Ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim avalia que as crises no Oriente Médio e Europa ajudaram a decretar a falência de órgãos multilaterais como o Conselho de Segurança da ONU, que perderam eficácia e legitimidade diante dos conflitos do século 21.
Amorim defende a construção de uma nova ordem mundial, com mais participação de países em desenvolvimento. Para ele, as normas vigentes foram criadas em um mundo muito diferente do de hoje. “É como imaginar no início do século 20 a Europa ser regida pelos princípios do Congresso de Viena [feito após as Guerras Napoleônicas]. Não tem cabimento, é outro mundo”, disse em entrevista à Agência Pública.
Com sua experiência em negociações delicadas, como a tentativa do Brasil de mediar um acordo nuclear com o Irã , em 2010, junto com a Turquia, o diplomata reafirma a importância de recuperar canais diplomáticos, inclusive com atores considerados “difíceis”.
Ele avalia que o contexto atual está mais perigoso do que na crise dos mísseis de Cuba, quando também se temia um ataque nuclear. Agora, a situação está mais instável pela multiplicidade dos atores envolvidos, e há potencial para escalar para uma nova guerra mundial.
Por que isso importa?
- Órgãos como o Conselho de Segurança da ONU perderam sua eficácia para mediar conflitos do século 21, diz Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais.
- Diante da crise no Oriente Médio e do risco do conflito ganhar escala global, ele defende a construção de uma nova ordem mundial, que leve em conta a maior participação de países em desenvolvimento.
Leia os principais trechos da entrevista:
Essa crise no Oriente Médio pode ser considerada mais grave que a crise dos mísseis de Cuba, em 1962? Por que?
No momento houve uma trégua, então é difícil dizer, mas potencialmente ela é mais grave. A crise de Cuba foi muito perigosa, mas eram dois atores razoavelmente pragmáticos. A União Soviética fez um lance atrevido, viu que não dava, negociou e pronto. Agora são muitos atores, então seria muito perigoso que saísse do controle. Aparentemente ficou controlada, mas ainda é cedo pra gente fazer um julgamento.
O acordo nuclear de 2015 (JCPOA) estava funcionando? Por que os EUA decidiram se retirar sob o governo Trump?
Acho que é uma visão diferente entre as administrações democrata e a do presidente Donald Trump. O acordo feito em 2015 na realidade foi uma sequência da tentativa de negociação que nós fizemos, nós, Brasil e Turquia, à pedido do ex-presidente Barack Obama. Depois os Estados Unidos voltaram atrás, mas eles continuaram dentro dessa perspectiva de encontrar uma solução diplomática. No final de 2011, teve um artigo importante da Anne-Marie Slaughter, que foi Secretária de Planejamento dos EUA, dizendo que voltar ao acordo da Turquia e do Brasil seria melhor. Isso continuou e aí saiu o JCPOA. Eu acho que a visão do atual presidente americano é diferente, ele quer ter controle de todas as situações da forma dele.
Também não consigo entender bem porque nesse período do governo democrata Joe Biden eles não conseguiram avançar num acordo. O fato é que se você for acompanhar o número de centrífugas do Irã, era um número relativamente pequeno quando nós negociamos. Cresceu no intervalo de 2010 até o JCPOA e então ficou estacionário muitos anos. Depois que cresceu muito.
Dá para dizer que o acordo estava funcionando, mesmo sem os EUA?
Acho que não, porque ao mesmo tempo o Irã estava aumentando a capacidade dele de produção. Eu não creio que o Irã fosse ter uma arma atômica, porque eles sabem que isso teria consequências graves – embora Israel tenha mais ou menos cem armas nucleares, ninguém sabe direito. Mas de qualquer maneira eles estavam crescendo a capacidade, e para quem olha numa perspectiva de temor, de que o Irã não é controlado. Essa não é a nossa perspectiva. Eu conversei com eles, não é fácil a conversa com eles, mas é possível. Nós fizemos isso, nós e a Turquia. Se você olhar dentro de uma perspectiva que lá na época eles tinham 1,2 mil quilos [de material nuclear] e achavam perigoso, hoje provavelmente deve ter mais de 10 mil quilos, uma parte disso com um grau de enriquecimento muito maior do que havia na época.
Acho que a grande falha do lado Ocidental, dos Estados Unidos principalmente, foi não ter aceito naquela época. Houve uma mudança de ideias brusca. Eu acho inclusive, e isso é uma opinião minha, que havia uma visão diferente entre a Casa Branca e o Departamento de Estado. A Casa Branca queria um acordo, o Departamento de Estado não. O Departamento de Estado acabou prevalecendo. E eu digo isso baseado no fato de que a Anne-Marie Slaughter, que era gestora de planejamento do Departamento de Estado, dizia que era melhor tentar voltar ao acordo Brasil e Turquia.




Qual a relevância atual do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), diante do fato de países como Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte já terem desenvolvido armas nucleares fora dele?
Israel foi o primeiro, bom deixar isso claro. Depois vieram Índia, Paquistão e Coreia do Norte. Mas eu não sei. O Brasil não deseja ter armas nucleares, não está no nosso programa, no nosso projeto. A Coreia do Norte ficou lá, né? Com a com as armas que já tinha. E o Irã, que não produziu arma nuclear, sofreu os ataques que sofreu, um grande ataque inicialmente de Israel e depois com participação depois nos Estados Unidos, inclusive para atingir os reatores que estão em áreas profundas. Portanto é uma coisa muito perigosa.
O senhor diria que há uma falência do regime internacional de controle nuclear? O que restaria dele?
A ordem internacional acabou. A ordem internacional tal como ela foi desenhada, e o TNP é parte dessa ordem, acabou. Acho que a credibilidade do sistema foi muito afetada. Eu participei, muitos anos atrás, num esforço para evitar uma guerra entre os Estados Unidos e alguns aliados contra o Iraque. Os EUA alegaram que o Iraque tinha armas químicas, na realidade ele não tinha, e isso acabou levando à destruição do Iraque. Durante muito tempo houve um caos que propiciou inclusive a criação do Estado Islâmico. Esse tipo de ataque é muito ruim.
Eu acho que nós temos que construir uma nova ordem. Não sei exatamente como será, mas acho que tem que levar mais em conta a presença de países em desenvolvimento. Acho que os Brics terão uma importância muito grande nessa nova construção mundial.
Acho que a não-proliferação nuclear continuará sendo um objetivo, mas sem esquecer que o próprio TNP estabelece que os países nucleares têm que tomar medidas de desarmamento, também caminhar para o desarmamento. Em 2000, eu participei de uma conferência de revisão do TNP, foi a primeira que o Brasil participou, e foram aceitos 13 passos em direção ao ao desarmamento nuclear. A única maneira de garantir que não haja proliferação é acabar com as armas para todos. Mas não é uma coisa fácil.
Como isso seria possível?
Primeiro você tem que desacoplar armas que estão nos foguetes, botar elas separadas. Isso já dificulta o uso. Depois você tem que desfazer a própria arma. Enfim, são 13 passos, isso tudo levaria bastante tempo, provavelmente uns 30 anos. E teria que acontecer em paralelo em todos os países que têm hoje armas nucleares. Mas a única maneira de você ter certeza é se todos os países abrissem mão. É improvável no curto prazo, mas, como eu sou otimista, acho que no longo prazo não é impossível.
Essa crise expõe a ruína do sistema multilateral? A ONU e o Conselho de Segurança ainda têm alguma utilidade prática?
O Conselho de Segurança na realidade não é um conselho de segurança. Ali estão os membros permanentes que não correspondem mais ao que é o mundo de hoje. Com todo respeito à França, à Inglaterra, que são países importantes, mas não há razão para deixar o Brasil de lado. Não há razão para esses países serem membros permanentes e a Índia não ser. O próprio conceito de membro permanente como ele é hoje, com poder de veto, eu acho discutível. É complexo. Mas eu acho que países que hoje estão no Brics, por exemplo, como a Índia, Brasil, e países africanos, como a África do Sul, teriam que integrar o conselho.
É como imaginar no início do século 20 a Europa ser regida pelos princípios do Congresso de Viena [feito após as Guerras Napoleônicas]. Não tem cabimento, é um outro mundo. Quando a ONU foi criada, eram uns cinquenta países. Os países da América Latina entraram logo, mas não tinham nenhuma influência. Hoje tem países fortes, outros decaíram em termos relativos.
Então teria que ter uma grande reforma dos órgãos multilaterais. O senhor vê isso acontecendo?
Nós temos apoiado o artigo 109 da carta da ONU que prevê a possibilidade de convocar uma conferência de revisão da carta. O conjunto da carta. Nós não podemos acabar com a ONU. É o que a gente tem. A gente tem que partir do que a gente tem. Mas eu acho que as grandes crises são também as portadoras das grandes mudanças.
O presidente Trump, para não falar no presidente de Israel, não teve sequer a preocupação de levar o assunto ao Conselho. Até o presidente Bush tentou obter o apoio do conselho. Tentou, não conseguiu. Mas agora nem sequer houve tentativa. Não existe mais o Conselho de Segurança. Não existe a ONU. Como não existe a OMC. Daqui a pouco não vai mais existir Banco Mundial.
Nós temos que ter, daqui um tempo, uma grande conferência. Como foi Versailles, como foi São Francisco, e redesenhar o que a gente quer no mundo. Agora qual é esse desenho? Eu não sei. Eu sei que os Brics têm uma importância grande nesse desenho. O G-20 talvez sendo um pouco menos europeu. Tem que ser um novo desenho da ordem mundial, sem jogar fora o que já temos. Então vamos adaptando o que já se tem para chegar nesse novo desenho.
O papel das mulheres, as questões raciais, tudo isso também tem que ser levado em conta. A carta da ONU não fala em meio ambiente. Fala superficialmente dos direitos humanos e muito menos especificamente do direito das mulheres. Não trata praticamente a questão do racismo. São questões globais importantes.
O senhor vê que tem espaço pra isso hoje? Existem movimentos pressionando por essa mudança?
Depende da posição dos países. Espaço não fica esperando pra gente chegar lá e entrar. Você tem que abrir o espaço. Você tem que cortar o espaço. Eu espero que a reunião do Brics em julho no Rio de Janeiro ajude a empurrar alguns países nessa direção.
O senhor já falou sobre uma possível grande guerra mundial se as coisas continuarem escalando. Como vê isso hoje?
Você tem hoje uma guerra na Europa, em que um lado está a Rússia, do outro a Ucrânia, mas não é a Ucrânia sozinha, a Ucrânia está sendo armada pela Europa. Tem a Europa aumentando para 5% em cada país os gastos de defesa. É uma barbaridade, tem a ver com a guerra da Ucrânia e deve ter a ver também, indiretamente, com a guerra de Israel-Estados Unidos-Irã.
Então você tem já uma guerra europeia envolvendo uma potência nuclear que é a Rússia. Do outro lado tem os Estados Unidos envolvido em outra guerra. São duas guerras muito amplas e muito profundas.
Por ora, parece que há uma trégua entre Irã e Israel. Se isso predominar, continua tendo o problema do genocídio da população palestina, que é gravíssimo. Mas uma guerra com esses atores têm todo o potencial para se transformar numa guerra mundial. Mesmo que haja um resto de bom senso de que um país não use arma nuclear contra outro, mesmo assim o risco é muito grande.
E apesar de tudo isso, o senhor continua sendo otimista?
Quero acreditar que vai ter uma solução e que o bom senso vai prevalecer. Não sei o que vai acontecer. Não tenho bola de cristal comigo, nem nenhuma outra acessível. Mas essa trégua aparente é uma indicação de que talvez dê pra perdurar, e aí o risco diminui. Mas eu não esperava que Israel fosse atacar o Irã, que os Estados Unidos fossem se juntar a esse ataque. Então pode voltar a acontecer.
Criamos um grupo de Amigos da Paz na ONU, iniciativa de Brasil e China. São instrumentos que a gente procura usar, persuasivos, mas nenhum deles é garantido. Nós temos que contribuir junto com os outros. A China é um país que tem grande influência sobre a Rússia, então é importante que o Brasil se junte com ela. E é importante que haja um diálogo entre as partes. Tudo isso vai criando uma confiança que talvez, em algum momento, facilite a adoção dos princípios que Brasil e China lançaram. A gente vai fazendo o possível e acreditando que vai funcionar.
Fonte
O post ““A ordem internacional acabou”, afirma Celso Amorim” foi publicado em 30/06/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública