Duas orientações de prevenção aparentemente simples contra a Covid-19, evitar aglomerações e lavar as mãos com água e sabão, são uma realidade distante para milhares de brasileiros moradores de favelas e cortiços [unidades habitacionais em condições inadequadas de moradia] em São Paulo e Rio de Janeiro, cidades onde há mais casos de coronavírus no país.
É o caso de Vera Lúcia Silva, moradora de um cortiço no bairro do Glicério, região central de São Paulo. A dona de casa está muito preocupada com o avanço do coronavírus. Não bastassem os 53 anos de idade, faixa etária em que a mortalidade pela Covid-19 triplica em relação às pessoas na casa dos 40 anos , Vera é portadora do vírus HIV há cerca de 20 anos.
Ela conta que contraiu o vírus após ser estuprada pelo ex-marido, o que resultou em uma gravidez. “A gente estava separado, eu não estava com ele mais. Ele me pegou na marra. Eu sabia que ele era soropositivo”, relembra. Vera teve que ministrar coquetéis de medicamentos ao filho durante meses e não pode amamentá-lo. Hoje, ele tem 19 anos de idade, mas não contraiu o HIV.
Desde então, a dona de casa faz o tratamento com medicamentos retrovirais, mas agora se sente vulnerável ao Covid-19 pelo acúmulo das chamadas comorbidades, ou seja, dos problemas de saúde que carrega. Além de fumante, Vera tem bronquite. “Eu fumo, meu amigo. O mal meu é esse”, conta.
Além dos problemas de saúde que a colocam no grupo de risco, suas condições de moradia favorecem a transmissão do coronavírus. Ela vive em um cortiço com cerca de 10 famílias dividindo um espaço de aproximadamente 30 metros quadrados com quase nenhuma ventilação. E cuida dos filhos dos vizinhos de cortiço, onde moram oito crianças para completar a renda que vem do auxílio-doença pago pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) por ser portadora de HIV. Com a suspensão das aulas na rede estadual e municipal de ensino em São Paulo, anunciadas para o próximo dia 23, a aglomeração e os riscos de contágio vão aumentar.
A dona de casa se emociona ao falar sobre o coronavírus. “Eu falei com a minha mãe no telefone. Eu disse pra ela: ‘mãe, eu lutei 20 anos para sobreviver do HIV e morrer dessa gripe agora é foda’. É morrer na praia, né?”, diz, associando o Covid-19 à gripe comum.
Só nas subprefeituras da Sé e da Mooca, foram contabilizados 1.506 imóveis em situação de cortiço em 2015. Não existem, porém, dados atualizados sobre essas moradias precárias e sua população residente.
Como uma “gripe”
Mesmo em situação de aglomeração, alguns vizinhos de Vera fazem pouco caso do problema. “Eu não estou muito preocupada com esse coronavírus, não. Falaram pra mim que é como se fosse uma gripe”, relata a dona de casa Rosângela Santos. Outra moradora, mais jovem, preocupa-se mais com o efeito econômico da pandemia. Ela tira a renda mensal da venda dos mousses que faz pelas ruas do Glicério. “Eu já não estou nem mais saindo de casa porque o movimento caiu demais. Não está valendo a pena. Espero que não dure muito isso”, diz Jessica Barbosa, de 28 anos.
Assistentes sociais que atendem a população em cortiços e ocupações no centro de São Paulo temem a possibilidade de proliferação da Covid-19. “A gente vai fazer visita externa e o pessoal me pergunta: ‘Monica, como a gente faz para se proteger? Esse negócio existe, mata mesmo?’ E a gente diz que existe, explica as coisas. Só que eles vivem de uma maneira totalmente insalubre e geralmente não têm nutrição adequada”, conta a assistente social Monica Quenca, da Missão Paz, organização ligada à paróquia Nossa Senhora da Paz, que faz trabalho social na região do Glicério.
No cortiço onde vive Vera, ela conta que redobrou os cuidados, mas lamenta não ser possível um isolamento maior já que a divisão entre as moradias se dá por paredes de madeirite e os moradores frequentemente entram nas casas uns dos outros. “Estamos tentando manter distância e lavando as mãos quando dá, mas não temos condições para comprar álcool em gel”.
Desigualdade: “Esse vírus não é democrático”
Atualmente, aproximadamente 13 milhões de pessoas vivem em favelas do país, muitos sem acesso ao saneamento básico. Dados do Instituto Trata Brasil registram que 35 milhões de brasileiros não têm acesso à rede de água potável e 95 milhões não possuem coleta de esgoto em seus locais de moradia.
Segundo Antonio José Leal Costa, médico sanitarista e diretor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o álcool gel, apesar de eficiente, não é uma medida acessível para a população adquirir. “É uma alternativa quando não se dispõem de água, mas não é viável em termos de custo”.
De acordo com ele, se existisse um mapa, seria possível ver que todas as vulnerabilidades estariam sobrepostas: “onde há piores condições de saneamento e acesso à água, também há maior aglomeração e maior precariedade em termos de trabalho e de renda”, diz.
Moradora de Belford Roxo, zona metropolitana do Rio de Janeiro, a diarista Vanda do Carmo, 54 anos, engrossa a estatística dos que sofrem com a falta de acesso à água potável e coleta de esgoto — 23,5% e 61,2% respectivamente em Belford Roxo —, segundo dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre saneamento (SNIS).
No bairro em que reside, a maioria dos moradores recorre ao poço artesiano como alternativa à falta de água encanada. “É uma água não tratada, nós usamos para tomar banho, lavar a louça”, diz.
Até momento, a baixada fluminense não registrou casos de Covid-19, mas Vanda se sente exposta ao avanço da pandemia: “nós também não temos esgoto, nós que fizemos, compramos um cano, fizemos o banheiro e, do banheiro, colocamos o encanamento, que joga o esgoto num valão aberto”, descreve. Segundo ela, moradores de outros bairros da região vêm despejando lixo no mesmo valão, o que faz as ruas alagarem em época de chuva.
Para consumo próprio, Vanda compra diariamente galões de água no mercado da região. “Eu mesma não tenho álcool em gel. Eu moro sozinha, mas meu quintal tem mais gente, tem sobrinhos, irmãs. Eu lavo as mãos com água do poço, mas a gente bota cloro na caixa”, diz.
Os efeitos da quarentena já chegaram até ela. “Eu dependo da minha renda de diarista para sobreviver. No trabalho muita gente falou para eu não ir. Na primeira semana está todo mundo querendo ajudar, mas não é pra sempre, né?”, desabafa.
Sem um plano de atuação oficial do governo para enfrentar a epidemia de coronavírus nas favelas e nas periferias, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Deborah Duprat, enviou ontem [19 de março] ao Ministério da Saúde um ofício para que o governo apresente explicações. “Há relatos na imprensa informando sobre comunidades que estão sem água há seis meses. Se a principal recomendação para a prevenção do contágio é lavar as mãos, queremos saber como o governo vai atuar e evitar a contaminação nesses locais. Além disso, precisamos entender quais serão as medidas a serem tomadas nessas regiões, que são de alto adensamento populacional, onde as casas estão muito próximas umas às outras. Queremos ter essas informações rapidamente, demos um prazo de cinco dias e, se for necessário, vamos acionar a Justiça”, disse a procuradora por telefone.
A situação das regiões sem saneamento diante do coronavírus também preocupa Léo Heller, pesquisador da Fiocruz Minas e relator especial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas (ONU). Para ele, um fator evidente de vulnerabilidade é justamente a concentração de pessoas. “Esse vírus não é democrático. Mesmo que seja democrático na transmissão, não o será na gravidade dos casos, no número de óbitos. Com o passar do tempo, infelizmente, veremos uma repetição do padrão de desigualdade nos efeitos do coronavírus. A transmissão não será igualmente distribuída por essas várias camadas de vulnerabilidade e o acesso à água é uma dessas importantes camadas”, diz.
Sem água na torneira para lavar a mão
O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) , do Ministério do Desenvolvimento Regional, divulga anualmente um diagnóstico da cobertura da rede de água e esgoto nos municípios brasileiros – as informações são fornecidas pelas próprias concessionárias que prestam os serviços.
De acordo com relatório publicado no ano passado a partir de dados de 2018 , apenas 0,7% dos habitantes da cidade de São Paulo (85.238 pessoas) não têm acesso à água tratada – na região metropolitana, a porcentagem é maior, de 1,3% (287.723 pessoas).
No Rio de Janeiro, a situação é pior: a rede de água não chega às residências de 2,6% dos moradores da capital (173.203 pessoas) e, na região metropolitana, o número salta para 8,8%, mais de 1,1 milhão de pessoas.
No entanto, para o médico sanitarista Antonio José Leal Costa, os indicadores de acesso à água não necessariamente refletem a realidade. “Os dados mostram que a cobertura da rede de água em São Paulo e no Rio é alta, mas temos que entender como esse indicador é construído: se baseia mais especificamente na existência de pontos de acesso à água nas residências, ou seja, qual a proporção de domicílios que têm pelo menos uma torneira”, explica. “Essa é uma condição necessária para que se tenha água de maneira contínua e regular dentro de casa, mas não suficiente. Tem que se garantir o abastecimento. É o momento de se colocar essa questão e de pressionar para que essas desigualdades sejam corrigidas definitivamente”, diz.
É o caso dos moradores do Jardim Monte Azul, na periferia sul de São Paulo, que relataram à Agência Pública problemas no abastecimento de água em suas residências. “Sou varredor de rua e trabalho na parte da manhã. Acordo todos os dias de madrugada e quando saio de casa não tem água nem para escovar os dentes”, conta o gari Gustavo Dias, de 32 anos, que mora com a esposa e o filho.
Com a rotina de falta de água durante as noites, Gustavo, assim como outros moradores da favela, criou alternativas para driblar as secas noturnas, com uso de baldes para tomar banho e a instalação de caixas d’água. “Nem todo mundo pode ter uma caixa, mas mesmo assim, ‘os caras’ teriam que ter consciência. O prefeito, o governador, a Sabesp, sei lá. Eles têm que ter mais consideração com a favela. Porque, com certeza, para eles não falta água, mas e a nossa, como fica?”.
Armazenar água não é um problema para a pernambucana Eva Martins de Castro, 60 anos, moradora da favela desde os 21. Com um caixa de 250 litros, o que a preocupa mesmo é o coronavírus.
Com lúpus e diabetes, Eva é grupo de risco e reuniu a família no último final de semana para anunciar que iniciaria seu período de quarentena. “Eu sei que para eu ser contaminada é um sopro, mas estou me cuidando”, diz a educadora, que precisa ir ao posto da saúde para ser medicada periodicamente. “Hoje eu só saí porque tinha que vir no Ambulatório tomar a minha injeção”.
Segundo Rosimeire Marçal da Silva, 43 anos, enfermeira do Ambulatório Monte Azul há 17 anos e nascida na comunidade, o comportamento de Eva, neste momento, ainda é exceção. Para ela, as pessoas têm muitas dificuldades de acreditar nas informações. “Tem muito fake circulando sobre o assunto”, diz, o que faz com que a comunidade fique “sem saber o que fazer ou como agir”. Para lidar com a desinformação, o ambulatório está planejando elaborar um comunicado por escrito e entregar nas casas para dimensionar o “peso e a gravidade” que a situação exige.
Na Monte Azul, explica Rosimeire, a aglomeração de pessoas em pequenos espaços e a necessidade de isolamento dificultada pelo tamanho das casas podem potencializar a disseminação do coronavírus.
“É praticamente impossível manter as pessoas dentro de dois ou três cômodos”, avalia.
“Dentro da comunidade tem casa que tem 10 pessoas. Qual é o tamanho de um imóvel é necessário para isolar tudo isso de gente? 2 ou 3 cômodos não é!”, questiona outro morador, Jefferson Gome da Silva, 26 anos, que também vive às voltas com a falta de água.
A reportagem entrou em contato com a Sabesp e, segundo a companhia, não há nenhum registro de falta de água em seus sistemas. “Não existe racionamento na cidade de São Paulo, o abastecimento de todos os 373 municípios atendidos pela Companhia está e continuará operando normalmente. Eventuais casos específicos de falta de água devem ser comunicados pelo telefone 195, que funciona 24h, todos os dias”, informou em nota.
No entanto, além de presenciar a falta de água nas torneiras, a reportagem da Pública recebeu vídeos de moradores que registram a situação.
Pacote emergencial
Na quarta-feira (18), uma coalizão de associações de saúde – entre elas, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) – divulgou, em carta aberta à Presidência da República, aos governadores e ao Congresso Nacional, um pacote emergencial para enfrentamento ao coronavírus. Nele, há várias medidas voltadas às camadas mais vulneráveis da população, entre elas justamente a isenção nas taxas de água e luz (com apoio de estados e municípios) como forma de prestar assistência financeira direta em resposta à pandemia.
Um dia depois, na quinta-feira (19), o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), atendeu ao chamado e suspendeu por 90 dias a cobrança da tarifa social de água , destinada a residências unifamiliares, desempregados, habitações coletivas ou remoções de área de risco que atendam aos critérios definidos pelo comunicado tarifário: possuir renda familiar de até três salários mínimos, morar em habitação subnormal com área útil de até 60 m², ter consumo de energia de até 170 kWh mensais, entre outros. De acordo com o governo, a medida atingirá 506 mil famílias em todo o estado.
Na manhã de hoje (20), o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), também anunciou a suspensão do pagamento da tarifa social de água em seu estado por um período um pouco menor, de 60 dias. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), disse em entrevista ao jornal O Globo que estuda fazer o mesmo.
Fonte
O post “Aglomerados e sem água: “Lutei para sobreviver ao HIV. Morrer de coronavírus agora é morrer na praia”” foi publicado em 20th March 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública