ANÁLISE
Um dos mais populares e transformadores papas da história, Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, que nos deixou ontem aos 88 anos, foi também responsável por duras advertências sobre as mudanças climáticas, as desigualdades e o atual modelo de desenvolvimento em curso.
Uma leitura atenta da encíclica Laudato Si’, publicada em 2015, a primeira da história da Igreja Católica dedicada à questão ambiental, e da exortação apostólica Laudate Deum , publicada em 2023, mostram que Francisco tinha uma lucidez e uma coragem maior que a média de boa parte até dos pesquisadores sobre o tema.
Coerente com a sua trajetória, Bergoglio elenca os motivos da crise atual, cobra a responsabilidade dos países do Norte sobre a crise climática, lembra o fato de que os efeitos das mudanças climáticas são sentidos de modos muito distintos por ricos e pobres, menciona a participação do extrativismo mineral na crise, demonstra preocupação sobre a baixíssima eficiência das Conferências das Partes em fazer cumprir as metas acordadas e afirma que o mundo não pode se deixar seduzir por falsas soluções ambientais e tecnológicas.
Em um dos trechos da Laudato Si, por exemplo, Francisco lista os danos causados pela exportação de resíduos e poluentes, assim como o descarte inadequado dos rejeitos da indústria. O roteiro citado por ele abaixo muitas vezes é seguido à risca pela indústria mineral. Diz o Papa:
“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desmatamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar”.
As relações desiguais Norte-Sul, com o Sul arcando com o provimento de commodities e ficando com a maior parte dos impactos socioambientais é descrito por Francisco como “estruturalmente perverso”. Citando o Documento de Aparecida, resultado da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe de 2007, lembra que é preciso garantir que não predomine nas intervenções sobre os recursos naturais, “os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida”.
Francisco se exaspera com a qualidade e a disponibilidade dos recursos hídricos para os pobres, ponto em que a indústria mineral é um dos principais atores, junto ao agronegócio.
No Brasil, por exemplo, o setor mineral possui autorização para captar, anualmente, 15,7 trilhões de litros de água por ano, o suficiente para abastecer 284 milhões de brasileiros , ou seja, 77 milhões de pessoas além da população atual, de acordo com o Censo 2022 do IBGE. As mineradoras tem outorga de águas superficiais e subterrâneas para captar 1,8 bilhões de litros de água por hora.
“Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes”, afirmou o Papa Francisco na encíclica Laudato Si.
O papa lembra que “na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”.

De acordo com Francisco, indo no cerne do problema, como descrevemos aqui em editorial de setembro de 2024 , “o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional (…) agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente”.
Francisco critica duramente a obsessão com o crescimento econômico, o “progresso” e o desenvolvimento às custas da natureza e dos direitos humanos, se alinhando a quem coloca em perspectiva os limites planetários e a ideia simples que, no entanto, até hoje o ser humano não foi capaz de entender: a de que não podemos destruir irracionalmente a natureza da qual dependemos para sobreviver e que não haverá vida se seguirmos no mesmo caminho trilhado até aqui.
“Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a « espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos”, afirma Francisco.
E o Papa lembra que esses efeitos vão muito além da destruição ambiental, já grave o suficiente, mas faz desaparecer modos de vida tradicionais que não coadunam com a destruição irrestrita do sistema capitalista, como os modos de vida dos povos indígenas, por exemplo. Francisco ecoa bastante o pensamento do Bem Viver, elaborado no caldo latino-americano das últimas décadas em que se insere a crítica ao modelo neoextrativista vigente.
“O desaparecimento duma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas”, afirma o Papa.
Para o sumo pontífice, ninguém cuida melhor do próprio território como os povos indígenas e, por consequência, ninguém protege áreas de inestimável importância ecossistêmica fundamental para frear os impactos da crise climática, como a ciência tem sistematicamente provado, como os povos indígenas. Por isso, é preciso respeitar o direito que eles tem de viver em suas terras.
A mineração ameaça frequentemente esses territórios, incluindo os milhares de requerimentos que gigantes multinacionais possuem sobre terras indígenas e o fato de que o argumento da transição energética agora é usado para uma nova tentativa de aprovar mineração em territórios tradicionais.
“Em várias partes do mundo, porém, (povos indígenas) são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura”, diz o Papa, ilustrando um roteiro muito comum no Brasil.

Oito anos depois da Laudato Si’, que influenciou inclusive o Acordo de Paris, firmado no mesmo ano, que completa uma década em 2025 e que enfrentará nova prova na COP de Belém, o Papa Francisco publicou um texto mais curto, a Laudate Deum, mostrando a sua angústia com a incapacidade do mundo em resolver os problemas que ele mesmo criou e cita novamente a extração mineral como parte do problema.
“Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades”, disse Francisco.
O excesso de poder concentrado nas mãos de poucos homens é alvo de advertência pelo Papa, que se preocupa claramente em ver que figuras como Elon Musk tem aumentado enormemente o seu círculo de influência e capacidade de causar dano. É “tremendamente arriscado” que tanto poder fique nas mãos de pouquíssimas pessoas, diz Francisco. Isso inclui a manipulação de informações e a disseminação de fake news, em outro claro aceno para os empresários das big techs. Abre aspas:
“A decadência ética do poder real é disfarçada pelo marketing e pela informação falsa, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública através deles. Com a ajuda destes mecanismos, quando se pretende iniciar um projeto com forte impacto ambiental e elevados efeitos poluidores, iludem-se os habitantes da região falando do progresso local que se poderá gerar ou das oportunidades económicas, ocupacionais e de promoção humana que isso trará para os seus filhos. Na realidade, porém, falta um verdadeiro interesse pelo futuro destas pessoas, porque não lhes é dito claramente que, na sequência de tal projeto, terão uma terra devastada, condições muito mais desfavoráveis para viver e prosperar, uma região desolada, menos habitável, sem vida e sem a alegria da convivência e da esperança, para além do dano global que acaba por prejudicar a muitos mais”, diz Francisco.
Preocupado com a incapacidade do multilateralismo atual em avançar para o bem comum, o papa lembra que “são necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior «democratização» na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações”.
Para Francisco, “que está a ser feito (nas negociações globais do clima) corre o risco de ser interpretado como mero jogo para entreter”, endereçando também a falta de ambição, a demora proposital, o não cumprimento de acordos e a venda de falsas soluções “verdes”.
Em contundente resumo, Francisco afirma:
“Devemos superar a lógica de nos apresentarmos sensíveis ao problema e, ao mesmo tempo, não termos a coragem de efetuar mudanças substanciais. Sabemos que, a continuar assim, dentro de poucos anos teremos ultrapassado o limite máximo desejável de 1,5 graus centígrados e poderemos, em breve, atingir os 3 graus com o risco elevado de chegarmos a um ponto crítico.
Mas ainda que não se atingisse este ponto de não retorno, os efeitos seriam desastrosos e ocorreria apressadamente tomar medidas com custos enormes e sequelas económicas e sociais extremamente graves e intoleráveis. Mas, se as medidas que agora adotamos têm custos, estes tornar-se-ão tanto mais pesados quanto mais esperarmos.
Corremos o risco de ficar bloqueados na lógica do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração, que continuamos a alimentar. Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido com novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida, como pontapear uma bola de neve”.
Não será nada fácil suceder um papa com essa coragem e capacidade de alertar o mundo para os problemas centrais que enfrentamos, o mesmo que convocou um Sínodo da Amazônia durante o governo de Jair Bolsonaro, ciente da ascensão da extrema-direita no mundo.
Afinal, na última frase que destaco, “é preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que geramos estão a virar-se contra nós mesmos”.
Fonte
O post “Papa Francisco alertou sobre os impactos da indústria extrativa e os perigos das falsas soluções” foi publicado em 22/04/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração