“Quando eu morrer, vou com o dever cumprido. É o mínimo que o Supremo poderia fazer. Ele tem a obrigação de respeitar os direitos dos povos indígenas do Brasil, inclusive os indígenas Xokleng, que foram massacrados no século passado, como animais. Nossos avós, nossos pais não existem mais. Mas sempre tem Justiça.”
Foi assim que Brasílio Priprá, de 65 anos, descreveu a sensação de testemunhar o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitar o marco temporal para terras indígenas na última quinta-feira, 21 de setembro. Sua voz foi ficando embargada ao citar os antepassados que se foram antes de presenciar a vitória que ele comemorava naquela tarde sob o sol de Brasília.
Quando Brasilio, que estava assistindo ao julgamento no plenário do tribunal, chegou à tenda montada em frente à Corte para que os “parentes” – como os indígenas chamam uns aos outros – vissem a transmissão do debate em um telão, os ministros haviam acabado de formar maioria para afastar o marco temporal.
Liderança Xokleng que há mais de três décadas acompanha a luta de seu povo pelo território, Brasílio foi recebido por familiares e amigos entre muitos abraços, lágrimas e gritos de “valeu a pena”. Os Xokleng lembravam, em voz alta, o doloroso passado de violência por seus ancestrais: até os primeiros anos do século 20, por exemplo, foram vítimas de “caçadas” realizadas pelos chamados bugreiros, incentivados pelo próprio Estado.
Após sete anos de tramitação na corte, o debate sobre se apenas terras indígenas que estivessem ocupadas na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, teriam direito à demarcação, havia sido, enfim, encerrado em favor deles.
Com a manifestação final da presidente da Corte, Rosa Weber, o placar acabou em nove votos contrários versus dois favoráveis à tese jurídica. Na próxima semana, os magistrados devem voltar ao julgamento para que sejam feitas as definições finais.
O povo Xokleng vive na Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãno, que se estende por quatro municípios do interior de Santa Catarina, sobretudo Vitor Meireles e José Boiteux, a cerca de 240 km da capital Florianópolis. O território é o centro do recurso extraordinário que motivou a discussão da constitucionalidade do marco temporal no STF.
Com o reconhecimento, em 2019, pelo tribunal de que o julgamento desse caso específico teria repercussão geral, ele se tornou o centro das preocupações dos povos indígenas de todo o país. O que o Supremo decidisse para a situação dos Xokleng passaria a valer para todos os processos envolvendo a demarcação de terras indígenas em todas as instâncias do Judiciário.
O movimento indígena combateu duramente o conceito jurídico nos últimos anos por encarar que o estabelecimento de um marco temporal seria a maior ameaça aos seus direitos territoriais, garantidos na Constituição. A tese serve de base para diversas ações judiciais de questionamento à demarcação de áreas indígenas Brasil afora.
Do lado oposto, o agronegócio a defendeu em igual medida, principalmente por meio da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). O setor a considera um caminho para obter a “segurança jurídica” de suas propriedades.
Ao longo das últimas décadas, foram inúmeros os casos de fazendeiros ocupando de modo ilegal ou legal áreas reivindicadas por indígenas como sendo seus territórios tradicionais. Em alguns casos, o processo de ocupação se deu com aval do poder público. Em muitos, os povos indígenas foram esbulhados de suas terras, como ocorreu com os próprios Xokleng, que nos anos 1950 foram expulsos de parte de sua área pelo próprio Estado.
Várias das comunidades só começaram a tentar retomá-las mais recentemente, quando a Constituição já estava vigente.
No artigo 231, a Carta Magna garante aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Os ministros do STF entenderam que não há limitação temporal a esses direitos.
O périplo Xokleng
Cerca de mil indígenas de todo o Brasil vieram à capital federal para acompanhar o julgamento, retomado na sessão de quarta-feira (20). Entre eles, os aproximadamente duzentos Xokleng de Ibirama Laklãno estavam particularmente ansiosos para ver, depois de anos, o marco temporal sendo enterrado.
Para chegar a Brasília, homens, mulheres, crianças e idosos viajaram de ônibus por dois dias. Dormiram em barracas em um acampamento montado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) no terreno ao fundo do Memorial dos Povos Indígenas. A pouca comida era dividida entre todos. Acostumados a temperaturas mais amenas, sofreram com o calor de cerca de 30°C que atingiu a cidade nesta semana.
Foi a terceira vez neste ano que Laura Priprá, de 49 anos, fez essa mesma viagem. Esteve aqui nos outros dois momentos de 2023 em que o STF debateu o caso, no início de junho e no fim de agosto.
De quarta para quinta-feira, ela dormiu pouco. “Ficamos até de madrugada conversando, nos preparando. Já ensaiamos nossos cânticos, nossos rituais”, relatou à Agência Pública na quinta-feira pela manhã, ainda no acampamento. “Só vamos embora daqui com o resultado [contra o marco temporal] na mão”, disse. Até então, o placar do julgamento era de cinco votos contra e dois a favor da tese – bastava que mais um ministro se manifestasse de maneira contrária e o marco temporal estaria derrubado.
Laura começou a fazer a peregrinação a Brasília seguindo os passos do pai, Edu Priprá, falecido em 2021. Ela perdeu as contas de quantas vezes Edu, entre outras lideranças Xokleng, veio à capital acompanhar o julgamento. “Cada vez que meu pai vinha, era uma expectativa. Nós sempre esperávamos uma resposta. Ele dizia, ainda na aldeia: estou indo pra lá. Como vou voltar, não sei. O que eu vou comer lá, não sei. O que eu vou comer na viagem, também não sei”, relembrou. “Então, isso aqui tem história. E quando a gente vê que está ganhando, emociona muito”.
Depois da morte de Edu, Laura, os irmãos e a mãe, Ilza Priprá, de 70 anos, tomaram para si a tarefa do pai e passaram também a viajar à capital federal para ver de perto a Suprema Corte decidir sobre seu destino.
Se o marco temporal fosse considerado constitucional, os Xokleng perderiam parte da TI Ibirama Laklãno. Em uma porção da área ocupada por eles, o governo de Santa Catarina criou a Reserva Biológica Estadual de Sassafras, em 1977. A TI só começaria a ser demarcada na década de 1990. O recurso extraordinário discutido pelo STF deriva de uma ação de reintegração de posse movida em 2009 pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e os Xokleng.
Diante da gravidade da ameaça, Ilza, mesmo aos 70 anos, não hesitou em deixar a aldeia e se deslocar por dois dias até Brasília todas as vezes em que o julgamento entrou na pauta do STF este ano. “É para o governo ver que a gente é idosa, mas sabe que aquela terra que estão lutando para tirar de nós é nossa”, explicou.
“Os que vieram atrás, hoje já não existem mais”
Na tenda em frente ao tribunal, por volta das 14h desta quinta, quando o julgamento estava prestes a recomeçar com o voto do ministro Luiz Fux (o oitavo a se manifestar), Laura estava visivelmente ansiosa. Saiu do lado da grade montada para isolar a área, onde os Xokleng haviam se instalado, e sentou mais à frente, sozinha, para “ver melhor” o telão. Todas as vezes em que Fux dava algum sinal de que poderia votar a favor dos indígenas, ela se levantava e balançava o chocalho que segurava em uma das mãos. Depois, voltava a se sentar no chão.
Quando o ministro disse que acompanharia o voto do “eminente relator” do caso, Edson Fachin, o primeiro a votar contra o marco temporal, em 2021, todos os indígenas se levantaram imediatamente. Era o momento que eles esperavam há anos: estava formada a maioria entre os magistrados para decretar a inconstitucionalidade da tese.
Laura, mais uma vez, se colocou de pé num pulo e foi ao encontro de sua mãe. Abraçadas, choraram juntas. Para todo lado que se olhava na tenda, cenas como essa se repetiram ao longo da tarde. Logo se formaram rodas, cada uma com um povo indígena fazendo suas danças tradicionais.
Era o início da comemoração, que se seguiu pelas horas seguintes com gritos de ordem e discursos ao microfone. Autoridades como a presidente da Funai, Joenia Wapichana, e a deputada federal indígena Celia Xakriabá foram ao local celebrar junto aos “parentes”.
Muito emocionados, havia um misto de sentimentos entre as lideranças Xokleng. “Nós ganhamos, a gente fica feliz. Mas tem também uma parte de tristeza pelos que lutaram primeiro e não viram [a rejeição ao marco temporal]”, disse Ilza após algumas horas. “Os que vieram atrás, hoje não existem mais.”
Agora, os Xokleng pretendem lutar para que o processo de demarcação da TI Ibirama-Laklãno seja concluído – após a publicação da portaria de declaração, em 2003, o processo estagnou. Para Laura, com a novidade trazida pelo STF, a situação pode mudar. “Agora, nós podemos esperar essa demarcação. Enquanto [a possibilidade de validação do marco temporal] existia, não tinha como [ter muita esperança]”, disse.
Decisão do STF coloca Congresso em xeque
A rejeição do marco temporal pelo Supremo coloca sob os holofotes a tramitação do projeto de lei que trata sobre o tema (PL 2903/23 ) no Senado (leia mais sobre ). O relatório favorável à matéria, elaborado pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), será votado na próxima quarta-feira (27) pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa.
O projeto pode ficar esvaziado, uma vez que um de seus pontos centrais foi considerado inconstitucional pelo STF, e, caso aprovada, a lei deve ser questionada judicialmente. No entanto, o presidente da FPA, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), dobrou a aposta. Em entrevista coletiva na quinta-feira (21), logo após o julgamento, ameaçou obstruir as votações no Congresso caso o PL 2903/23 não seja aprovado no Senado na semana que vem.
Após passar na CCJ, o projeto ainda precisa ser votado no plenário. A base governista tenta impedir, mas a FPA tem força para aprová-lo: ela reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais.
“Se for necessário obstruir trabalhos na Câmara dos Deputados, se for necessário obstruir trabalhos no Senado, se for necessário, nas últimas consequências nós vamos para garantir o direito à propriedade e os direitos dos produtores rurais do Brasil”, declarou Lupion.
Em nota, a FPA manifestou “completa irresignação” com a decisão do STF: “Avançar em matéria que está em fase final de análise no Parlamento, em especial sobre questão que impacta diretamente as relações sociais de brasileiros e brasileiras, é expor, para quem há de ver e ouvir, que a Constituição de 1988, instituidora de uma nova ordem jurídica, privilegiou índios em detrimento de todos os demais componentes da sociedade”.
Kleber Karipuna, coordenador da Apib, celebrou o resultado favorável aos indígenas no Judiciário. “O Supremo Tribunal brasileiro reconhece o direito originário dos povos indígenas sobre seu território garantido na Constituição Federal e a história dos povos indígenas no Brasil”, destacou.
Mas disse que o movimento indígena segue com o alerta ligado diante do anúncio de reação da FPA no Congresso e em relação às definições ainda pendentes no STF. “Temos que continuar atentos ao desfecho do julgamento, sobretudo pelas questões trazidas nos debates sobre as indenizações e no voto do ministro Dias Toffoli, com a possibilidade de exploração econômica em áreas indígenas”, apontou.
Durante o julgamento do marco temporal, os ministros levantaram a discussão sobre a possibilidade de indenização pelo valor da terra nua – e não somente pelas benfeitorias, como ocorre atualmente – a proprietários com imóveis que se sobrepõem às terras reivindicadas pelos indígenas (leia mais aqui ).
Estão em debate dois formatos. No primeiro deles, defendido por Alexandre de Moraes, o pagamento das compensações deve ocorrer no âmbito do processo de demarcação, como condicionante para sua conclusão. No segundo, proposto por Cristiano Zanin, a indenização ocorreria fora do processo demarcatório.
A indenização pela terra nua é pauta central da FPA. Além do PL 2903/23, Lupion disse que a FPA tentará avançar com duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) sobre o tema. Uma delas é a 132/2015 , cuja tramitação na Câmara dos Deputados está parada desde outubro de 2021. O texto busca alterar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição para que ele permita a indenização pela terra nua.
Fonte
O post “A vitória Xokleng contra o Marco Temporal: “Quando eu morrer, vou com o dever cumprido”” foi publicado em 22/09/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública