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Uma bandeira do Brasil de mais de 30 metros de comprimento, estendida em frente ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), na Avenida Paulista, será lembrada como a mais icônica imagem deste domingo, 21 de setembro de 2025, dia de protestos históricos em defesa da democracia – na semana que marca, também, o início da primavera.
A resposta nas ruas empatou, numericamente, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com manifestações bolsonaristas de duas semanas atrás, mas seu significado supera em muito os atos pró-anistia. Realizados em 33 cidades, os protestos de ontem foram, como bem lembrou Daniela Lima no UOL, os maiores protestos liderados pelo campo político da esquerda em 12 anos – enquanto os atos bolsonaristas vêm murchando.
Em 7 de setembro de 2021, Bolsonaro reuniu 125 mil pessoas na Paulista, segundo dados da PM. Em 7 de setembro de 2022, foram 32,7 mil na Paulista e 64,6 mil em Copacabana, onde ele estava, segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital. Em fevereiro de 2024, na Avenida Paulista, um ato pró-Bolsonaro reuniu 185 mil pessoas, segundo o Monitor. Isso, antes dos detalhes do plano golpista serem apresentados à população no longo processo de investigação e julgamento que se seguiu – e antes de Bolsonaro ser condenado a mais de 27 anos de prisão.
O recado, reforçado pela presença em Copacabana de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, é que o Brasil terá de enfrentar de uma vez a questão do golpismo militar latente na sociedade. As ruas não nos deixaram esquecer 1964. E o sentimento que mobilizou as pessoas a saírem de casa ontem foi o de angústia pela tentativa de costura de uma solução “mediada” por Michel Temer, em reunião no dia 19 de setembro, no conforto de sua casa no Alto de Pinheiros, em São Paulo, ao lado do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), o relator do projeto de Lei da Anistia, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), contando com reunião online com o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) e por telefone com os ministros do Superior Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
Temer queria “pacificar o país”, revestindo o PL da Anistia com o nome de PL da Dosimetria e passando a discutir redução de penas – ou seja, metendo-se o parlamento a legislar sobre anos de pena para os condenados do 8 de janeiro.
A sensação que se tinha, desde que a notícia pipocou nos noticiários, era que nos estavam roubando um momento que, embora gere desgosto em grande parte da sociedade, foi histórico. Conseguimos condenar generais, almirantes, tenentes e capitães por tentarem armar um golpe de Estado.
As manifestações de ontem disseram que isso, ninguém vai conseguir tirar dos brasileiros.
Não queremos mais ser o país do acordão.
O acordo costurado por um grupo de cavalheiros a portas fechadas cheira tanto a mofo que começou a ruir poucas horas depois, e por obra não daqueles que estavam nas ruas, mas do Bolsonarismo. No mesmo dia, o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, tuitou que a dosimetria de penas é prerrogativa do Judiciário. “Ou aprova a anistia ou Paulinho pede para sair”, disse à Andréia Sadi, da Globonews. Bolsonaro e seus filhos já deixaram claro que não querem “anistia light”. Eduardo e Flávio Bolsonaro foram pelo mesmo caminho em manifestações nos dias seguintes. Querem anistia ampla, geral e irrestrita pra todo mundo, inclusive para o ex-presidente.
E isso, segundo o relator, está fora de cogitação. “Anistia ampla, geral e irrestrita não existe mais”, disse . O grito que ecoou das ruas ontem aponta a mesma coisa. Embora o campo bolsonarista tente minimizar o recado, ele é eloquente: em um ano em que o Brasil venceu o Oscar pela primeira vez, Chicos, Caetanos, Gils, Rubens Paivas, Herzogs, Teles, Merlinos, ainda estão aqui.
Pesa, contra o autointitulado grande “pacificador” nacional, Michel Temer, o fato indiscutível que os últimos acordões forjados por ele foram retumbantes fracassos.
A começar pelo famoso acordão “com Supremo com tudo” para “estancar a sangria da Lava Jato”. Naqueles idos de 2016, a oferenda no altar do sacrifício foi a presidente Dilma Rousseff, empurrada pra fora da cadeia por um conluio feio que deveria levar o vice, Temer, à glória por unir a todos em um caminho rumo à estabilidade. Virou um peso morto, presidente com uma das piores popularidades da história, chegando a 6% de aprovação e 74% de reprovação – menos, aliás, que a própria Dilma. De quebra, deu espaço para a ascensão de Jair Bolsonaro, eleito, vale lembrar, apenas por que Lula estava na cadeia – mais um aspecto daquele acordão.
Um ciclo eleitoral depois, Lula é presidente do Brasil, Dilma Rousseff preside o banco do Brics e o governo petista ainda lidera todos os cenários eleitorais para 2026.
Também outro acordão de Temer da mesma época deu tremendamente errado. Relatei no meu livro Dano Colateral (ed. Objetiva) como ele se reuniu, ainda na condição de vice, com o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, na casa daquele, numa conversa que o próprio Temer descreveu como “uma conversa política muito agradável”. “Neste jantar em particular, aceitei um convite muito gentil do general Villas Bôas, tivemos uma boa prosa”, relatou ele, segundo o livro A Escolha, que descreve o jantar como “um ambiente de concórdia e de defesa do país”.
Temer ganhou o apoio da cúpula do Exército, transformou o general Sérgio Etchegoyen, amigo pessoal de Villas Boas, no seu ministro-forte e deu a secretaria de segurança do Rio aos militares – o interventor foi, vale lembrar, o General Barga Netto. Ali, Michel Temer construiu com esmero o ninho de onde sairia a serpente da tentativa de Golpe Militar de 8 de janeiro. (A esposa de Villas Boas sendo, como sabemos, uma das que visitava o acampamento golpista em frente ao QG do Exército em Brasília.)
Há ainda outros acordões de Temer que talvez levemos tempo para entender. Por exemplo. O ex-presidente foi contratado pelo Google para ajudar a enterrar a tentativa de regular as Big Techs com o PL das Fake News em 2023, mas também “para que ele atuasse intermediando diálogos em todos esses processos” – no STF e no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – nos quais os executivos do Google eram investigados por abuso de poder econômico para frear a votação do PL. A revelação é das jornalistas Juliana Dal Piva e Luiza Souto no especial A Mão Invisível das Big Techs.
Não se encontra um parecer de Temer no processo. Mas tanto a investigação do STF quanto do Cade contra o Google e demais Big Techs foram arquivadas. E nem por isso o Brasil deixou de tentar regular as Big Techs. Prova disso é a aprovação do PL da Adultização no final de agosto, e o envio na semana passada do projeto de lei para regulação concorrencial das Big Techs de competição pelo governo Lula ao Congresso. Pacificação? Nenhuma.
A democracia implica embates. E num embate como o da condenação de Bolsonaro, no qual existe legislação, devido processo, instituições e dosimetria, só há um caminho correto: cumprir a lei.
Como eu já disse aqui nesta coluna , a imagem da prisão de Lula ainda está fresca na memória das pessoas. Lembremos que, antes dele ser “descondenado” – na verdade, o processo foi extinto por imparcialidade do juiz Sérgio Moro – o atual presidente pelo menos teve a decência de encarar a Justiça. Assim, deu um enorme exemplo democrático. Mesmo aqueles que são contra a prisão de Bolsonaro.
Ainda não está claro o que vai acontecer com o PL da Anistia, e podemos agradecer à barbeiragem de Hugo Motta que ele tenha sido atrelado à PEC da Bandidagem, aproximando ainda mais, na visão da população, do que se tratam ambas: políticos tentando fugir da Justiça. Pelo menos aquela PEC deve ser enterrada essa semana no Senado, como já deixou claro o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) Otto Alencar (PSD-BA). Agora, as manifestações colocaram no caminho dos líderes da oposição um obstáculo a mais no caminho da sonhada anistia golpista, ampla, geral e irrestrita. A tarefa inglória de tentar dissociar aquela iniciativa de mais um empuxo rumo à impunidade.
Fonte
O post “O Brasil cansou de ser o país do acordão” foi publicado em 22/09/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública