A agenda clássica da sustentabilidade, expressa nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, evoluiu da Agenda 21, proposta na Conferência Rio 92. Trata-se de esforço orientador aos Estados nacionais, visando nortear agendas setoriais rumo a um modelo civilizatório para a sobrevivência da humanidade com qualidade de vida.
O Brasil enfrenta atualmente dois grandes desafios sobre as diretrizes de sustentabilidade. O primeiro é a emergência sanitária do coronavírus, desafio doloroso para a humanidade, em que pese saltar à vista os benefícios decorrentes da diminuição das atividades humanas que se encontravam acima da capacidade de suporte do planeta. Efeito efêmero, pois estas podem retornar ao patamar anterior se não houver transformações para uma economia responsável.
Passada a necessidade de isolamento social, certamente teremos ganhos pontuais com a adoção mais ampla de teletrabalho, que tem se mostrado eficiente neste momento, e a redução dos deslocamentos desnecessários, o que significa menos poluição e maior eficiência energética, especialmente para as áreas de transporte rodoviário e aéreo.
De outro lado já surfam negativamente, na onda do aperto econômico imposto pelo coronavírus, especialmente no Brasil, propostas para continuar a lucrar com tecnologias defasadas, a exemplo do setor automotivo, que já sinaliza em não avançar para a fase de motores Euro VI, adotada na Europa e Estados Unidos, com motores mais eficientes e que comprovadamente poluem menos. A crise econômica não pode servir a esta procrastinação, já que milhares de vidas são anualmente ceifadas pela poluição.
A falta de estímulo para a ciência, educação e cultura e aos avanços tecnológicos podem agravar os atrasos no país. Exemplos internacionais, como a educação tecnológica praticada na Índia, são elementos transformadores que o governo brasileiro tem ignorado.
O segundo aspecto é a infelicidade democrática que adveio com o apartheid nacionalista implementado, interna e externamente, pelo governo de Jair Bolsonaro.
As relações internacionais do Brasil sofreram estragos em sua credibilidade construída há décadas, com cautela e habilidade de sucessivos chanceleres bem informados. A árdua tarefa de reconstruir a credibilidade perdida demandará um discurso responsável e ético, além do cumprimento dos acordos internacionais e da reativação das políticas de regularidade ambiental que garantem divisas no comércio exterior, especialmente na área de commodities.
É preciso seriedade no trato da coisa pública, o alinhamento científico para a proteção da qualidade ambiental climática e o imediato banimento dos agrotóxicos, tendo como base aqueles já proscritos no exterior, em função de novos estudos científicos.
Um tema dos mais sensíveis é a necessidade de tomar medidas efetivas para a proteção da região Amazônica, suas etnias e biodiversidade, o que exige coerência entre a prática e o discurso de governo. A região, de relevância ecossistêmica global para a regulação climática, figura ao lado das principais massas florestais planetárias remanescentes, como as do Congo e da Indonésia.
Internamente, há de eliminar a desordem que atingiu as normas de proteção ambiental criadas com base em justificativas científicas. Muitas foram desfiguradas por meio de medidas provisórias, decretos e portarias. Esses atos, passíveis de responsabilização por improbidade administrativa, ocorreram sem a devida motivação e justificativa técnica, apenas para favorecer o interesse particular do agronegócio, da mineração e da especulação imobiliária. Os desvios de finalidade são evidentes.
A crise que adveio do apartheid nacionalista de Bolsonaro demonstrou que não foram utilizadas as salvaguardas constitucionais que a sociedade brasileira dispõe. O Ministério Público Federal e a Controladoria Geral da União deveriam ter agido com maior vigor, por exemplo, com relação ao desmantelamento paulatino do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama).
Há um grande respeito e admiração pelas instituições e seus membros valorosos e atuantes, mas a sociedade brasileira precisa, especialmente, manter sob observação as ações e inações do procurador-geral da República, Augusto Aras. Este estará sob forte tentativa de manipulação pelo Executivo. Ressalte-se, neste aspecto, o relato do ex-ministro Sérgio Moro, que lançou luzes sobre os conluios para cooptação e práticas antirrepublicanas, como a oferta de vagas no STF que circulam nos bastidores palacianos.
Mesmo que o contexto revelado pelo cenário atual não nos liberte, de imediato, de populistas irresponsáveis no poder, que então lhes seja imposta, por comporta inflexível, os limites constitucionais da discricionariedade.
Nesse sentido, há necessidade de se rever os retrocessos provocados com o deslocamento indevido de competências e atribuições ministeriais, como a gestão de florestas e áreas protegidas para a área de agricultura; assim como a eficiência do Sisnama e sua missão institucional, especialmente em sua eficácia, incluindo o adequado funcionamento do Ministério do Meio Ambiente e de seus braços executores, como o Ibama e o ICMbio. É preciso zelar pela conformidade dos objetivos expressos na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente.
Ressalte-se ainda a necessidade de reconstrução do fator primordial das democracias ambientais modernas: a participação social e a transparência, conforme expressam, com muita clareza, as Convenções de Aarhus e o Acordo de Escazú. É urgente ressuscitar o Conama e o Fundo Nacional do Meio Ambiente da insignificância democrática a que foram reduzidos.
Será preciso reconstruir e reerguer o Sisnama, em conformidade com os avanços sacralizados nacional e internacionalmente, como lastro de garantia humanitária para uma evolução da gestão à proteção dos bens ambientais públicos e planetários.
É preciso implementar um processo educativo que liberte a sociedade do terraplanismo, da manipulação das fake news, dos sussurros pouco lúcidos do nacionalismo cego dos bastidores das casernas, da fragilidade das consciências de cidadãos com pouca capacidade crítica, das religiões alienadas em práticas dissociadas das ações solidárias, que faz presas fáceis das massas para o populismo cego.
No último meio século avançamos conceitualmente. Ética e sustentabilidade ocuparam os espaços mais nobres da discussão planetária. É preciso resgatá-las neste processo de refluxo, decorrente do inconformismo de setores reacionários e economicamente predadores que alimentam o retrocesso valendo-se da imaturidade da consciência de alguns setores da sociedade. As consequências do retrocesso demonstram um alto custo para os interesses nacionais, além de um forte teste para as salvaguardas constitucionais.
O coronavírus e o apartheid nacionalista devem ser superados para conquistarmos um patamar civilizatório adequado ao século XXI. A civilização já se reconstruiu muitas vezes — e nosso marco anterior mais relevante foi o pós-guerra da metade do século XX. Aprendemos bastante e podemos construir muito, principalmente ao compreendermos que, ao superar momentos de refluxo, abrem-se as oportunidades corretivas que constroem os melhores avanços.
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O post “A sustentabilidade no Brasil pós-pandemia e o apartheid nacionalista” foi publicado em 18th May 2020 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco