A Constituição brasileira estabelece que água é um bem de uso comum do povo, recurso natural limitado e essencial à vida, ao desenvolvimento econômico, ao bem-estar social e ao equilíbrio dos ecossistemas. Para sua gestão e governança, há 25 anos foi sancionada a Lei 9.443/1997 que instituiu a Politica Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos.
Considerada o verdadeiro Marco da Gestão e Governança das Águas no Brasil por dotar o país de um instrumento democrático, contemporâneo e em sintonia com as diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU) a Política Nacional de Recursos Hídricos incorporou conceitos fundamentais para sustentabilidade em seus princípios: gestão descentralizada e integrada, promoção da participação social, adoção da bacia hidrográfica como unidade de planejamento, reconhecimento da água como elemento escasso dotado de valor econômico.
Há mais de uma década a ONU declarou o acesso à água e ao saneamento como direito humano. A realidade no Brasil, especialmente neste momento de emergência climática e crise hídrica, evidencia o enorme desafio para tornar a aplicação dessa Resolução da ONU efetiva e promover a tão almejada universalização do saneamento e a segurança hídrica. Um importante passo nesse sentido foi dado pelo Senado Federal ao aprovar em março de 2021, na semana da água, por unanimidade, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC No. 06/2021) que torna o acesso à água potável direito fundamental dos brasileiros.
Neste ano de 2022, na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Ambientalista por meio do Grupo de Trabalho Água, Segurança Climática e Gênero, coordenado pela deputada federal Talíria Petrone (PSOL – RJ) priorizou reunir esforços em conjunto com organizações sociais, redes, fóruns, com o Observatório da Governança da Água e especialistas do setor de recursos hídricos para aprovar a PEC No. 06/2021.
O reconhecimento Constitucional do acesso à água potável como direito fundamental fortalece os fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos de que a água é um bem de domínio público (Inciso I do art. 1º) inalienável (art. 18) e afasta dessa forma a sua privatização. Estabelece que a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas e em caso de escassez o uso prioritário é o abastecimento público e a dessedentação de animais.
A política pública instituída pela Lei No. 9433/1997, fruto de amplos debates com a sociedade civil, comunidade científica, usuários de água e especialistas do setor preconiza um modelo inovador e inclusivo de governança da água que resultou na implementação de 246 (duzentos e quarenta e seis) Comitês de Bacias Hidrográficas no país. Esses colegiados, deliberativos são a base da gestão dos recursos hídricos, que tem como fundamento a descentralização e a participação dos usuários da água, da sociedade civil e do Poder Público, para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos.
Na contramão da Lei das Águas do Brasil, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional, na última semana do ano legislativo de 2021, por iniciativa do Ministério de Desenvolvimento Regional a intenção de privatizar a água, com a adoção da outorga onerosa e do que chama equivocadamente de um novo marco hídrico para o país, inserindo mais um instrumento de gestão, alheio a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos, descaracterizando o teor e a base, de cunho constitucional, do sistema de gestão das águas.
De forma antidemocrática esse projeto de lei foi enviado à Câmara dos Deputados sem discussão com a sociedade e em desrespeito aos integrantes do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, especialmente ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, aos Conselhos Estaduais e Comitês de Bacias Hidrográficas. Rompendo definitivamente com a todo o processo participativo e de governança que marcam os 25 anos da história de construção do Sistema de Recursos Hídricos.
O projeto de lei 4546/2021 institui o Sistema Nacional de Infraestrutura Hídrica e fere os princípios da Política Nacional de Recursos Hídricos, esvazia a competência dos Comitês de Bacias e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, centraliza a gestão da água e desconsidera tudo o que vem sendo pactuado e construído por essa grande rede de organismos de bacias, sistemas estaduais de recursos hídricos, municípios, usuários da água e organizações civis.
Elaborado sem transparência, o PL 4546/2021 deturpa conceitos de gestão e da governança da água, princípios legais e constitucionais. Diante da ameaça de mais esse retrocesso, elaboramos a Nota Tecnica PL 4546 em defesa da gestão participativa, integrada e descentralizada da água no Brasil e repudiamos retrocessos à Política Nacional de Recursos Hídricos e ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Destacamos que segurança hídrica não se garante apenas com infraestrutura hídrica. O conceito de segurança hídrica é bem mais abrangente e requer ações integradas de várias políticas públicas, em especial de meio ambiente, clima e recursos hídricos. Para a ONU, segurança hídrica é “assegurar o acesso sustentável à água de qualidade, em quantidade adequada à manutenção dos meios de vida, do bem-estar humano e do desenvolvimento socioeconômico; garantir proteção contra a poluição hídrica e desastres relacionados à água; e preservar os ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política”.
O Brasil adotou a partir de diretrizes e critérios advindos do conceito de Segurança Hídrica, inserido no Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH) lançado pelo Governo em 2019, com fundamento no planejamento integrado.
Diante das inconsistências, dos equívocos conceituais e da insegurança jurídica que o projeto de lei no. 4546/2021 apresenta, bem com da forma inadequada de seu encaminhamento, em total desrespeito à sociedade brasileira, ao Sistema Nacional de Recursos Hídricos e a todos os seus integrantes, vimos por meio deste Manifesto repudiar veementemente a propositura e pedir que seja arquivada pelo Parlamento brasileiro.
Para tanto, apresentamos ao Congresso Nacional e à sociedade nosso posicionamento em defesa da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Recursos Hídricos que vêm sendo construídos e implementados com esforços e contribuição da sociedade, da comunidade científica, dos usuários dos recursos hídricos e dos gestores públicos, em nome da Governança da Água no Brasil.
O projeto de lei proposto pelo Governo Federal apresenta distorções graves, como é o caso da natureza jurídica da água; da falta de participação pública para gestão de um bem comum, estabelecida no Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; e do acréscimo de um mecanismo alheio aos instrumentos de gestão da Lei das Águas – a outorga onerosa, bem como a privatização de serviços hídricos.
Riscos e lacunas do PL 4546/2021:
- NÃO TRATA DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
- NÃO TRATA DE SOLUÇÕES BASEADAS NA NATUREZA quando fala de infraestrutura hídrica, limita-se apenas a realização de obras convencionais, reconhecidamente insuficientes para garantir segurança hídrica. É preciso investir em soluções baseadas na natureza.
- Visa PRIVATIZAR O USO DA ÁGUA
- NÃO PROMOVE A INTEGRAÇÃO DA GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS COM A GESTÃO AMBIENTAL
- CENTRALIZA A GESTÃO DA ÁGUA
- INVIABILIZA O FUNCIONAMENTO DOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS, ao inserir a CESSÃO ONEROSA de forma equivocada e arbitrária
- ENFRAQUECE OS COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS E OS CONSELHOS DE RECURSOS HÍDRICOS
- Limita INFRAESTRUTURA HÍDRICA A OBRAS
- Reduz o PLANEJAMENTO e trata APENAS DA CONCESSÃO DE SERVIÇOS.
- DESVIRTUA E DESCONFIGURA A OUTORGA DE USO DA ÁGUA
Brasil, fevereiro de 2022
Observatório da Governança das Águas – OGA Brasil
Autores:
Angelo Lima
Claudio Di Mauro
Eldis Camargo
Elis Araujo
Flavio Montiel
Francisco Carlos Bezerra da Silva
Maria Luisa Ribeiro
Marcelo Naufal
Mauri César Barbosa Pereira
O Manifesto está aberto para adesão de instituições e pessoas no seguinte link:
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