Uma coisa com a qual sempre dá para contar no Brasil é o alçapão no fundo do poço. Na quarta-feira passada, dia 25, a Câmara derrubou por 383 votos a 98 o decreto de Luiz Inácio Lula da Silva que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Para além do mérito, a primeira derrubada de um decreto presidencial em 33 anos (da última vez que isso aconteceu, o presidente era Fernando Collor e o processo de impeachment já estava avançado) significa uma linha riscada no chão: o Congresso, “base aliada” e tudo, deu seu último grito de independência em relação ao Executivo. Hal-9000 acaba de trancar Dave para fora da nave.
O Parlamento percebeu que quem tem orçamento secreto não precisa fingir normalidade democrática e já começou o alinhamento de forças que, salvo um despertar súbito da sociedade brasileira e do campo progressista, culminará no retorno da extrema-direita ao poder em 2027, com ampla maioria parlamentar para transformar o Brasil em mais uma autocracia contemporânea.
Ato contínuo, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), mandou dizer que o PL 2159, que desmonta o licenciamento ambiental, será votado até o início do recesso parlamentar, no dia 16, e que a anistia aos golpistas do 8/1 está descendo do telhado. O governo, que já vinha rifando a agenda ambiental para tentar ganhar alguma no Parlamento, ficou pelado na chuva e deverá assistir ao pior retrocesso legislativo ambiental da história brasileira em plena COP30.
O cientista político Celso Rocha de Barros fez o melhor diagnóstico da situação em sua coluna da Folha no dia 29: o Congresso ficou maluco . Tal qual o vírus que mata o hospedeiro rápido demais e não consegue se disseminar muito longe por conta disso, deputados e senadores deixam de usar a contenção estratégica para acelerar a aprovação de uma agenda que só interessa, como diz Barros, a “golpistas e ladrões”.
A situação chegou ao ponto de o governo Lula, que passou dois anos e meio contemporizando com estes e aqueles, ter decidido partir para o confronto com o Congresso, colando-lhe a pecha de “inimigo do povo”. E, nesta semana, das cortes vieram doses de moderação: Alexandre de Moraes suspendeu os decretos do IOF do governo e do Congresso, o TRF-1 restaurou a liminar que impede o asfaltamento da mortífera BR-319, sonho dos congressistas, e a Corte Internacional de Direitos Humanos aprovou um parecer consultivo que pode dificultar na Justiça o enterro do licenciamento ambiental. Contamos essas e outras histórias nesta edição da newsletter.
Boa leitura.
Asfaltamento da BR-319 inviabiliza meta climática do país, alerta MMA
Desmatamento na região pode ser até quatro vezes superior a cenário sem o empreendimento e vai gerar 8 bilhões de toneladas de CO2 até 2050, dizem técnicos
O desmatamento adicional provocado pela eventual reconstrução e pavimentação da BR-319 (Manaus-Porto Velho) “vai gerar 8 bilhões de toneladas de CO2 até 2050, inviabilizando o alcance das metas climáticas apresentadas pelo Brasil no escopo da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e do compromisso de desmatamento zero até 2030”, aponta nota técnica do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
Caso as obras sejam realizadas, o aumento do desmatamento seria quatro vezes superior a um cenário sem o empreendimento, afirmam os técnicos, citando estudos. O documento destaca que, além dos impactos globais, a alta do desmate no entorno da rodovia irá interferir no regime de chuvas em escala regional, reduzindo a produção agropecuária e o abastecimento de água para grandes centros urbanos nas regiões Centro-Oeste e Sudeste.
A nota técnica foi assinada dezoito dias após decisão da Justiça Federal no Amazonas que, em julho do ano passado, suspendeu a licença prévia para reconstrução e pavimentação do chamado “trecho do meio” da BR-319, concedida pelo Ibama no fim do governo Bolsonaro. Nesta quarta-feira (2/7), decisão de segunda instância da Justiça Federal confirmou a suspensão da licença (leia abaixo).
Estudos citados na nota indicam que cerca de 95% do desmatamento na Amazônia ocorre a uma distância de até 5,5 km de rodovias e estradas. Isso ocorre porque essas obras em regiões historicamente remotas e com acesso apenas fluvial incentivam a tomada de terras (majoritariamente públicas) e a especulação fundiária, com ganho de capital por meio do desmatamento. Terras recém adquiridas são usadas para atividades agropecuárias que se viabilizam com a expectativa de aumento do preço da terra.
Construída sem licença ambiental durante o regime militar como parte do chamado Plano de Integração Nacional, a BR-319 foi inaugurada em 1976. Com a falta de manutenção, tornou-se intrafegável durante os meses de chuva já no fim da década de 1980.
Em 2014, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) obteve licença para manutenção da rodovia, tornando-a novamente trafegável durante a estação chuvosa em 2018. Com as obras de manutenção e a expectativa de asfaltamento, ocorreu uma explosão do desmatamento.
Em 2008, os municípios na área de influência da BR-319 somaram 534 km² de desmatamento, 4% do total na Amazônia. Dez anos depois, a devastação de floresta nativa na região havia dobrado. Em 2022, o desmatamento no entorno da rodovia atingiu 2.240 km², 18% do total registrado no bioma.
Com 918 km de extensão, a BR-319 liga Manaus, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. A área de influência da rodovia inclui 18 municípios. É formada por um mosaico de glebas públicas sem destinação (estaduais e federais), terras indígenas, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária.
Em 2001 foi concluída a pavimentação dos primeiros 58 km da rodovia, partido de Porto Velho (segmento B), e outros 100 km no extremo norte da rodovia, próximo a Manaus (segmento A). Já a pavimentação do trecho C, que estende em 51 km o segmento A, foi autorizada em 2020, mas suas obras ainda não foram iniciadas. Em 2022, o Ibama concedeu licença prévia para a reconstrução e pavimentação do chamado “trecho do meio”, que tem 405 km e corta uma das áreas mais conservadas da Amazônia.
Os técnicos da Secretaria de Controle do Desmatamento do MMA alertam que, como pré-requisito para a continuidade de qualquer processo de análise da viabilidade da obra, são necessárias ações para estabelecer, previamente, um quadro mínimo de governança ambiental e territorial capaz de mitigar os impactos socioambientais decorrentes das mudanças provocadas na dinâmica de ocupação do território.
“Os estudos são unânimes em prever um aumento significativo na taxa de desmatamento em toda a área sob influência da rodovia após sua reconstrução e pavimentação, dada a tendência de expansão da fronteira agrícola em direção às porções norte e oeste da Amazônia. (…) Com a pavimentação da BR-319, o desmatamento acumulado até 2050 alcançaria 170 mil km2, quatro vezes mais em comparação a um cenário sem a reconstrução da rodovia”, aponta o documento. “O desmatamento na região também causará graves impactos na disponibilidade hídrica, reduzindo a produção agropecuária e aumentando o risco de secas severas na Amazônia e em outras regiões do Brasil.”
Licença nula
Justiça Federal retoma suspensão de licença para a BR-319
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) restabeleceu na noite de quarta-feira (2/7) os efeitos de liminar que havia suspendido a validade da licença prévia emitida em 2022 pelo Ibama para as obras de reconstrução e asfaltamento da BR-319 (Manaus-Porto Velho).
A decisão da 6ª Turma do TRF-1 atendeu a um recurso do Observatório do Clima em ação civil pública que pede a anulação da licença em razão de inconsistências legais, técnicas e ambientais no processo de licenciamento, realizado na gestão Bolsonaro. Contrariou parecer do relator, o desembargador federal Flávio Jardim, que em outubro de 2024 havia aceitado recurso da União, do Ibama e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), derrubando a liminar.
Três meses antes, em julho do ano passado, a 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas havia suspendido a licença prévia em decisão liminar. A juíza Mara Elisa Andrade aceitou os argumentos de que a concessão traria “riscos de danos irreversíveis à floresta amazônica”.
Em sua manifestação ao TRF-1, o advogado do OC, Paulo Busse, lembrou que a concessão da licença prévia em 2022 já desencadeou uma escalada de 122% do desmatamento no entorno de trecho da rodovia. “Essa licença prévia é nula. Com ela, a autarquia deu uma declaração de viabilidade ambiental para um empreendimento que, no contexto atual, é claramente inviável. Com o asfaltamento haverá explosão do desmatamento e da degradação ambiental em uma das áreas mais preservadas da Amazônia. Não há consistência técnica ou jurídica para esta licença”, disse a coordenadora de Políticas Públicas do OC, Suely Araújo. Mais aqui .
Direitos Humanos
Estados têm obrigação de enfrentar a crise climática, decide Corte Interamericana
A Corte Interamericana de Direitos Humanos aprovou nesta semana parecer consultivo em que define o enfrentamento à crise climática como uma obrigação dos Estados no contexto do direito internacional. De acordo com o documento , a situação atual exige “ações urgentes e eficazes de mitigação, adaptação e avanço em direção ao desenvolvimento sustentável”. “Os Estados têm a obrigação de agir (…) para combater as causas humanas das alterações climáticas e proteger as pessoas sob a sua jurisdição dos impactos climáticos, em particular aquelas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade”, conclui o parecer.
Com sede na Costa Rica, a Corte Interamericana é composta por sete juízes e tem sua competência reconhecida por 20 países – entre eles, Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia e Argentina, onde suas decisões têm efeito vinculante (ou seja, devem ser cumpridas). O parecer sobre a questão climática foi produzido a partir de consulta formulada pelos governos do Chile e da Colômbia e seu processo consultivo foi descrito pela entidade como o mais participativo de sua história. “Foram recebidas mais de 260 observações escritas, apresentadas por mais de 600 atores em nível global, e mais de 180 delegações [a definição inclui países, ONGs, movimentos sociais, entre outros] foram ouvidas em três audiências públicas, celebradas ao longo de cinco dias em Barbados e no Brasil, nos meses de abril e maio de 2024”, descreveu a entidade em nota à imprensa. Mais aqui .
Primeiro teste
Brasil evita fracasso em Bonn
Foram duas semanas de tensão e muito calor. A conferência do clima de Bonn, na Alemanha, preparatória para a COP30, começou com briga de agenda e quase foi sequestrada pela pauta do financiamento climático. Mas, apesar da batalha campal sobre o dinheiro, a presidência brasileira da COP conseguiu sair da antiga capital da Alemanha Ocidental com textos de negociação sobre transição justa e adaptação encaminhados para Belém. O Brasil esperava mais: a ideia inicial era sair de Bonn com três textos praticamente prontos para a adoção em Belém. Não deu. O que se viu foram encaminhamentos pouco consensuais, que ainda serão objeto de longo debate na COP.
Ainda assim, foi possível salvar a conferência preparatória de um fracasso e avançar em pontos importantes. Na avaliação de Ana Toni, diretora executiva da COP30, “as coisas andaram” . No caso do Diálogo para implementação do Balanço Global do Acordo de Paris, a principal ferramenta para guiar o aumento da ambição dos países nas suas metas climáticas nacionais, foi possível apenas encaminhar para Belém duas versões para debate. Melhor sorte teve o Programa de Trabalho sobre Transição Justa: as conversas foram concluídas em Bonn e o texto encaminhado, celebrado pela sociedade civil por incluir demandas históricas como menções a gênero e afrodescendentes. A terceira agenda prioritária, adaptação, terminou com um rascunho considerado pouco satisfatório aprovado e encaminhado para Belém. Entre as críticas ao texto deste terceiro item está a retirada da menção sobre afrodescendentes da versão final. Leia mais aqui .
Mapa do fogo
Incêndios atingiram 30 milhões de hectares no Brasil em 2024
O Brasil teve 30 milhões de hectares afetados por queimadas em 2024. A área equivale a sete vezes o território do estado do Rio de Janeiro, cifra 62% acima da média histórica anual. Pouco mais da metade dessa extensão, 15,5 milhões de hectares, se concentrou na Amazônia, segundo o Relatório Anual do Fogo , do Mapbiomas. É a maior área queimada no bioma desde 1985. O levantamento cita fatores climáticos entre os contribuintes — como os dois anos consecutivos de seca intensa registrados na região —, mas aponta a ação humana como principal vetor. Foi a primeira vez na série histórica em que florestas foram a principal classe atingida por incêndios (43%) na região. Até então, segundo o Mapbiomas, as pastagens lideravam esse ranking. Mais aqui .
Pífia
Comissão da UE propõe redução de 90% das emissões até 2040
A Comissão Europeia apresentou nesta semana proposta de meta climática que prevê o corte de 90% das emissões líquidas de gases de efeito estufa no bloco de países até 2040 em relação às registradas em 1990. A recomendação, que ainda precisa ser aprovada pelos países-membros, é etapa fundamental da estratégia para alcançar a neutralidade climática do bloco até 2050, mas frustrou quem esperava mais ousadia na implementação.
“Infelizmente, a proposta já vem com a comissão se rendendo à pressão dos Estados-membros e de alguns integrantes do parlamento europeu para incluir lacunas, como os Créditos de Carbono Internacionais”, criticou Chiara Martinelli, diretora da CAN Europa . Ela se refere à possibilidade, sugerida pela comissão, de que os países possam adquirir créditos de carbono internacionais para compensar até 3% de suas emissões líquidas, “em conformidade com as regras contabilísticas do Acordo de Paris”.
A comissão disse ter optado por um caminho que oferece o “melhor equilíbrio” entre ambição climática e viabilidade financeira e tecnológica. As medidas tiveram recepções distintas entre especialistas, pesquisadores e entidades do campo socioambiental. “O próximo sinal significativo que a Europa precisa dar é a apresentação de uma NDC ambiciosa até setembro”, disse Stela Herschmann, especialista em Política Climática do OC.
Para dar a dimensão do ambiente complexo em que a proposta é apresentada, a imprensa europeia citou movimentações de bastidores do presidente da França, Emmanuel Macron, para adiar os debates sobre a meta. “É ótimo se tivermos a meta de 2040 para Belém, mas não é o que se espera de nós. Então, não vamos nos sobrecarregar”, disse, em resposta ao site Político. Mais aqui .
Novo anormal
Onda de calor deixa 8 mortos na Europa
Com temperaturas recorde, a onda de calor que atinge a Europa neste início de verão já deixou ao menos oito pessoas mortas, centenas hospitalizadas e levou governos a fecharem escolas e pontos turísticos. As mortes causadas por altas temperaturas foram registradas na Espanha (quatro pessoas), na França (duas) e na Itália (duas). As altas temperaturas provocaram ainda incêndios florestais na Espanha e na Grécia e forçaram o fechamento de um reator nuclear na Suíça. Segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), a quebra de recordes neste período do ano é motivo de preocupação, já que episódios de calor extremo como esse tipicamente ocorrem durante o pico do verão. Mais no site do OC .
CENTRAL DA COP
Contact us for COP30
Governo descumpre prazo de novo e hotéis em Belém têm plataforma “alternativa”
A promessa do governo federal de entregar até o fim de junho uma plataforma oficial para hospedagens durante a COP30, feita durante a Conferência do Clima de Bonn, na Alemanha, não foi cumprida. O secretário da Casa Civil para a COP30, Valter Correia, blefou em reunião da ONU com representantes de quase 200 países e da sociedade civil. Não foi a primeira vez. Desde fevereiro, outros anúncios de lançamento “em breve” foram descumpridos. Enquanto isso, surgem plataformas “alternativas”. Uma delas promete resposta em até quatro horas e afirma ter recebido a visita de mais de 170 mil interessados na última semana. “Com nossas acomodações, os participantes da COP30 só precisam relaxar.” No site, nenhum dos integrantes da “equipe” tem sobrenome. Faltam quatro meses para a COP30.
Arena do Clima
Teatro Waldemar Henrique, em Belém, vai receber a Central durante a COP
A Central da COP vai transformar o Teatro Waldemar Henrique, no centro de Belém, em um espaço de mobilização e engajamento popular durante a COP30. Com programação gratuita e linguagem acessível, a Central realizará rodas de conversa, oficinas, exposições e transmissões ao vivo. A primeira etapa dessa empreitada ocorre já agora, no dia 23 de julho, quando organizações de Belém e da rede do OC reunir-se-ão (alô, Michel Temer!), no próprio teatro, para pensar juntas na programação para novembro.
Quem não tem cão…
Caça com Meta Global de Adaptação
Seis agendas de adaptação foram debatidas na Conferência de Bonn. Uma delas, a Nairobi Work Programme, foi concluída. As outras andaram a passos lentos, exceto uma, a Meta Global de Adaptação (GGA). Adotando uma lógica de “quem não tem cão, caça com gato”, os países decidiram apostar na resolução dela, diminuindo de 9 mil para 490 a lista de indicadores para medir o progresso alcançado (na COP, a lista deverá ser reduzida a 100). Thaynah Gutierrez conta em detalhes na sua coluna Linha de Impedimento .
Dieta de campeão
A comida no debate e na mesa da COP
Se a COP é na Amazônia, nada mais justo que servir comida da Amazônia. Mapeamento feito pelos institutos Comida do Amanhã e Regenera mostram que cooperativas próximas a Belém têm capacidade de abastecer a Conferência das Partes com frutas, hortaliças, castanhas, farinhas e pescados responsáveis. A iniciativa pode gerar até R$ 5,5 milhões para a produção local.
Na Playlist
A nação de Mottas e Alcolumbres: O de cima sobre e o de baixo desce; sempre uns com mais e outros com menos .
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O post “Na newsletter: asfaltamento da BR-319 inviabiliza meta climática do país e mais” foi publicado em 08/07/2025 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima