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Há quase dois anos, no início da noite de 13 de maio de 2022, Sarapó Ka’apor, 45 anos, uma liderança da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, no Maranhão, alvo de ameaças de invasores do território, comeu dois peixes que havia recebido de presente de um morador vizinho da TI. A esposa de Sarapó havia preparado os tambaquis, porém sentiu um gosto estranho quando foi prová-los e preferiu deixá-los de lado. Apenas Sarapó ingeriu o alimento, pois, segundo testemunhas, havia temperado com bastante pimenta.
Poucas horas depois, por volta da meia-noite, o indígena levantou-se para urinar e sentiu fortes dores. Deu um grito que acordou a casa. Começou a sangrar pela boca, ter convulsões e espumar. Seu filho Janay encontrou-o “amarelo, com dificuldade de respirar”. Correram para levá-lo, na garupa de uma motocicleta, à unidade de saúde mais próxima em Guilherme (MA), que, segundo os parentes, não contava com médico de plantão. Por volta da 1h30 da madrugada do dia 14, Sarapó morreu na calçada, deixando para trás um imenso ponto de interrogação que as lideranças Ka’apor tentam resolver desde então, sem sucesso.
A primeira grande omissão das autoridades, o que colabora para a dificuldade da solução do caso, é que o corpo de Sarapó Ka’apor não foi imediatamente submetido a um exame de necropsia que poderia detectar a causa da morte. Também não foi emitido um atestado sobre a causa do óbito. A unidade de saúde se recusou a receber Sarapó sob a alegação de que ele já chegara morto ao local. O corpo foi levado pelos indígenas e enterrado no cemitério da aldeia.
Os indígenas levantam muitas dúvidas sobre a morte. No dia anterior, Sarapó havia trabalhado normalmente, inclusive “em atividades braçais”, não se queixando de nenhum problema de saúde, conforme testemunharam seus parentes. Somente um mês depois da morte, sob pressão dos indígenas e de organizações não governamentais, o corpo de Sarapó foi exumado, em 11 de junho de 2022.
De acordo com um relatório do Departamento de Perícia Oficial da Grande Ilha do Instituto Médico Legal (IML) do Maranhão, a exumação não localizou nenhum vestígio do peixe que pudesse ser submetido a exame. Não foi possível coletar sangue e urina. Outros materiais biológicos foram coletados. Uma das principais perguntas dirigidas pela Polícia Civil aos peritos era “se houve indícios de morte por envenenamento”. Essa e outras respostas só seriam possíveis, segundo os médicos-legistas, depois de mais exames.
Em dezembro de 2022, também após pressão dos indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), a Polícia Federal (PF) entrou no caso. A portaria de abertura do inquérito diz que, até aquele momento, a PF não havia recebido do IML os resultados dos exames realizados na exumação do corpo, em especial “os exames toxicológicos e a análise histopatológica”, isto é, a análise microscópica dos tecidos biológicos.
A Agência Pública perguntou à PF do Maranhão pelo menos três vezes, desde o mês passado, sobre os resultados dos exames e o andamento da investigação, mas não houve nenhuma resposta.
Segundo os Ka’apor, todos os resultados dos exames foram “inconclusivos” e, até o momento, a PF não informou à comunidade se a investigação já acabou e qual seu resultado.
O relatório do IML maranhense faz apenas uma menção, sem relacioná-la à causa da morte, de que na região do Alto Turiaçu há relatos “da existência da chamada ‘urina preta ou Síndrome (ou Doença) de Haff’, que é causada por uma toxina que pode ser encontrada em determinados peixes, como o tambaqui ou crustáceos, oriundo [sic] de águas naturais e não de criatórios como se aparente ser o caso”. A especulação não elimina a possibilidade de o doador dos peixes tê-los encaminhado a Sarapó já sabendo da presença da toxina.
As dúvidas sobre a morte de Sarapó Ka’apor ganham ainda mais relevância quando se leva em conta o histórico de violência contra os indígenas na região, o papel de Sarapó na resistência e as pressões que a TI Alto Turiaçu viveu, ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro, e ainda vive. O território de cerca de 500 mil hectares, homologado pela Presidência ainda nos anos 1980, é um colosso socioambiental no qual vivem mais de 4 mil indígenas. É considerada uma das últimas florestas da Amazônia relativamente preservadas no Maranhão, mas que tem sofrido inúmeras invasões agravadas durante o governo Bolsonaro.
Segundo os indígenas, Sarapó era considerado em toda a região um empecilho às ações dos invasores , em especial dos ladrões de madeira. Ainda durante os governos Dilma Rousseff (2010-2016) e Michel Temer (2016-2018), Sarapó e outros Ka’apor foram incluídos no programa de proteção a testemunhas do governo federal. Contudo, todos deixaram o programa porque houve um vazamento de informações para os madeireiros da região.
Os Ka’apor organizaram sua própria unidade de “guardiões da floresta ” indígenas para a defesa do território. Sarapó apoiava o trabalho dos “guardiões”. Segundo a Repórter Brasil, Sarapó “comandou, em 2019 e 2021, duas operações para expulsar grupos que tentavam iniciar a exploração de ouro na terra indígena”.
Em janeiro de 2022, ou seja, apenas quatro meses antes de sua morte, Sarapó liderou uma mobilização dos “guardiões” a fim de fechar uma estrada usada por madeireiros dentro da TI no município de Nova Olinda do Maranhão (MA). Logo depois disso, os indígenas denunciaram que ele foi alvo de retaliação dos madeireiros. “Eu e ele sofremos uma emboscada no início de fevereiro em um restaurante em Santa Luzia do Paruá”, disse à Pública o educador social e ativista José Mendes, membro do conselho gestor do centro de formação Saberes Ka’apor.
Na época, as lideranças Ka’apor divulgaram carta aberta na qual relataram que madeireiros cercaram um carro em que estavam duas pessoas, uma das quais era uma liderança Ka’apor.
“O território sofre invasões ilegais de madeireiros, caçadores, grileiros e pressão de mineradoras. Madeireiros extraem ilegalmente a madeira do território e, para isso, contam com a omissão do governo estadual, das polícias locais e federal e conivência de órgãos federais, como o Ibama e a Funai. Não bastasse isso, os agressores ainda recebem o apoio do governo Bolsonaro, que busca legalizar a destruição das florestas e regularizar a mineração em território indígena. Alguns prefeitos da região que são do mesmo partido do presidente da República (PL) já se anteciparam autorizando abertura de garimpo no município e apoiam extração ilegal de madeira no território Ka’apor”, denunciou a carta dos Ka’apor.
“As inúmeras agressões ao território Ka’apor e a outros territórios indígenas e quilombolas são de conhecimento do governador Flávio Dino e seus secretários que pouco ou nada fazem para impedi-las”, diz a carta, em referência ao então governador que, em janeiro de 2023, iria assumir o Ministério da Justiça. Hoje é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
As pressões sobre a terra Ka’apor são de pleno conhecimento das autoridades nacionais e internacionais. Em 2016, após uma viagem ao Brasil, a relatora especial sobre os direitos dos povos indígenas na Organização das Nações Unidas (ONU), Victoria Tauli-Corpuz, tratou, em seu relatório da missão, dos “índices de desmatamento, destruição de rios e empobrecimento dos solos decorrentes da prática intensiva de monoculturas e atividades de mineração que resultam em solos e águas inadequadas para o sustento das vidas dos povos indígenas. A inadequada resposta do Estado a essas ameaças têm levado os povos indígenas a protegerem eles mesmos suas terras e recursos naturais. Frequentemente, essa situação coloca suas vidas em risco, como é o caso dos Ka’apor no Maranhão e dos Manoki no Mato Grosso”.
A morte de Sarapó se encaixa nesse cenário. As lideranças Ka’apor procuraram a Defensoria Pública da União (DPU) e o MPF para pedir o esclarecimento do caso. “Senhores da DPU e do MPF, no dia 13 de maio, nosso parente Sarapó Ka’apor foi envenenado com peixe deixado em sacola na entrada da comunidade por moradores do povoado”, denunciaram, por email, em maio de 2022.
Os indígenas denunciam que a investigação da Polícia Civil do Maranhão demorou nos primeiros dias e horas após a morte, momentos considerados essenciais para o desvendamento de um possível homicídio. Diversos pontos na investigação ficaram pelo meio do caminho sem nenhum esclarecimento.
O homem que forneceu os peixes a Sarapó, por exemplo, jamais foi ouvido em depoimento. Pouco depois, esse homem, um ribeirinho não indígena, já se mudou da região, segundo os Ka’apor. Seu paradeiro é hoje ignorado pelos indígenas. Eles não sabem dizer o motivo pelo qual o homem decidiu doar peixes para Sarapó, ato que jamais havia feito anteriormente. Os peixes foram deixados com uma terceira pessoa na entrada do território com a recomendação expressa de que fossem entregues nas mãos de Sarapó, o que de fato aconteceu.
A situação relatada há quase oito anos pela relatora da ONU continua a mesma na TI Alto Turiaçu, segundo os indígenas. Em meio ao prosseguimento das invasões ao seu território, os Ka’apor aguardam – eles precisam – receber das autoridades uma resposta definitiva sobre a misteriosa morte de Sarapó.
Fonte
O post “A estranha morte, à espera de resposta, de uma liderança indígena ameaçada no Maranhão” foi publicado em 03/04/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública