O que restou no que restou da Mata Atlântica? São tantas informações para dissertar que poderíamos criar O Tratado da Destruição. As informações são seculares, desde que o bioma se tornou a porta de entrada do leste da América do Sul. O que herdamos nem sequer representa metade do que foi perdido. São menos de 15% do que um dia reinou de maneira soberana na costa brasileira e seguindo serras e vales, se espraiou Brasil adentro até o norte da Argentina e o Paraguai. Sua história natural nos leva longe no tempo, com ecos no passado dos dias em que a Amazônia e a Mata Atlântica se uniam e serviam de ponte entre bichos e plantas de lá e de cá.
Mas é tanta destruição daquilo que se viu e que se vê, que chega ser assustador imaginar a destruição do que não se vê. Assistimos à extinção de povos, de plantas, de animais que caminham, voam e pulam entre os galhos. Vimos até a extinção dos que coaxam, se arrastam e nadam nos rios que cortam desde as altas escarpas até o mar.
Mas, dentre várias coisas que nos são invisíveis, a invisibilidade pode ter levado algumas de nossas riquezas, das mais poéticas, coloridas e raras que habitaram na Mata Atlântica. Talvez, para elas, não haja mais tempo. Falo de pequenas joias que, poeticamente, são ditas caírem dos céus, os Peixes das Nuvens.
Desde o Rio Grande do Sul até a Bahia, quase todas as espécies de peixes das nuvens correm grave risco de extinção e é possível que algumas delas estejam praticamente extintas. Um desconhecedor deste grupo de peixes, os Rivulídeos, poderia perguntar: Não há chance deles habitarem um outro lugar? Infelizmente, não. São peixes de forte endemismo, isto é, habitam locais específicos e são superespecializados em pequenos brejos temporários. Alterações nestes pequenos sistemas podem levar a sua extinção. Claro que existem espécies mais ou menos resistentes, mas todas elas dependem de um frágil equilíbrio que vem sendo perdido.
Para início de conversa são pelo menos 15 gêneros e mais de 40 espécies habitando brejos e pequenos riachos ao longo da costa e em seus meandros pelo interior, nos domínios da Mata Atlântica. Destas, iremos contar rapidamente a história de três regiões e das espécies que as habitam, pois, talvez, não haja mais tempo para salvá-las. O que mais temo, ao falar destas espécies, é lembrar daquilo que denomino como o “Dilema do Tilacino”. E o que seria o Dilema do Tilacino? Tilacinos ou Tigres da Tasmânia ou ainda Lobos da Tasmânia representam a espécie mais emblemática de nosso complexo de perda. Extintos na primeira metade do século XX, constantemente alguém diz ter visto ou testemunhado algum exemplar cruzar o seu caminho. De forma cíclica somos instados a ter esperança que nossa falha em os salvar pode ter uma segunda chance, mas não há. É duro, eu sei, mas a realidade da nossa incapacidade de reviver espécies ao nosso bel prazer tem nos tilacinos o exemplo da incompetência humana.
E dentro desta incompetência, viajando pela Mata Atlântica com os peixes das nuvens, começamos pelas cidades de União da Vitória/PR e Porto União/SC, divididas pelo rio Iguaçu. Em 1944 é descoberta uma espécie de peixe das nuvens, Austrolebias carvalhoi em União da Vitória, só descrita em 1947 numa pequena menção numa revista sobre aquarismo. Após 1944, apesar de variadas expedições para localizar novamente a espécie, não houve nenhum sucesso, até que, em 1997, a espécie foi reencontrada. Cinquenta e três anos depois de sua descoberta a espécie foi tirada do “mundo dos tilacinos”, deixou o livro negro da extinção. E o que ocorreu com a Mata Atlântica dos altiplanos sulinos ao longo do século XX? Foi rareando com a industrialização regional, hidrelétricas, agropecuária. Sem floresta, as áreas úmidas foram diminuindo até secar ou não ter mais condições de sustentar as populações de peixes existentes.
A Mata Atlântica virou história e o que aconteceu nestes últimos 24 anos? Nossa incompetência em preservar a espécie a lançou novamente no mundo dos esquecidos, entre as sombras e a inércia. Não mais encontrada, viu seu último brejo ser aterrado pra dar lugar a um campo de futebol de bairro. Nada contra, eu mesmo gosto bastante de futebol, mas ao reencontrar uma espécie tão rara será que não era hora de repensar os mecanismos de proteção? Hoje, o que ainda tínhamos dela jazem sob um campo de pelada. Será que ela ainda existe e resiste em algum outro lugar? Não sabemos, não encontramos nada até o momento e devemos estar preparados para o momento fatídico de declarar a extinção.
Diretamente aparentadas a Austrolebias carvalhoi, presentes nos planaltos sulinos e bioma de Mata Atlântica, temos ao menos mais três espécies, todas elas correndo grave risco de extinção, Austrolebias auraucarianus na bacia do rio Iguaçu, Austrolebias botocudo, presentes em dois únicos brejos da bacia do rio Uruguai e Austrolebias nubium presente em um único brejo da bacia do rio Jacuí. A adaptação destes peixes as terras altas vem sendo alvo de estudos do Instituto Pró-Pampa, na figura dos pesquisadores Matheus Volcan e Luís Esteban e são registros inéditos para espécies deste gênero. Habitantes típicas dos Pampas, qual origem das espécies das terras altas? Se formos omissos com as espécies que ainda existem deste grupo nos planaltos, jamais saberemos. Seria desastroso ver a perda destas espécies da forma como assistimos a provável extinção de A. carvalhoi.
Saindo dos planaltos sulistas, chegamos até o Rio de Janeiro, lar de 23 espécies de Peixes das Nuvens, dos quais 21 são endêmicas do estado, isto é, só ocorrem lá e em nenhum lugar mais no mundo. O panorama é aterrador e onde nosso Dilema do Tilacino teima em se fazer presente. Aqui não há uma, mas ao menos duas espécies, que podem ter o badalar dos sinos tocados pela última vez. Dentre elas, duas retornaram do mundo dos mortos na última década. Leptopanchax opalescens, que era encontrada abundantemente na década de 1940 nos brejos do que hoje é a localidade de Imbariê em Duque de Caxias, desapareceu por quase 40 anos, até que alguns exemplares foram encontrados em Nova Iguaçu e Seropédica no início da década de 1980. Posteriormente um novo período de desaparecimento até que, em menos de uma década, seu retorno triunfal, impediu a destruição definitiva da última floresta de terras baixas do município do Rio de Janeiro. A espécie foi reencontrada em 2013 na área de instrução militar do Gericinó, em ambiente alterado das planícies da bacia do rio Pavuna. Mas em 2020, esta espécie criticamente ameaçada de extinção, foi reencontrada, graças a insistência dos órgãos ambientais nas exigências do licenciamento ambiental (ICMBIO e INEA), na Floresta do Camboatá que estava fadada a virar autódromo, e no licenciamento ambiental para construção da nova fábrica de salsichas da BRF em Seropédica. Não só salvou os brejos em que habitava como também, no caso do Camboatá, o Peixe das Nuvens salvou uma floresta. Mas nosso Dilema, aquele em que tivemos a chance de salvar e possivelmente não conseguimos, diz respeito a duas outras, um engano e a uma omissão.
O engano diz respeito a descoberta acidental na década de 1980 do que se acreditava ser Leptopanchax splendens, descrita desde a década de 1930 e que não era mais encontrada desde a década de 1940. As últimas coletas foram realizadas na região de Magé, em 1988, e alguns exemplares em cativeiro, filhotes de peixes selvagens, sobreviveram até 1991. O local de seu encontro, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural, apesar de ainda ter condições semelhantes ao período em que ela se encontrava localmente, nunca mais foi habitada pela espécie. As profundas modificações no entorno da localidade são creditadas como ações que levaram aos seu desaparecimento. Tudo estaria definitivamente enterrado se não fosse o acaso. Em 2018 a L. splendens foi reencontrada em Duque de Caxias, mas constatou-se um problema. Sabe aquele peixe descrito em Magé? Então, ele não é L. splendens, pois a partir da comparação dos exemplares preservados em museu, constatou-se que seriam duas espécies distintas. Trouxemos do mundo dos mortos L. splendens em Duque de Caxias e continuamos com a agora descrita L. sanguineus no mundo dos mortos. Foi um soco na boca do estômago, nem deu pra comemorar a quebra do Dilema. O crescimento desordenado, poluição e aterramento dos brejos da Mata Atlântica tornaram-se a pá de cal nessas histórias caídas das nuvens. Talvez não haja mais tempo para L. sanguineus, só reconhecida depois do seu desaparecimento, mas para suas irmãs L. splendens, L. opalescens e Leptolebias marmoratus, talvez haja alguma esperança no que ainda restou em Seropédica, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu e Duque de Caxias.
Sem abandonar o Rio de Janeiro ainda, temos o fruto da omissão, um pequeno Peixe das Nuvens que teve como seu maior pecado a existência junto as praias da Região dos Lagos. Notholebias cruzi nunca foi um peixe muito abundante nos brejos próximo a foz do rio São João entre Cabo Frio/RJ e o distrito de Barra de São João, município de Casimiro de Abreu/RJ. Descrito em 1988, menos de 10 anos depois o local da descoberta já havia sido aterrado para se transformar em depósito de uma loja de materiais de construção. Região dos Lagos é sinônimo de férias e na menor oportunidade, os municípios que a compõem são inundados por levas de turistas que chegam de tudo que é forma, carro, ônibus, vans e até avião no aeroporto de Cabo Frio. E sabe o que começou a ser a pá de cimento e areia na vida deste diminuto peixe de 2,5 cm de comprimento? A especulação imobiliária por conta do turismo (lembra do motivo de destruição do primeiro brejo em que ela existia né?) e posteriormente devido ao crescimento imobiliário local por conta do Petróleo e Gás. As oportunidades ofertadas pelo Polo de Macaé atraíram milhares de pessoas para região. Terrenos próximos ao mar sempre foram mais valorizados e lá não seria diferente. Um segundo brejo foi encontrado e nele, os ditos peixinhos. A última vez que foi visto, em 2002, é considerado por alguns como o marco definitivo de seu desaparecimento. Seu local de ocorrência era um grande brejo que começou a ser parcelado por loteamentos e aterrado. Notholebias cruzi habitava um local específico deste brejo, as bordas rasas e próximas as ruas que cortavam seu habitat. Mas aí foi chegando a urbanização, a rua deixou de ser de terra, virou asfalto, mais casas aterraram um grande brejo que tinha hectares de área e ela, que dividia habitat com outras duas espécies de Peixes das Nuvens, Nematolebias whitei e Ophthalmolebias constanciae, nunca mais foi encontrada. Suas companheiras de brejo quase seguiram o mesmo destino em 2018, com a tentativa criminosa de aterramento num final de semana, mas a rápida mobilização nas redes sociais de aquaristas cientes da importância das espécies, biólogos, CEPTA/ICMBIO e o órgão municipal local pôs fim ao crime. Atualmente a área, composta por oito lotes, foi adquirida pelo município de Casimiro de Abreu e transformada em Área de Proteção Integral. Talvez, para N. cruzi, a ajuda tenha vindo tarde demais.
Para finalizarmos mais uma história nesse nosso triste Dilema, vamos mais para o norte, lá para onde existia uma Mata Atlântica de gigantes árvores, entre o norte do Espírito Santo e sul da Bahia, região da bacia do rio Mucuri. No ano de 1988, pesquisadores da UFRJ, encontraram alguns exemplares nas áreas paludes, próximo a foz do rio Mucuri, Bahia. Descrita em 1991, Mucurilebias leitaoi, única espécie do gênero, não mais foi encontrada nos últimos 33 anos. Mas o que pode ter acontecido regionalmente e que pode ser o gatilho do seu desaparecimento? Plantações de cacau, comuns na região até a década de 1980, apesar de alterarem parte da composição da Mata Atlântica que a sustenta, não o faz substancialmente da forma que possa promover a extinção das áreas úmidas. O cacau precisava da Mata Atlântica de pé, então o que foi que aconteceu desde então? No dia 22 de maio de 1989, durante uma inspeção de rotina nas plantações de cacau, um grupo de técnicos descobriu o fungo Crinipellis perniciosa, originário da bacia amazônica, o primeiro foco de uma infecção que deixou uma rota de destruição devastadora A infecção, popularmente conhecida como vassoura-de-bruxa, foi o tiro de misericórdia na produção cacaueira. De forma errônea, os técnicos acreditaram que poderia ser algo pontual, mas em menos de três anos a vassoura-de-bruxa destruiu as lavouras de cacau na região – e fez surgir um punhado de explicações para o fenômeno, mas a pior das consequências estava por vir, economicamente e ambientalmente.
De 1991 para 2000 o Brasil teve sua participação no mercado internacional diminuída de 14,8% para 4%, levando a Bahia a importar amêndoas de cacau. Esse quadro, associado aos baixos preços do produto praticados no momento da introdução da doença, fragilizou por demais a situação socioeconômica e o equilíbrio ecológico das regiões produtoras do cacau. A economia caiu, muita gente faliu, muitas outras perderam emprego e adivinha o que aconteceu com a já fragilizada Mata Atlântica do sul da Bahia? O que era de uma multiplicidade de verdes, da exuberante riqueza das florestas atlânticas, se transformou na monotonia eucalíptica. Muitas fazendas foram transformadas para exploração da silvicultura. O cacau se foi, a Mata Atlântica se foi e deu lugar a plantação de eucalipto para celulose e carvão das siderúrgicas. As áreas úmidas secaram definitivamente e dentre uma série de espécies extintas com a destruição da Mata Atlântica, nossa personagem nunca mais foi encontrada.
Será que de fato estas espécies descritas acima foram extintas? Ainda não podemos escrever em vossas lápides, muito por conta de nossa inabalável esperança de existência, ainda aguardando o apito do juízo final delas a ser dada pelas metodologias aplicadas nas cíclicas avaliações sobre o status de conservação das espécies. Neste momento tudo é uma questão de fé, mas uma fé irreal, no milagre impossível da omissão que caracteriza nossos passos neste mundo. A Mata Atlântica, ainda que possa regenerar suas árvores, suas brenhas, seus riachos, o esturrar de onças, o galope de antas e a algazarra dos micos-leões, ainda não achou meios de trazer de volta os pequenos brejos que, encharcados pelas chuvas, davam vida a pequenos e valentes peixinhos que tinham poesia numa história iniciada muito acima do lugar em que habitavam, entre nuvens. Pode ser que ainda existam em algum canto esquecido pela destruição, pode ser que o fim dessas histórias ainda não tenham sido escritas e que estejamos apenas numa pequena pausa, mas pode ser também que tenhamos que admitir nossa falha, nossa impotência de proteger as criaturas com que dividimos este pequeno planeta rochoso.
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O post “A retórica da perda da Mata Atlântica nos lamentos dos Peixes das Nuvens ou do nosso Dilema do Tilacino” foi publicado em 27th May 2021 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte ((o))eco