A mineradora inglesa Anglo American tinha em seu nome na Agência Nacional de Mineração (ANM) 72 processos com áreas sobrepostas em 34 assentamentos registrados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a maioria para cobre e uma pequena parte para níquel, ambas substâncias consideradas essenciais para a transição energética.
Deste total, segundo os dados do levantamento do Observatório da Mineração, 42 requerimentos estavam concentrados no Centro Oeste, sendo 38 deles no Mato Grosso. A mineradora, no entanto, desistiu de seguir com quase todos estes requerimentos seja por simples desistência, por relatório de pesquisa ter dado negativo ou por não ter sido aprovado pela ANM. Resta, no entanto, 1 processo ativo sob titularidade da Anglo com sobreposição a um assentamento, conforme detalhado a seguir.
Os processos antigos para extração de cobre incluem assentamentos na região de Colniza no Mato Grosso, área marcada por conflitos no campo e por um massacre de nove trabalhadores rurais em 2017 , além de situados em Peixoto de Azevedo, que figura na lista das cidades com maiores áreas de garimpo do país.
Os processos da empresa multinacional também estavam em duas das maiores áreas de garimpo ilegal do Brasil, no Pará, com 30 requerimentos da Anglo nas cidades de Jacareacanga e Novo Progresso.
Do total de processos da mineradora, 37 estavam na fase de disponibilidade e outros sete estavam aptos para disponibilidade. Nestas duas fases, apesar de ativos no sistema da ANM, indicam que serão devolvidos para a agência e podem ser requeridos por outras mineradoras, inclusive pela própria Anglo American.
Em nota enviada à reportagem, a empresa diz que “não possui nenhum direito minerário ativo em áreas demarcadas pelo Incra para assentamentos da reforma agrária”. “A base de dados da ANM é atualizada regularmente, mas ainda guarda alguns dados históricos que não refletem a situação atual. A Anglo American trabalha continuamente, junto à ANM, para incentivá-los a atualizar o banco de dados”, alega a mineradora em comunicado.
No entanto, pesquisando os processos registrados no nome da empresa e entre os que estão na fase de autorização de pesquisa, a reportagem encontrou um deles iniciado em 2017 (850494/2017) em que houve a troca dos direitos minerários da Anglo American Níquel Brasil Ltda para outra empresa do grupo, a Anglo American Investimento de Ferro Ltda com registro recente firmado na ANM em 10 de abril deste ano.
O processo está na área do PA Tucumã, assentamento criado pelo Incra em 1991, na cidade de mesmo nome localizada no sudeste paraense. No local, segundo os dados do Incra, estão assentadas 3.743 mil famílias em uma área de 400 mil hectares. Em 2018, parte das famílias recebeu seus títulos definitivos da terra em um projeto de parceria entre a prefeitura da cidade, sindicatos rurais e o Incra.
Outros seis processos da Anglo American no Mato Grosso estavam na fase de autorização de pesquisa. Esses processos constavam em áreas de assentamentos do Incra em Colniza e Peixoto de Azevedo e tem um despacho idêntico, segundo os dados mais recentes da ANM. Com data de 13 de novembro de 2023, dá parecer negativo para a pesquisa para cobre realizada nestas áreas sobrepostas pela empresa.
Anglo reforça que não tem interesse sobre assentamentos, mas ANM confirma que um processo segue válido
Em um destes processos a interferência com dois assentamentos é informada à empresa em 2019, antes da aprovação do requerimento de pesquisa e da comunicação do começo da pesquisa iniciado em janeiro de 2020 pela empresa, conforme comunicação realizada à ANM.
Não existe informação no processo, pelo menos nos documentos acessíveis no processo administrativo, confirmação de que a Anglo cumpriu a exigência de ter a anuência do Incra. O processo mostra, assim como os demais citados acima, que seu relatório de pesquisa foi negado.
O artigo do Código de Mineração (Inciso II, do Art. 30 do Código de Mineração) citado no último ato do processo em 2023 e em outros cinco processos nesta fase em Mato Grosso em nome da empresa, diz que são negadas “quando ficar constatada insuficiência dos trabalhos de pesquisa ou deficiência técnica na sua elaboração”.
Isso contradiz a informação da empresa, assim como o processo do Pará, em que houve troca do direito para uma mesma empresa do grupo. Enquanto a Anglo afirma que “não possui nenhum direito minerário ativo em áreas demarcadas pelo Incra para assentamentos da reforma agrária”, a timeline dos fatos indica o contrário.
Pela cronologia do processo, o aviso de 2019 da ANM sobre a sobreposição nas áreas dos dois assentamentos e a pesquisa realizada pela empresa, comprovada na comunicação à agência em 2020, são anteriores à edição pelo Incra, em 22 de dezembro de 2021, a Instrução Normativa 112.
A norma estabeleceu regras para uso de áreas de assentamentos por empreendimentos para atividades de mineração, além de projetos de energia e infraestrutura. E como mostrou o Observatório da Mineração na primeira reportagem sobre o tema , foram abertos, depois desta norma e desde o começo de 2022, 982 processos com 1.337 sobreposições em assentamentos.
Questionada sobre os dados e os processos citados acima, a Anglo, apesar de ter pedido mais tempo para responder os questionamentos específicos, informou que mantém a resposta anterior enviada à reportagem.
Já a ANM atesta que em pelo menos um dos processos a empresa ainda tem os direitos minerários, retificando uma informação anterior enviada.
“A Agência Nacional de Mineração (ANM) retifica a informação quanto à ausência de titularidade da empresa Anglo American em áreas com interferência em assentamentos. Após nova verificação, constatamos que o processo ANM nº 48405.850494/2017-04, de titularidade da empresa Anglo American Investimentos Minério de Ferro Ltda., apresenta pequena interferência no extremo nordeste de sua poligonal com o Assentamento PA TUCUMÔ.
A agência reguladora enviou uma planilha contendo a análise individual de todos os processos que estão registrados em nome da Anglo e que têm sobreposição com assentamentos do Incra. “Observa-se que, com exceção do processo citado acima, todos os demais tiveram seus respectivos títulos extintos, não estando, portanto, com direitos minerários vigentes sobre áreas de assentamento”, informa a ANM.
Algo semelhante ocorreu em 2023. Após matérias publicadas pela Mongabay e pelo Observatório da Mineração e por uma campanha feita pela Amazon Watch, o povo Munduruku e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Anglo American desistiu formalmente dos requerimentos minerários na ANM que incidiam sobre diversas terras indígenas no Brasil . Os requerimentos, porém, permaneceram por muito tempo na base da ANM. Além disso, como já informado, a regra da agência reguladora permite que uma mineradora que desistiu do requerimento volte a requisitá-lo, caso queira, participando em eventual disputa com outras empresas.
A mineração em terras indígenas, proibida no Brasil, voltou a ser discutida formalmente no Senado após ser retomada na “câmara de conciliação” criada no Supremo Tribunal Federal e anos de articulação do ex-governo de Jair Bolsonaro e Arthur Lira na Câmara. O STF, inclusive, acaba de dar 2 anos de prazo para que o Congresso regulamente a mineração e outros empreendimentos em TI’s.
No Mato Grosso, assentados vivem em estado de alerta depois de tentativas de exploração mineral em suas áreas; Entidade pretende fazer mapeamento dos conflitos no estado diante do avanço do interesse mineral
Inácio José Werner, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de Mato Grosso, enumera os problemas relacionados aos processos de mineração que têm afetado o Mato Grosso. E relata o caso mais recente que acompanha, o da comunidade quilombola de Camarinha, localizada na Serra das Araras e nos municípios de Barra do Bugres e Porto Estrela, que têm processos para extração mineral na área ainda não demarcada.
Segundo Werner, a questão mineral atinge todos os territórios rurais e das comunidades tradicionais, mas informa que não sabia das sobreposições nos assentamentos no Mato Grosso.
“Colniza é uma das regiões mais conflitivas a nível dos conflitos de terra aqui do Mato Grosso. E Peixoto de Azevedo é realmente uma área histórica também de garimpo. Infelizmente, essa questão da mineração está em todo espaço, tanto na questão indígena, nos assentamentos, na questão quilombola. E a sobreposição sempre é muito complicada, porque acaba desestabilizando as comunidades”, avalia.
Para Werner, as empresas argumentam que têm direito a explorar o subsolo, mas justamente onde está a vida das pessoas que são diretamente afetadas. “Esse é o nosso desafio e nós não conseguimos acompanhar a questão das mineradoras que está muito forte. Estamos tentando fazer um convênio entre o Conselho e a UFMT para fazer o mapeamento dos conflitos socioambientais do estado do Mato Grosso”, explica.
Sanzio Sardinha é uma das lideranças do MST em Mato Grosso que acompanha de perto a expansão da mineração nos assentamentos. Sardinha, que está no Assentamento Roseli Nunes, localizado no município de Mirassol d’Oeste, também acompanhou os processos que não permitiram o começo da exploração mineral na área onde ele vive com sua família e onde estão assentadas mais de 300 famílias no local criado pelo Incra em 2001.
“A gente não pode dizer que acabou. E em qualquer momento pode chegar aqui novamente. Mas, felizmente, o nosso assentamento é um assentamento grande, tem essa organização, a organicidade do MST, e também com outras organizações parceiras. Todos esses espaços, esses coletivos, são muito importantes para que consigamos resistir. E se chegar, por exemplo, querendo desapropriar o assentamento para extrair minério, temos esses espaços organizados”, explica o assentado em permanente estado de alerta.
No Pará, entrada das mineradoras contam com a participação do Incra, denuncia pesquisadora
Ana Alfinito, pesquisadora do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares, da Universidade Federal do Pará (INEAF/UFPA), acompanha a entrada da mineração nos assentamentos no Pará, especialmente nas cidades de Altamira e outro no município de Senador José Porfírio, no sudeste do Pará.
Apesar dos requerimentos da Anglo serem em outra região do estado, principalmente em assentamentos nas cidades de Jacareacanga e Novo Progresso, a pesquisadora acredita que os mesmos impactos negativos também podem ser reproduzidos nessas áreas já cercadas de conflitos entre garimpeiros.
“É difícil dizer quais são os impactos sinérgicos da grande mineração com os do garimpo ilegal. As grandes mineradoras gostam de dizer que elas vão fiscalizar a área e acabar com o garimpo. Mas temos indícios de que o garimpo permanece e novos garimpos podem até ser abertos, usufruindo das infraestruturas (principalmente ramais, estradas) construídas para viabilizar e escoar a produção da grande mineração. A mineradora pode até expulsar os garimpeiros de dentro da sua área, mas não consegue e nem se interessa por fiscalizar além disso”, diz.
Alfinito afirma que a mineração está adentrando as áreas destinadas à reforma agrária sem nenhum cuidado com a realização de estudos específicos de impacto que ela terá sobre a vida das famílias que vivem no assentamento, incluindo a disponibilidade hídrica, produção e escoamento de alimentos, deslocamento e segurança.
“Vemos, por exemplo, mineradoras que transportam quantidades enormes de minério, de rocha minimamente processada, pelos ramais das agrovilas, onde há escolas, posto de saúde. Há muitos riscos envolvidos nisso. Mas os assentados não são consultados, não são tratados como pessoas com direitos”, explica.
Além dos problemas apontados, a pesquisadora revela que as empresas entraram nos assentamentos por meio de transações que podem ser comparadas a operações de grilagem de terras.
“Uma delas adquiriu ilegalmente lotes de dentro de um assentamento de reforma agrária. E adquiriu uma área maior do que 2.500 hectares sem a autorização do Congresso Nacional, que é uma exigência da Constituição Federal. Outra firmou contratos de usufruto da terra com os grileiros que ocupam ilegalmente a área de reserva legal (floresta coletiva) de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) (um tipo de assentamento ambientalmente diferenciado). Ou seja, as mineradoras violam a lei para adquirir o acesso à terra, e muitas vezes colocam suas empresas de segurança armada no local para intimidar os assentados, para manter o controle sobre a terra”, afirma.
Na avaliação de Ana Alfinito, o Incra parece que hoje está acreditando “no conto das mineradoras” de que não existe forma legal de impedir que a mineração entre nos assentamentos e que tudo que resta é tentar conseguir o melhor negócio pela terra.
“Na medida em que o Incra começa a negociar com as mineradoras que estão interessadas no direito de usar a terra para lavrar, ele começa a delegar para as mineradoras, por meio de condicionantes, diversas atividades que são dever do Incra e que não deveriam depender da mineração. Coisas como a desintrusão de áreas invadidas, a demarcação e georreferenciamento de lotes e até mesmo a vigilância e segurança de áreas de assentamentos são delegadas às mineradoras. São funções essenciais do estado. A delegação desse tipo de função torna o Incra e a reforma agrária progressivamente dependentes do extrativismo. Trata-se de um modelo de Estado que serve às mineradoras”, avalia.
Para a pesquisadora, essas práticas poderão ser reproduzidas em outros projetos de mineração situados em assentamentos rurais do Pará, como no caso dos processos registrados pela Anglo, numa região já dominada por garimpos. E alerta que é “plausível que a chegada da mineração ‘formal’ agrave a situação do garimpo”.
Pablo Neves, da direção nacional do MST no Pará, explica que no estado os agricultores convivem com vários assentamentos que tiveram as suas vidas “cindidas e entrecortadas” pela mineração. “No governo Bolsonaro foi horrível, a presença forte desses garimpos e aí de forma muito mais avassaladora, a mineração formal, a mineração legal, que é a mineração das grandes corporações”, diz.
Para a liderança do MST, novos projetos minerários podem causar um desenvolvimento rápido das cidades, mas o impacto dessa velocidade é desastroso no planejamento urbano e na violência no campo. “A gente tem essa situação de enfrentamento permanente e nos preocupa muito por essa ausência completa de jurisdição que proteja os assentamentos”, diz.
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O post “Anglo American nega interesse em extrair cobre e níquel em áreas que afetam assentamentos rurais no Mato Grosso e no Pará” foi publicado em 26/06/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração