Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui .
Jornalista da velha guarda, gosto de acompanhar o noticiário na TV e no rádio para saber que informações a população recebe de veículos que ainda alcançam milhões de pessoas com coberturas que também servem de matéria-prima para as redes sociais – ainda que muitas vezes com distorções ou deturpações.
O que só aumenta o valor do jornalismo como referência de informação segura e de qualidade, essencial para o debate público democrático. Por isso é tão preocupante observar que também esses veículos estão sujeitos a vieses e sensacionalismo no noticiário, ferindo a credibilidade do jornalismo e prejudicando o debate público.
Em nenhum campo isso é mais visível do que na cobertura policial, em que a busca pela audiência em um país com altas taxas de criminalidade faz o jornalismo leniente com a polícia ignorando o básico: em 2024 a polícia matou 6.413 pessoas, de acordo com a edição mais recente do anuário do Fórum de Segurança Pública.
Embora esses índices tenham se reduzido em 3,1% em níveis nacionais, os números, ainda escandalosos, dispararam em alguns estados, como São Paulo , com 813 vítimas da polícia, o que representa uma alta de 61% (isso mesmo!) de 2023 para 2024. Pior: o recorte racial do estudo mostra que as chances de uma pessoa preta ou parda ser morta pelas polícias é 3,5 vezes maior do que uma branca.
Desde que Tarcísio de Freitas assumiu o governo do estado, tendo como secretário de segurança Guilherme Derrite, um ex-PM orgulhoso das mortes praticadas em serviço, as taxas de violência policial vem crescendo, com sucessivos casos de abuso policial contra inocentes, incluindo crianças e adolescentes – em fevereiro deste ano, a Pública revelou que houve um aumento de 13% nas mortes dos mais jovens em ações policiais.
Por isso me chamou a atenção o noticiário do SPTV 2, da Rede Globo, no dia 10 de julho passado, em que a cobertura de protestos em Paraisópolis, depois de uma operação policial, dominou o programa sem esclarecer porque as pessoas – acusadas de vandalismo pelo âncora do jornal – estavam botando fogo em caçambas usadas em barricadas. A revolta escalou para a abordagem de motoristas, estas feitas por um pequeno grupo, que tiveram os carros depredados, fazendo subir o tom dos comentários do âncora enquanto eram exibidas as imagens captadas pelo helicóptero da TV.
Esperei em vão que o jornal apontasse os motivos para indignação violenta de parte da comunidade: só foi informado que uma operação policial havia prendido 3 pessoas e matado um homem, enquanto o âncora clamava pela presença do batalhão de choque nas ruas ainda cheia de gente. Para o SPTV aquilo era obra de “vândalos”, “bandidos”, sem necessidade de justificativa.
No dia 14 de julho ficamos sabendo o que detonou a reação popular quatro dias antes. Durante a operação policial, quatro PMs invadiram a casa de um morador de Paraisópolis atrás de “suspeitos” e executaram Igor Oliveira de Moraes Santos, 24 anos, que já estava rendido – como mostrou inadvertidamente a câmera corporal de um dos policiais. “As COP, as COP”, gritam os policiais assustados logo após matar Igor, referindo-se às câmeras operacionais portáteis (COP), como aparece na mesma gravação.
As imagens mostram um dos PMs disparando duas vezes contra Igor, que estava ajoelhado e encostado em uma parede de mãos para o alto. Ele cai no chão. Segundos depois, o policial manda que ele se levante. Enquanto ele se ergue, o agente faz outro disparo. Outro militar também atira em seguida. Igor está morto.
Um crime que poderia ter passado em branco não fosse o descuido de um dos policiais. Inimigo das câmeras corporais desde a campanha eleitoral, embora o uso dos equipamentos seja considerado pelos especialistas também uma proteção para os policiais, Tarcísio, pressionado pelo STF, implantou o sistema, mas com um novo modelo em que a câmera é acionada pelo próprio agente policial (o sistema anterior era automático).
As gravações da execução de Igor só foram feitas porque um dos policiais não percebeu que havia ligado o equipamento, que acionou também as câmeras dos colegas pelo sistema bluetooth, como reconheceu o coronel Edson Massera, chefe de comunicação da PM, ao anunciar a prisão dos policiais. De posse das imagens, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os quatro PMs – dois deles por atirar em Igor e os outros dois por apresentar versões do crime que contrariam os registros das câmeras corporais.
Com o caso esclarecido, fica a pergunta: a quem serve a insistente difamação de moradores das comunidades, apoiada em uma cobertura feita sem nenhum contato com os moradores nem questionamento à polícia, instigando a população contra supostos “vândalos” e “bandidos” antes mesmo de apurar a totalidade dos fatos?
Sim, houve violência nos protestos. Mas ela tem história, como revela reportagem da Agência Pública publicada nesta semana, em que moradores relatam o recrudescimento da violência policial na gestão Tarcísio, que acabou com uma das poucas diversões do lugar, os bailes funk, que já haviam sido alvo de um massacre da PM em 2019, com nove mortes.
Há menos de dois meses da execução de Igor, um jovem negro desarmado foi morto pela PM, também em Paraisópolis. Nicolas Oliveira tinha 19 anos e foi alvejado com quatro tiros de fuzil na mão esquerda, braço direito, cintura e perna esquerda. Segundo os moradores, a PM atrapalhou o socorro médico, e o jovem chegou morto ao hospital.
Outra vez a revolta da comunidade explodiu, com o fechamento de avenidas por barricadas; mais uma vez o batalhão de choque foi enviado, disparando tiros de balas de borracha contra a população. “Paraisópolis está revoltada, Nicolas era um menino legal”, explicou um de seus familiares à Ponte Jornalismo.
Por mais que aprecie o governador Tarcísio, candidato às eleições em 2026, a imprensa não pode esquecer que sua gestão é responsável pela “Operação Verão ”, a mais letal da história do estado desde o massacre do Carandiru (1992). Antecedentes que deveriam ao menos ter alertado o SPTV para os riscos de uma cobertura ao vivo, sem apuração, sobre um tema tão complexo e importante para democracia como é a segurança pública.
Fonte
O post “Quem estimula a violência policial em São Paulo?” foi publicado em 25/07/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública