É terrível ver o que está acontecendo no Afeganistão. As imagens de pessoas desesperadas correndo para o aeroporto para tentar fugir do país agora que o Talibã tomou a capital Cabul são assustadoras. Pior ainda quando lembramos o que o Talibã representa para as mulheres e outros grupos considerados minoritários, como LGBT ou gente de outras religiões que não a muçulmana.
Mas vamos por partes. Vou tentar reunir neste texto um pouco do que andei lendo sobre a situação desse país da Ásia Central com cerca de 34 milhões de habitantes. Mesmo pequeno, ele fica próximo a potências mundiais como China, Rússia, Irã e Índia. Logo, o que acontece lá pode afetar toda a (des)ordem mundial.
Não vou nem tentar resumir a história do Afeganistão, mas vale lembrar que esses vinte anos de ocupação militar americana (no mês seguinte ao 11 de Setembro de 2001, os EUA invadiram o país) não foram novidade. Durante a Guerra Fria, em que EUA e União Soviética disputavam cada território como se estivessem num tabuleiro de War, os soviéticos invadiram o Afeganistão. Entre 1979 e 1989, os soviéticos dominaram os afegãos. Enquanto isso, a CIA treinava e armava rebeldes e milícias para derrotar os soviéticos.
Por incrível que pareça, esse período da dominação soviética foi aquele em que as mulheres afegãs tiveram mais igualdade em sua história. Durante essa era, os direitos das mulheres eram apoiados tanto pelo governo afegão quanto pelos soviéticos, que eram contra véus e burcas e a favor da educação compulsória para todas as meninas (incluindo as da zona rural). Foi nessa época que foi criado o Conselho das Mulheres Afegãs. Não estou apoiando a invasão e ocupação soviética, assim como não apoio a americana, só descrevendo um fato.
Pouco depois dos soviéticos saírem, começou uma guerra civil. Os talibã (que significam estudantes) surgiram em 1994, para implantar a sharia, a lei islâmica. Em novembro daquele ano tomaram Kandahar, a segunda cidade mais importante do país. Seus primeiros decretos atingiam diretamente as mulheres: forçadas a usar burcas, foram proibidas de trabalhar fora de casa, de ir a escolas, de serem atendidas por médicos homens (o que, na prática, queria dizer que não teriam atendimento médico, ponto), de usar sapatos, de fazer barulho ao caminharem etc. A penalidade para calcanhares descobertos era o chicote. Para sexo fora do casamento, morte por apedrejamento.
Em setembro de 1996, o Talibã — que exige que as famílias entreguem meninas e mulheres solteiras para se tornarem esposas de seus combatentes — capturou a capital Cabul. Seu governo foi reconhecido por somente três países (Emirados Árabes, Arábia Saudita e Paquistão). Assim que tomaram o poder, proibiram todas as mulheres de trabalhar. Imaginem o caos: um quarto dos serviços civis de Cabul, todo o ensino e grande parte dos serviços de saúde dependiam das mulheres.
As escolas femininas foram todas fechadas. Mulheres não podiam sair de casa sozinhas, sem a companhia de um parente homem. As janelas tinham que ser pintadas para que ninguém enxergasse as mulheres dentro da casa. Até a burca afegã é ainda mais restritiva que as outras — a rede que cobre os olhos é mais apertada. Televisão, cinema e esportes também foram banidos. Todos os dias eram anunciadas novas proibições. Todos os homens tinham que usar barba, por exemplo.
Assim como na Arábia Saudita (eterna aliada dos EUA), foi criada a polícia de “Prevenção do Vício e Promoção da Virtude”. Uma das funções era fiscalizar o único hospital em Cabul em que as mulheres podiam ser tratadas, sempre acompanhadas de um parente homem. Os médicos homens não podiam tratar ou examinar as mulheres, e as médicas mulheres haviam fugido.
Por causa de tantas guerras, havia mais ou menos 30 mil viúvas em Cabul. Elas perderam a pensão. Sem parentes do sexo masculino, viraram mendigas. Até 2018, havia pelo menos meio milhão de viúvas no país todo. Hoje, são 2,5 milhões . Num país que considera que mulheres dependem dos homens, as viúvas constituem um dos grupos mais vulneráveis.
Depois do ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, as tropas dos EUA invadiram o Afeganistão para tentar capturar Osama Bin Laden. Foi fácil derrubar o Talibã. Tanto que o presidente Bush Jr decidiu invadir também o Iraque, que nada teve a ver com o 11 de Setembro. Com isso, o Talibã se infiltrou na fronteira com o Paquistão, reagrupando-se principalmente a partir de 2004.
Os EUA prometeram que sua maior intenção com a invasão era restaurar a democracia e os direitos humanos no Afeganistão. Não era, óbvio. Era pegar Bin Laden. E os EUA fracassaram até nisso. Só em 2011, dez anos depois da invasão ao Afeganistão, o terrorista foi assassinado — no Paquistão. E nem assim a Al Qaeda acabou.
Os atentados terroristas promovidos pelo Talibã continuavam, com a alegação de serem contra a “corrupção moral, mistura de sexos e promoção dos valores ocidentais”. Na época, um porta-voz do Talibã em Catar negou violação dos direitos das mulheres. Ele disse que o grupo defende que as mulheres tenham “todos esses direitos dentro dos valores islâmicos e afegãos”. Ou seja, zero de direitos.
Os EUA, cansados da mais longa guerra de sua história (a do Vietnã, que eles também perderam, durou oficialmente onze anos), em 2018 começaram negociações de paz com o Talibã. As feministas afegãs (sim, é lógico que existem feministas no Afeganistão; existem feministas em todo lugar) foram afastadas das negociações de paz por imposição do Talibã. Elas acusaram as negociações de excluírem direitos das mulheres, direitos humanos, ou sequer a preservação da Constituição do país, que garante direitos iguais. E isso que estudos da ONU provam que, quando mulheres participam de negociações de paz, um acordo tem 35% mais chances de ser cumprido. As feministas afegãs sempre avisaram que as condições das mulheres iriam se agravar se o Talibã voltasse.
A RAWA (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão) afirmou: “as conversações de paz com os Talibãs são insignificantes, hipócritas e simplesmente ridículas. Temos os talibãs de um lado, que são criminosos medievais, do outro, o regime fantoche composto pelos irmãos de credo dos Talibã, e o terceiro ator, os EUA, que é o criador de ambos”.
“É muito importante termos a paz, mas um tipo de paz que vai nos ajudar a continuar, não ao custo de perder o que conquistamos até agora”, já dizia uma feminista afegã em 2018. “Não estamos pedindo para os EUA lutarem a batalha por nós. Estamos pedindo que os EUA nos apoiem enquanto nós lutamos para proteger nossos direitos”, disse outra, três anos atrás. Onde estavam as prioridades americanas? Não na melhora da vida das mulheres, seguramente. Até o final de 2019, os EUA haviam gastado quase mil vezes mais em suas ações militares do que no auxílio para os direitos das mulheres.
Em fevereiro do ano passado, EUA e Talibã assinaram um tratado para “trazer a paz”. Isso incluía a retirada das tropas americanas e da OTAN, a promessa do Talibã de impedir a Al-Qaeda nas suas áreas, e conversações entre Talibã e governo afegão. Desde abril deste ano, quando Joe Biden anunciou a retirada de todas as tropas, o Talibã foi conquistando mais e mais distritos. No final de junho, já controlava 157 dos 398 distritos do país. Ontem, tomou Cabul (a CIA previa que o Talibã entrasse em Cabul em três meses. Foi antes mesmo dos EUA retirarem suas tropas). Agora, quer proclamar a ditadura teocrática totalitária islâmica do Emirado Islâmico do Afeganistão.
Toda a ação dos EUA nos últimos anos foi desastrosa , culminando na retomada do Afeganistão pelo Talibã. Vinte anos de guerra e um trilhão de dólares depois, Joe Biden declarou: “Fui o quarto presidente a presidir com tropas americanas no Afeganistão — foram dois republicanos e dois democratas. Eu não iria, e não irei, entregar esta guerra para um quinto”.
A Nobel da Paz Malala Yousafzai manifestou sua preocupação com o que acontecerá com as minorias do Afeganistão com a volta do Talibã. Ela não é afegã, mas paquistanesa. Ainda assim, foi vítima de um atentado realizado pelo Talibã em 2012, um tiro na cabeça ao voltar da escola de ônibus. Seu crime: defender o direito das meninas à educação. A primeira prefeita mulher no Afeganistão, Zarifa Ghafari, já avisou q o Talibã vai matá-la. Uma das notícias mais comentadas foi a de professores e professoras se despedindo das alunas universitárias, sem saber o dia da amanhã.
Um porta-voz do Talibá já prometeu: “Na nossa sharia é claro: para quem tem relações sexuais e não é casado, a pena é de 100 chicotadas em público. Quem rouba deve ter as mãos cortadas”. E: “Se não renunciarem à cultura ocidental, teremos que matá-los”. Como alguém, de esquerda ou de direita, pode comemorar a vitória de um grupo fundamentalista? Ponham-se no lugar das meninas, mulheres e LGBT do Afeganistão. É puro Gilead.
As mulheres e os LGBT que vivem no Afeganistão certamente devem estar comemorando o fim da opressão
O Afeganistão é um país miserável. O PIB aumentou durante a ocupação americana, mas isso não quer dizer grande coisa. Só que mais gente com dinheiro estava no país. Ao sair, levam o dinheiro. A condição das mulheres, e da população em geral, é horrível. Mas claro que houve avanços nesses vinte anos (apesar dos 241 mil afegãos mortos na guerra). A Universidade de Cabul foi reaberta após a queda do Talibã (só que agora em maio, bombardeios do Talibã a escolas de meninas em Cabul mataram mais de 85 pessoas, já indicando que os acordos de paz não seriam cumpridos).
As conquistas que agora estão sob ameaça com a volta do Talibã são muitas. Na política, atualmente, 27% da Câmara é dedicada às mulheres. Mulheres podem votar, dirigir carros, e participar das Olimpíadas. Também existem mulheres ministras, mulheres diretoras de ONGs, mulheres juízas, milhares de mulheres chefes de família. 3 mil postos de saúde foram criados, e a mortalidade materna caiu 40% .
Mulheres conseguiram incluir seus nomes nas certidões de nascimento dos seus filhos. Essa foi uma conquista das mulheres afegãs apenas no ano passado, através de uma campanha internacional chamada #WhereIsMyName (onde está meu nome?). 100 mil mulheres conseguiram chegar à universidade.
Mas, como o país patriarcal que é, a violência doméstica e os “crimes contra a honra” continuam. Mesmo proibidos em 2016, os testes de virgindade continuam sendo realizados. Dependendo do resultado, a mulher pode ser presa ou executada. O Afeganistão não deixou de ser um dos piores países para ser mulher.
Cinco meses atrás, no dia 8 de março, a RAWA acusou os EUA de impedirem “o estabelecimento de uma democracia, os direitos das mulheres e a independência e progresso do nosso país. […] Esta traição do governo americano, embora custosa para as pessoas do Afeganistão, também tem seu aspecto positivo: nosso povo percebeu que a promessa dos EUA para instalar democracia, direitos das mulheres e progresso em qualquer país, incluindo o Afeganistão, é uma mentira descarada”.
Toda a torcida e sororidade as nossas irmãs afegãs para que consigam vencer as opressões de uma vez por todas.
O post “A DERROTA DOS EUA, O TALIBÃ DE VOLTA, E O DESESPERO DAS AFEGÃS” foi publicado em 16th August 2021 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva