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Existe um fenômeno social que na ciência política tem sido chamado de “a crise dos incumbentes”. É fácil de entender. Antigamente, quem estava no governo em sociedades democráticas tinha uma clara vantagem sobre o adversário na busca de uma reeleição. Não apenas pela visibilidade, poder e influência, mas também pelas possibilidades de receber o devido crédito por políticas bem-sucedidas. Mas, há pelo menos uma década, tem sido cada vez mais difícil para os governantes se reelegerem – independentemente da qualidade do governo – e maior a vantagem para quem quer que seja que está na oposição angariar votos. É quase uma institucionalização do voto de protesto.
Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa & Consultoria e professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explicou o fenômeno como “o fim da gratidão” em um artigo na Folha . Analisando a queda de popularidade do governo Lula detectada pelo seu próprio instituto de pesquisa, ele chegou à conclusão de que se trata de um fenômeno estrutural, mais que conjuntural ou local. “Benefícios sociais e crescimento da renda costumavam se traduzir em apoio eleitoral. Mas essa lógica está se desfazendo”, escreveu. “Não há mais gratidão política automática. A sociedade mudou: o eleitor se tornou mais crítico e menos fiel.”
Essa é uma das encruzilhadas do atual governo, que, obviamente, realiza política de uma maneira antiga, tradicional. É inegável que houve cuidados com a economia, que cresceu 3% no ano passado embora todos os comentaristas de mercado tenham despejado pessimismo constantemente, uma enorme redução do desemprego, em baixa histórica, novos programas sociais e até reformas que estavam paradas havia anos no Congresso, como a tributária. Mesmo assim, nas palavras de Nunes, o “voto econômico” acabou.
Aconteceu mais ou menos a mesma coisa nos Estados Unidos, que teve um governo competente em Joe Biden, depois da gestão despirocada de Donald Trump e de uma pandemia. Mas hoje nada disso se converte em voto. “Governantes ao redor do mundo enfrentam dificuldades semelhantes para manter apoio popular ao longo do mandato”, escreve Nunes.
Claro, estamos vivendo uma variedade de crises ao mesmo tempo, não quero descontar isso, desde a inflação em países que nunca a tiveram, como na Europa e nos EUA, até o aumento dos preços de alimentos no mundo todo. Mas aqui no Brasil já vimos isso muitas vezes. Então, quero refletir sobre dois aspectos ainda pouco falados, e que têm a ver especificamente com a massificação do uso da internet plataformizada e pelo excesso de uso de redes sociais.
A primeira delas é o que um amigo meu tem chamado de “neocalvinismo”: a percepção individualista da sociedade como eixo predominante. As ideologias neoliberais, a competição e a desregulação do mundo do trabalho – como apontou minha irmã Silvia Viana numa entrevista para esta coluna – explicam um pouco esse fenômeno, mas a algoritmização da vida também explica. A ruína da comunicação de massa, na qual todos consumiam os mesmos produtos culturais e tinham acesso às mesmas informações, se traduz em uma percepção de mundo em que a vida de cada um é ainda mais individualizada, isolada. Da mesma forma, os algoritmos sempre mutantes do Google, que oferecem respostas diferentes às mesmas buscas para pessoas diferentes, ajudam a criar uma percepção individualicista (acabei de inventar essa palavra), em que o “ótimo” é entender através de dados os impulsos mais íntimos de cada um, e a partir daí se construir uma economia, primeiro, e depois uma sociedade.
Mas que porcaria de sociedade é essa que a algoritmização tem construído. Nas minhas horas vagas (pois sim, eu as tenho), costumo visitar fóruns como o Reddit, que ainda vivem de conteúdo criado pelos usuários com uma política de moderação eficaz, e que ainda não se tornaram um shopping center de almas a céu aberto como o Instagram. Um dos temas mais recorrentes, em especial entre os jovens, é que o ideal de felicidade é estar sozinho, navegando na internet, na cama, com um gato ao seu lado. Assim, seguem os memes, evitam a “ansiedade social”, “desconforto de não ter o que dizer”, e arvoram-se em verdadeiros “introvertidos”, classificação que hoje se usa como uma honraria no peito. A variação desse mesmo tema é fascinante e demonstra que estar com gente, formar laços sociais, não só deixou de ser prioridade – mas seu oposto é idolatrado.
Chegamos aí ao segundo aspecto que eu queria abordar: o fato de que, como sociedade, estamos tristes. Sim, já houve momentos na história cultural da civilização ocidental em que a tristeza foi ressaltada, era cool, ou a terrível insegurança da mudança dos tempos trazia apreensões que levaram a um fenômeno social da tristeza. Mas, no nosso caso, estamos tristes “by design”, de propósito, a partir de desenhos de arquitetura tecnológica realizados justamente para nos deixar tristes se estamos longe dela.
Muita gente já sabe disso, mas não custa nunca repetir: as redes sociais e cada vez mais outras redes, como as ferramentas de buscas, são desenhadas de maneira a promover o superestímulo de um mediador químico que atua nas sinapses do cérebro, trazendo sensação de prazer – a dopamina, conhecida como a “molécula motivacional”. A dopamina ativa os circuitos neurais que impulsionam então a repetição da ação que proporcionou o prazer. Pois esse superestímulo da dopamina faz parte do design das redes sociais, construídas exatamente para que fiquemos grudados nelas, querendo receber estímulos sociais, contato com outros seres humanos através da tela. É por essa busca de prazer como “recompensa social” que ficamos literalmente viciados em nossos celulares, pegando-os de maneira impulsiva de quantos em quantos minutos.
Muitos estudos comprovam que vivemos em uma geração de viciados em dopamina. Por um lado, vivenciamos uma crise de saúde mental sem precedentes, que assola de maneira mais violenta as crianças e os adolescentes. Por outro, alguns estudos, como da chefe da clínica especializada em vícios na Universidade Stanford, a psiquiatra Anna Lembke, demonstram que a superprodução da dopamina através do uso exagerado de redes sociais faz com que se reduza a produção natural de dopamina, ou seja, o prazer natural com os fatos corriqueiros da vida não chega a gerar o mesmo gozo que gerou ao longo de 6 mil anos, em toda a história da civilização. A vida, portanto, ficou sem graça. Quimicamente sem graça.
Claro, corro o risco de estar simplificando questões extremamente complexas, mas pensem comigo. Oitenta e quatro por cento dos brasileiros usam a internet, aproximadamente 160 milhões de pessoas, o que coloca o país entre os cinco maiores mercados para todas as principais plataformas de mídia social. Redes como o Facebook e TikTok têm mais de 100 milhões de usuários no Brasil, enquanto Instagram, YouTube e WhatsApp têm mais de 130 milhões.
Os brasileiros são das populações que mais usam a internet plataformizada no mundo.
Isso significa que, se houver alguma relação entre a crise dos incumbentes e a crise de saúde mental que estamos vivendo graças à engenharia das redes sociais, faz sentido que ela seja muito presente aqui no Brasil, para sempre o país do futuro.
Fonte
O post “Redes sociais, a popularidade de Lula e a tristeza com o governo” foi publicado em 11/03/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública