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Não se engane. Os sulcos de baba raivosa que colorem a revolta trumpista, os gritos histriônicos que aplaudem a motosserra mileísta, as mãos apertadas em oração que coroam o retorno do homem caído nos templos bolsonaristas, o sorriso autoindulgente dos crypto-bros que povoam a antessala do palácio de Bukele – tudo isso tem um alvo certo: as mulheres.
Já escrevi nesta coluna sobre a misoginia na campanha eleitoral que elegeu o 47o presidente americano – este chamou a sua rival de “nasty“, “bitch”, enquanto seu vice a limitava à definição de “crazy cat lady”, aquela mulher sem filhos, meio louca, apegada aos gatos.
Não era preciso nada disso, uma vez que, como bem definiu o professor da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, autor de Como as democracias morrem, o que levou Trump ao governo foi o preço do ovo e a percepção de que o governo de Joe Biden não interrompeu a derrocada do padrão de vida do americano médio.
Mas nestes tempos a misoginia aglutina, agrega, mobiliza o voto masculino e das mulheres misóginas, e talvez mais importante do que isso é um sentimento real, figadal, dos autocratas que cada vez mais tomam o poder.
Eles se assustaram com a nossa “raiva organizada”, como definiu Milly Lacombe em um excelente vídeo em que comenta o episódio “CPF na Nota”, da Rádio Novelo.
Nós temos muita raiva, diz Milly, raiva contida, porque sempre assistimos aos homens sendo favorecidos em tantas competições da vida apenas por serem homens – do irmãozinho que brinca enquanto lavamos a louça, do pai que recebe aplausos apenas porque levou os filhos ao parque, das promoções que ganham porque se parecem com os chefes que decidem as promoções, dos votos que conquistam porque reproduzem o jargão dos padrinhos, das estrelas que ganham porque vêm de famílias militares igualmente estreladas. Nos últimos anos, diz Milly, aprendemos a “organizar a nossa raiva” e ela apareceu de forma potente em movimentos como o #MeToo, #NiUnaMenos ou no #EleNão.
Por mais que tentem menosprezar esses movimentos – me lembro da violência contra aquelas que foram às ruas pelo #EleNão, como se fossem culpadas pela eleição de Bolsonaro –, a verdade é que essa raiva organizada teve consequências políticas.
Não é mais aceitável uma mesa de debates ou um conselho administrativo, um gabinete ministerial formado só por homens. Um dos homens mais poderosos do jet-set americano, que organizava festinhas de exploração sexual para diversos poderosos, foi preso e morto. O aborto foi legalizado em dois dos países mais católicos do nosso hemisfério. Um ministro de Estado, negro, foi demitido após denúncia de que assediou sua colega. Um instituto de um famoso empresário judeu teve que fechar as portas, e seus descendentes não podem mais apregoar o seu nome com orgulho, porque ele era abusador de meninas. Um dos presidentes mais poderosos da história do Congresso brasileiro teve que voltar atrás em uma lei que nos obrigaria a parir filhos de estupradores por ter sido acusado, ele mesmo, de estuprador. Kamala Harris, uma mulher negra, concorreu à presidência americana defendendo abertamente a legalização do aborto, em vez de se acovardar diante de súplicas para que “moderasse” o tom. Recebeu mais de 75 milhões de votos, 48,3% do total, e mostrou que metade do eleitorado está conosco.
É a essa potência assustadora que se dirigem os arroubos de orgulho macho que coroaram a campanha e a posse de Trump, do punho cerrado para cima após o tiro na orelha ao chapéu que encobria os olhos da esposa, como um véu a lhe devolver o recato, e às ordens executivas assinadas em um estádio espetaculoso, diante de uma multidão delirante com sua caneta fálica em riste.
E, claro, o linguajar fascista dessas mesmas ordens, a sua forma e o seu conteúdo.
Agarrados a uma masculinidade datada, machucada, obsoleta, os patriarcas apelam para a força bruta, a violência, o exibicionismo das armas que fabricam aos borbotões, a agressão, o ódio aos que são mais fracos física, social, econômica ou geopoliticamente. A tal “energia masculina” louvada por Mark Zuckerberg emite, nesses governos autocratas, um urro agonizante e brutal.
Embora Trump tenha sido pressionado a negar que vai proibir o aborto em todo o território – diante da postura clara de Kamala –, ele já semeou nas suas primeiras ordens executivas o palavreado necessário para trilhar esse mesmo caminho. Naquela ordem em que pretende proibir pessoas transexuais de existir, impondo aos estadunidenses que só existem dois sexos e determinando que “fundos federais não podem ser usados para promover a ideologia de gênero”, Trump definiu o sexo masculino e sexo feminino de acordo com sua biologia “desde a concepção”, abrindo uma fresta para, em um tempo não tão distante, impor o direito do nascituro – o direito de um feto acima do direito da mulher fertilizada.
É apenas um primeiro passo para nos obrigar a ter os filhos daqueles que nos violam, nos estupram.
A mesma ordem executiva, note-se, foi denominada “para proteger as mulheres da ideologia radical de gênero”, resolvendo debates profundos que têm sido travados no movimento feminista, na academia e na sociedade assim, com uma canetada dura, bem dada.
Por que, podemos nos perguntar, os autocratas deste primeiro quarto do século 21 odeiam tanto as mulheres? Ou melhor, que medo é esse que a “raiva organizada” lhes causa, a ponto de construírem seus movimentos culturais, suas estéticas e seus cálculos políticos com o intuito de a sufocarem?
A melhor resposta que já encontrei para essa pergunta vem do ensaio “A vingança dos patriarcas ”, das pesquisadoras Erica Chenoweth e Zoe Marks, ambas professoras na Kennedy School, a faculdade de gestão pública da Universidade Harvard.
As autoras observam que o ativismo feminino na política “expandiu e fortaleceu a democracia” e que autocratas e democratas iliberais entendem isso de maneira intuitiva. “Isso explica o seu medo do empoderamento feminino.”
“Quando as mulheres participam de movimentos de massa, esses movimentos têm mais chances de sucesso e de levar a uma democracia mais igualitária. Ou seja, mulheres plenamente livres e politicamente ativas representam uma ameaça para líderes autoritários e com tendências autoritárias – e, por isso, esses líderes têm um motivo estratégico para serem sexistas.”
Com exemplos concretos, as pesquisadoras apontam que movimentos civis que têm mulheres na linha de frente têm mais chances de serem bem-sucedidos, pois ampliam a coalizão social necessária para derrubar regimes que concentram poder nas mãos de poucos. Também levam a vitórias democráticas mais duradouras. Além disso, elas listam inovações táticas, poder de persuasão dos oponentes e o uso da não violência como fatores marcantes desses movimentos cívicos.
É por isso que líderes autoritários utilizam retórica sexista para “angariar apoio popular a suas agendas regressivas”. E sua maior arma é promover o que as autoras chamam de “narrativas misóginas de uma ‘feminilidade patriótica’ tradicionalista”, ou seja, “um maior controle estatal sobre os corpos das mulheres, ao mesmo tempo que reduzem o apoio à igualdade de gênero política e econômica”.
“Eles incentivam – e muitas vezes legislam – a subjugação das mulheres, exigindo que homens e mulheres se conformem a papéis de gênero tradicionais em nome do dever patriótico.”
O ensaio é de 2022, mas poderia ser sobre o governo Trump.
Essa violência política responde, ainda, a um fenômeno geracional de enorme relevância, o “fosso de gênero” que tem se alargado em diversos países: enquanto a maior parte das jovens mulheres são progressistas, crescentemente os rapazes jovens são conservadores. Alice Evans, pesquisadora visitante na Universidade Stanford, chega a afirmar que esse fosso é tão grande entre os jovens americanos com menos de 30 anos que ela diz que a “geração Z” é composta por duas gerações em vez de uma.
O fosso talvez seja ainda mais profundo, porque a vingança dos patriarcas não se resume a grupos de direita e não é expressa apenas nas ações dos autocratas. Está expressa no linguajar e na estética que marcaram o impeachment da Dilma, mas também no abandono que ela sofreu dos partidos de sua base e no silenciamento da história dos dois governos de uma presidente mulher, que perdura; nas análises políticas que ignoram a vigorosa campanha de Kamala Harris, clamando que houve uma derrota histórica e dando carta branca ao governo Trump; nos processos judiciais que agora um famoso intelectual e professor português move contra as mulheres que o denunciam de assédio; nos sites esquerdomachos que, sem nenhum fundamento, chamam de “agentes” dos Estados Unidos aquelas que defenderam uma mulher no STF.
Mas tampouco podemos nos enganar sobre isso. Não há retorno nessa revolução geracional e cultural – o rumo será ao palácio ou ao quarto, ao cemitério. Já não é hora de nos escondermos, mas de radicalizarmos, de ganharmos poder, de exigirmos poder, de transformarmos o poder.
Fonte
O post “A vingança dos patriarcas” foi publicado em 30/01/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública