sequestrado boa parte da nossa atenção, nos deixando parcialmente cegos em relação aos outros seres vivos que estão mais distantes de nós.
“Minha esperança com este livro é inspirar donos de animais de estimação a se juntar à legião de conservacionistas,” Peter continua, “e que comecem a mudar seus hábitos para se alinhar melhor com os objetivos da conservação.” É tudo uma questão de manter práticas saudáveis para com nossos companheiros. A culpa de todos os danos causados à vida selvagem obviamente não é de nossos animais em si. São seus donos que tem o poder – e a responsabilidade – de impedir ou amenizar todos os impactos citados acima. E as recomendações para um convívio mais sadio entre nossos animais de estimação e animais selvagens são bem simples.
É importante não deixar cães e gatos livres e desassistidos em ambientes naturais, especialmente em áreas protegidas. Se não é viável manter esses animais próximos o tempo todo, existem aparatos que podem diminuir consideravelmente seus danos, como pequenos chocalhos e coleiras coloridas que impedem que nossos felinos caseiros surpreendam suas potenciais presas. Animais não devem ser abandonados, mesmo que o ambiente de soltura pareça adequado para eles. Por motivos similares, peixes e água vinda de aquários não devem ser despejados diretamente em fontes naturais. Donos de aves e animais de estimação mais exóticos devem se manter muito atentos à origem dos animais que adquirem. Buscar marcas de ração e brinquedos com as práticas mais sustentáveis possíveis também é de grande ajuda.
Por último, conclui Peter, todos nós amantes de animais podemos fazer um esforço para olhar para além das criaturas que nos fazem companhia diariamente, e dar um pouco de atenção à milhões de outros que dividem o planeta conosco. “Se diminuirmos um pouco o impacto de nossos animais, e colocar apenas um pouco de nosso dinheiro e energia na proteção de outros seres vivos, podemos transformar a conservação.”
Leia Também
Além de Tibbles: descoberta e extinção da cotovia-da-ilha-Stephen
O post Animais domésticos matam bilhões de silvestres e levam espécies à extinção apareceu primeiro em ((o))eco .
Fonte
O post “Animais domésticos matam bilhões de silvestres e levam espécies à extinção” foi publicado em 6th April 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco