Ainda mais vago e sem um memorando que possa indicar ao menos um rascunho das intenções bilaterais, como no caso da proposta chinesa , Brasil e Estados Unidos assinaram um acordo que inclui exploração de metais críticos cercado de sigilo.
São pontos nebulosos do anúncio do governo Lula a ausência de salvaguardas ambientais, as contrapartidas sociais e medidas que ajudem na reindustrialização do país, para começar a reverter a lógica de apenas exportarmos commodities.
A celebração foi feita durante o G20, com o presidente Joe Biden em fim de governo e sem cumprir promessas feitas anteriormente ao Brasil . A parceria ampla também pode esconder os objetivos e potenciais riscos dos investimentos dos EUA a partir da gestão Donald Trump, que começará em 2025. Trump é um histórico negacionista climático que está montando seu gabinete com figuras no mínimo controversas e repletas de conflitos de interesse, caso de Elon Musk.
Se o pragmatismo irá imperar, como normalmente acontece quando se trata do setor mineral, será algo a acompanhar.
Os anúncios feitos agora, porém, são amplos e incluem energia limpa, expansão e desenvolvimento da cadeia de suprimentos de energia e minerais até descarbonização dos setores manufatureiro e industrial. O presidente Biden, informou os Estados Unidos, “expressou sua confiança na durabilidade dessa parceria, que se baseia na cooperação bilateral de longa data, como o Fórum de Energia Brasil-EUA e o Diálogo de Minerais Estratégicos”.
Mas, na realidade, os dois governos não produziram qualquer documento ou tiveram atividade relevante em 2024 no grupo de trabalho sobre o tema.
É o que informa a resposta a um pedido de Lei de Acesso À Informação formulado pelo Observatório da Mineração. As informações são da Secretaria Nacional de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia (MME).
“No que concerne ao lançamento da Nova Parceria Brasil-EUA para a Transição Energética, informamos que as tratativas que levaram ao seu anúncio foram conduzidas entre Planalto e a Casa Branca. A SNGM/MME não dispõe de documentos sobre esse assunto”, diz. Criado em 2020 durante a administração Jair Bolsonaro, o GT entre os dois países pouco realizou até o momento .
Além disso, ao responder sobre o diálogo com outros países neste setor, o governo informa que neste ano não foram formalizados GTs bilaterais com outros países, mas firmados memorandos de entendimento, declarações de intenções ou cartas de intenções “com Alemanha, França, Bolívia, Chile e China”.
Procurado para falar deste acordo e com a China, o MME não respondeu os pedidos enviados por meio da assessoria de comunicação até o fechamento deste texto. O espaço continua aberto para esclarecimentos da pasta.
Foto de destaque: Ricardo Stuckert/PR
Investimento massivo, mas apenas em extração e de “segundo plano”
Para Luiza Cerioli, pesquisadora sênior do projeto de pesquisa colaborativa Extractivism.de , a estratégia dos Estados Unidos, como no exemplo do projeto de terras raras Serra Verde, em Goiás, é apoiar suas empresas em “investimentos massivos”.
Mas, segundo a especialista em Relações Internacionais na área extrativista, o interesse norte-americano no Brasil é de diversificar fontes, principalmente do “recurso puro, bruto” e menos em deixar o país processar este tipo de minerais.
“Eles estão investindo massivamente nessa própria capacidade de extração e de processamento. Já extraem, mas é muito caro e eles não têm capacidade de processar tudo o que eles precisam ainda, porém tem projetos internos para suprir essa demanda. Então, eles não têm interesse nenhum de transferir toda essa dependência de processamento para o Brasil. Estão investindo mais na capacidade de processamento na Argentina e na Austrália”, aponta.
Cerioli entende ainda que o mercado brasileiro é mais um “segundo plano” para os Estados Unidos, com o objetivo principal de fugir da dependência chinesa, especialmente para uso de minerais em produtos de Defesa.
“Temos que lembrar que 70% das importações de terras raras dos Estados Unidos vêm da China, então é quase como um oligopólio. Os Estados Unidos tem uma dependência muito grande não só tecnológica, mas se tu for ver militarmente, os jets flights, os drones americanos, eles dependem das baterias que são processadas, o grosso do processo dessas baterias é na China”, diz.
Geopolítica e pragmatismo de Lula reduzem planos a favor do meio ambiente
A pesquisadora também avalia que o acordo entre os dois países é muito amplo, ao incluir cadeias de produção e energia limpa, mercados de carbono, finanças, natureza e biodiversidade e fundos climáticos multilaterais.
“Acho que a parte ambiental está reduzida por uma questão da janela geopolítica. O foco foi muito mais em segurança e interesses nacionais. Proteger a nossa natureza não vende nesse mercado, infelizmente. Essa guinada discursiva do Lula eu não chamaria de uma hipocrisia, mas muito mais de um pragmatismo que é consequencia de um afunilamento do espaço de negociação internacional. Mas acho que é importante para o Brasil criar uma estrutura de negociação coerente e efetiva com todos esses países, manter sua autonomia estratégica e essa diversidade de parceria para diferentes objetivos”, acredita.
“As parcerias com a China, os Estados Unidos e com a União Europeia vão ser diferentes. E eu acho isso é importante. Mas a questão é focar bastante em manter a capacidade de barganha e de fiscalizar as promessas que são feitas, de como estabelecer salvaguardas ambientais e trabalhistas, como criar um ambiente regulatório. A questão principal para a estratégia de industrialização é como negociar algum tipo de transferência de conhecimento e de tecnologia”, sugere Cerioli.
Pressa histórica sem vantagens para o Brasil
Cristina Pecequilo, doutora em Ciência Política pela USP e professora de Relações Internacionais da Unifesp, concorda com as indicações de que o acordo possa apenas ampliar o uso do país como fornecedor de matérias primas minerais para o vizinho da América do Norte.
“Nesse sentido é interessante observar, e teve até uma declaração, uma entrevista da embaixadora americana, alguns meses atrás no jornal Folha de São Paulo, no qual quando questionada sobre os grandes pontos de parceria possíveis , potenciais Brasil e Estados Unidos, ela mencionou justamente a questão dos minerais críticos, estratégicos, e ao mesmo tempo negou possibilidades de parcerias, transferências de tecnologia”, relembra.
Para a professora, o que caracteriza o Brasil hoje em todos esses setores, em todas as suas relações bilaterais, ou bloco a bloco, é justamente uma “razoável pressa em assinar os acordos, mas sem utilizar todo o seu poder de barganha”. “A gente pode especular se isso é pela crise econômica, ou se é por uma preocupação realmente em aparar todas as linhas que foram deixadas em aberto durante o governo anterior e tentar traçar melhores acordos. A questão é que esses acordos cada vez mais não são vantajosos para o Brasil”, avalia.
Na área ambiental, Cristina Pecequilo afirma que o potencial brasileiro também não deverá ser explorado. “Existem mecanismos que permitiriam uma exploração sustentável desses recursos e essas opções não são utilizadas. Então, é algo muito preocupante, mesmo que a gente acabe repetindo os padrões que são históricos na nossa economia, no nosso desenvolvimento científico e tecnológico. O potencial do Brasil, que seria um potencial de barganha, de investimento, acaba sendo desperdiçado”, diz.
Planejar criticamente sobre metais estratégicos
Para Juliana Siqueira Gay, engenheira ambiental e doutora em Ciências pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, os impactos da exploração dos minerais críticos não podem ser “negligenciados”, pois devem seguir os problemas históricos da exploração mineral no Brasil.
“É preciso uma mudança na racionalidade desenvolvimentista para que alguns paradigmas sejam revistos. São necessárias diretrizes e ações para determinação de áreas livres de exploração mineral com base em análises regionais dos impactos ambientais e sociais dessas atividades extrativas, bem como a devida consideração dos impactos cumulativos dessas e outras atividades que operam conjuntamente em determinadas regiões”, acredita.
Para Siqueira Gay, é preciso que haja um planejamento estratégico do setor para além da determinação dos minerais que são críticos, mas sobre o que o Brasil precisa para salvaguardar questões ambientais e sociais relevantes no que a professora chama de “transição energética justa”.
“A questão dos minerais críticos é uma questão geopolítica relevante. As jazidas estão concentradas em alguns poucos países que sofrerão com os impactos da extração, enquanto outros países precisarão importar minerais para o desenvolvimento de suas tecnologias de baixo carbono. Para acordos multilaterais efetivos é preciso reconhecer a necessidade de racionalização de recursos, tecnologia, e instrumentos de política ambiental para que os impactos da extração desses minerais sejam evitados, minimizados e sobretudo, salvaguardados os direitos das comunidades locais”, defende a engenheira ambiental.
Aportes recentes e conflitos antigos
Desde 2011 empresas estadunidenses investem de forma mais acentuada na exploração de minerais críticos no Brasil. Segundo o levantamento “Minerais críticos e estratégicos do Brasil em um mundo em transformação “, do Instituto Igarapé, são 166 registros de investimentos até 2022, o maior entre outros nove países citados no estudo.
Três anúncios podem ser destacados. Todos eles dentro da estratégia dos EUA de fomentar os investimentos de suas empresas privadas no Brasil, assim como em demais países com reservas deste tipo de metais, segundo especialistas ouvidos pelo Observatório da Mineração.
O mais recente é a confirmação, anunciada no último dia 27 de novembro , da liberação do investimento para a Lithium Ionic por meio do Export-Import Bank of the United States, que vai liberar US$ 266 milhões em financiamento do Projeto Bandeira Lithium, em Minas Gerais.
O estudo de viabilidade foi divulgado em maio deste ano e o empreendimento na região do Vale do Jequitinhonha, segundo o comunicado, “representa apenas cerca de 1% do extenso pacote de direitos minerários de 14.182 hectares” da Lithium Ionic. O projeto também prevê uma operação de mineração subterrânea com vida útil de 14 anos.
Segundo o levantamento “Transição Desigual: as violações da extração dos minerais para a transição energética no Brasil”, foram registradas 90 ocorrências de conflitos com comunidades locais no Jequitinhonha, sendo que 21 envolvem projetos de exploração de lítio, envolvendo as empresas Sigma Mineração (17 ocorrências), Companhia Brasileira de Lítio (CBL) (3 ocorrências) e Quartzo Brasil (1 ocorrência).
“O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vem utilizando o discurso do Vale do Jequitinhonha como o ‘Vale do Lítio’, buscando atrair empreendimentos para a expansão da demanda do denominado ‘ouro branco’. Contudo, a população local não tem sido ouvida, sendo suas preocupações e os danos socioambientais ignorados’, informa o estudo divulgado em julho deste ano pelo Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil .
Os pesquisadores destacam ainda que são esperados mais investimentos futuros dos países ocidentais em metais deste tipo no país, que envolvam parcerias e investimentos estratégicos liderados pelo Estado “como a iniciativa de financiamento do governo dos EUA para uma mina de cobalto e níquel no Piauí”.
O projeto citado foi divulgado pela agência governamental americana, a Development Finance Corporation (DFC) ainda em 2023. “A DFC está investindo capital em dois projetos que ajudarão a TechMet Limited a aumentar a produção e fortalecer as cadeias de suprimentos de minerais críticos. No Brasil, o investimento de US$ 30 milhões da DFC está apoiando o desenvolvimento de uma instalação de mineração de minerais críticos que produzirá níquel e cobalto adequados para baterias de íons de lítio”, informou a DFC.
O governo do Piauí também destacou o anúncio em outubro do ano passado e informa, sem dar detalhes de salvaguardas ou contrapartidas ambientais, que a empresa e a agência apoiam “investimentos com práticas tecnológicas eficientes e com responsabilidade ambiental”. “No município de Capitão Gervásio Oliveira, localizado a 519 km de Teresina no sul do Piauí, está na mira do governo dos Estados Unidos para a exploração de minerais como o cobalto, lítio e níquel”, diz o comunicado do governo.
Outro investimento recente, divulgado em 21 de outubro pela Emba i xada dos Estados Unidos, é o de US$ 150 milhões para produção de terras raras da Mineração Serra Verde em Minaçu, norte de Goiás.
Da mesma forma que os demais projetos dos Estados Unidos, o aporte é realizado por duas empresas norte-americanas, a Denham Capital e Energy and Minerals Group, mas neste caso em parceria com a Vision Blue Resources do Reino Unido.
A exploração faz parte do Minerals Security Partnership (MSP), bloco para acelerar a produção global de metais críticos e que tem entre os parceiros a Coreia do Sul, Austrália, Canadá, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Índia, Itália, Japão, Noruega, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos e União Europeia.
Novamente sem detalhar suas ações na área ambiental e compensações, a representação diplomática afirma que “o aporte permitirá aprimoramentos operacionais e uma expansão de longo prazo, promovendo o desenvolvimento sustentável da produção de terras raras no Brasil”.
Minaçu, como mostrou o Observatório da Mineração em janeiro de 2022 , ainda é palco de conflitos e controvérsias por conta da exploração do amianto. Desde 2019, quando os legisladores goianos aprovaram um projeto de lei permitindo a continuidade da mineração de amianto para fins de exportação, toda a produção foi enviada para o exterior. Essa lei agora está sendo contestada na Justiça pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho do Brasil.
No mapa do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, o destaque negativo dos Estados Unidos é o projeto de extração de bauxita da Alcoa, em Juruti, no Pará. São registrados 14 conflitos entre 2020 e 2023 na exploração que atinge 6.600 pessoas.
“Em Juruti, a situação não é tão diferente para diversos assentados, pescadores e ribeirinhos do município. Os danos da Alcoa envolvem o assoreamento de recursos hídricos, redução do pescado, impedimento do direito de ir e vir dos ribeirinhos, desmatamento, diminuição da coleta da castanha, dentre outros”, destaca o levantamento tendo como referência dados da Fiocruz de 2020.
Em outro trecho, o estudo mostra que a empresa em 2022 ainda não tinha realizado a compensação coletiva com a criação de um centro de formação. Em junho de 2022, os atingidos bloquearam por dois dias a ferrovia da Alcoa para cobrar o comprimento do acordo.
“São 15 anos que a gente vem conduzindo esse processo, e 15 anos é muito tempo esperando, a Alcoa sempre protela para construir, mas a gente espera que agora então esse item da matriz de compensação coletiva vai sair do papel”, diz o trecho da reportagem citada pelos pesquisadores do periódico Juriti em pauta.
Procurada para comentar a situação descrita no relatório, a Alcoa afirmou que “as reclamações são publicadas anualmente em seu Relatório de Sustentabilidade, a fim de promover uma relação de transparência com as partes interessadas. Estas são prontamente endereçadas por meio de diálogos e negociações, acompanhados por autoridades públicas” e que “finalizou recentemente uma Due Diligence em Direitos Humanos e colocou em prática planos de ação para tratar as conclusões. Além disso, em 2022, fortaleceu e relançou o seu programa de reclamações e queixas com uma governança mais efetiva, ancorada em gestão de impacto e construção de relacionamentos”.
Ainda segundo a mineradora, a Alcoa mantém “diálogo aberto” com as comunidades da região sobre suas necessidades e “estabeleceu comitês conjuntos com comunidades para manter a transparência das operações e solucionar possíveis controvérsias de forma conjunta e democrática”.
Falta de controle social já acelerou aumento da demanda
Os anúncios vagos, a falta de informação e controle social sobre as parcerias, diálogos e acordos que o país estabelece no plano internacional contribuem para o aumento da demanda por metais críticos. É o que avalia Julianna Malerba, assessora da ONG Fase e membro do Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração e da Rede brasileira de Justiça Ambiental.
“Ao mesmo tempo que reforça o caráter privatizante dessa política, indica que ele deve se aprofundar pela corrida por minerais críticos. De fato, esse aumento da demanda por minérios já vem criando condições excepcionais para a expansão da mineração, que resultará na ampliação do poder das mineradoras de se impor sobre os territórios”, diz.
Um dos exemplos citados pela pesquisadora é o decreto n. 10.657, publicado em 2021 e que segue em vigor. A norma, que institui a política em apoio ao licenciamento ambiental de projetos de investimento para minerais “estratégicos”, reduziu o tempo de análise e concessão de licença ambiental para extração desses minérios, flexibilizando medidas de proteção e controle ambiental.
“A decisão sobre quais minérios extrair, de que forma e em que velocidade, deveria estar submetida a um debate público e orientada por uma visão estratégica que beneficie, de fato, toda a sociedade”, defende.
Julianna Malerba afirma ainda que o setor mineral no país, a cada ano, extrai mais e mais minérios, sem que haja controle pela sociedade. “Essa tendência deve aumentar, não apenas em função de um modelo econômico e de sociedade orientado sempre para a produção permanente e infinita de bens, mas também pela demanda crescente de substituição das fontes de energia fósseis por fontes renováveis”, diz.
A pesquisadora aponta que não há, por exemplo, nenhum planejamento quanto ao ritmo e as taxas de extração das minas em exploração. “Deveriam estimular a criação de mecanismos de regulação sobre a mineração que permitissem à sociedade definir quais minerais devem ser extraídos, em que ritmo e para atender a que finalidades. No entanto, a pouca transparência desses anúncios, ao lado da histórica força do lobby mineral, inclusive no campo das relações internacionais, apontam infelizmente no sentido inverso”, afirma.
Fonte
O post “Acordo Brasil-Estados Unidos para minerais de transição é vago, registra pouco avanço e terá incerteza sob Trump” foi publicado em 05/12/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração