O Dia Internacional da Mulher, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, é reconhecido globalmente como um dia de luta por igualdade de gênero e direitos das mulheres. No entanto, os desafios para a sobrevivência e segurança das mulheres ainda são enormes, especialmente para as negras e trans. Segundo um relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), de 2024, 122 pessoas trans teriam sido assassinadas no país no ano. As vítimas são majoritariamente jovens negras, empobrecidas e nordestinas, assassinadas com requintes de crueldade.
Ainda em 2024, o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) registrou 1.128 assassinatos de mulheres cometidos por seus parceiros ou ex-companheiros.
Para Ana Flor Fernandes, pesquisadora no campo de gênero, sexualidade e educação, é imprescindível falar sobre a interseccionalidade ao discutir essa realidade. “O Brasil educou historicamente a sociedade a cometer violências contra mulheres cis e trans, reforçando a marginalização dessa população. Quando falamos de interseccionalidade, estamos discutindo como o racismo, a transfobia e o machismo operam juntos para excluir e violentar.”
Na entrevista para o Pauta Pública desta semana, Fernandes fala sobre violência de gênero e perseguição às pessoas trans no Brasil e no mundo. Ela destaca avanços conquistados, como o reconhecimento da Lei Maria da Penha para casais homoafetivos e pessoas trans, mas alerta para os desafios que ainda persistem nos movimentos feministas e progressistas na inclusão e proteção de todas as mulheres. “A luta pela dignidade, pelo direito de existir, pelo direito ao corpo e à segurança são questões que atravessam tanto mulheres cis quanto trans.”
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 158
Por todas as mulheres, nenhum direito a menos
Quando a gente pensa numa agenda para as mulheres, sejam elas cis ou trans, em que momento essa pauta se une nesse guarda-chuva em busca de direitos?
Quando eu visualizo o Brasil e eu penso quem são os movimentos sociais e os coletivos como um todo que têm pensado e reivindicando os direitos sociais no nosso país, então nós temos o movimento LGBT, nós temos o movimento de mulheres e, na sua amplitude, temos a população indígena, e todas essas populações têm algo em comum, uma subcategorização enquanto sujeito, enquanto humanidade, enquanto indivíduo.
O movimento feminista consegue estar alinhado com o movimento e reivindicação das pessoas trans travestis no Brasil quando a gente pensa a luta pela dignidade mesmo, pelo direito de existir, pelo direito ao corpo, pelo direito de estar, pelo direito de ir e vir. São movimentos que trabalham de maneiras interseccionais e que as pautas, a todo momento, acabam se atravessando. O Brasil é o país que tem um número de feminicídio muito grande e é também um país que tem um número de transfeminicídio muito grande. Mulheres cisgêneras são violentadas constantemente no nosso país e mulheres trans também são violentadas constantemente no nosso país.
Então, quando a gente pensa a discussão sobre o acesso à segurança, à jurisdição, quando a gente está pensando na criação de leis, de políticas públicas, todas essas pautas são pautas que, de alguma maneira, criam uma atmosfera onde permite que esses movimentos possam se encontrar. Nós estamos, muitas vezes, falando da mesma coisa, mas em línguas diferentes, porque existem especificidades, e é justamente a partir desse lugar que nós precisamos olhar.
Trabalhar de maneira interseccional quando a gente pensa no acesso à educação para meninas e meninos, quando a gente está pensando no acesso à educação para as pessoas trans e travestis, quando a gente pensa em mulheres em cargos de liderança, quando a gente pensa em pessoas trans no mercado de trabalho. São muitos os exemplos que a gente pode usar quando está pensando onde é que esses movimentos se encontram e como eles podem conversar. Acredito que a gente já tem conversado e existe uma necessidade de cada vez mais criar uma maior qualidade mesmo nesse diálogo quando estamos falando de pautas que são diferentes, mas que se interseccionam.
Existe hoje um movimento antitrans que vem crescendo, não apenas a partir de religiosos ultraconservadores ou da extrema direita, mas dentro do próprio feminismo. Muitas vezes, inclusive, esses mundos se unem nesta pauta. Os ultraconservadores e a extrema direita acabam se unindo com uma pequena parte de mulheres cis que se dizem feministas, mas que se colocam contra a pauta trans dentro do feminismo, por mais contraditório que isso possa parecer. Como que você vê isso? Quais são os principais desafios que as mulheres trans enfrentam hoje dentro do próprio feminismo?
O Brasil tem um grupo muito específico de mulheres que se identificam como feministas radicais trans excludentes, pelo menos nós chamamos elas dessa maneira. Eu confesso que é difícil diferenciar a extrema direita desse pequeno grupo. É um pequeno grupo que geralmente costuma agir de forma coordenada, que conversam muito entre si, quando a pauta é atacar a população de pessoas trans travestis, porque partem de concepções que são extremamente equivocadas, muitas vezes não só transfóbicas, mas também racistas.
Esses grupos conversam e criam dificuldades de que a gente possa estabelecer um diálogo com o movimento feminista como todo, saudável. Primeiro porque a todo momento atacam as pessoas trans travestis de uma maneira muito violenta, desconsiderando que o gênero é uma construção social, que nós nos entendemos e aprendemos a como ser mulheres, e aí mulheres nas suas mais variadas diferenças. A dificuldade desse grupo em específico é compreender o lugar que durante muito tempo foi colocado às margens para as pessoas trans travestis e que as mulheres trans travestis conseguiram romper com esse ideal que foi cristalizado no Brasil.
O Brasil é um país que durante muito tempo colocou sobre as mulheres trans travestis apenas as avenidas, e nós nos tornamos professoras, advogadas, jornalistas e algumas outras profissões e começamos de alguma forma a disputar esses espaços, a disputar esses ideais, essas cosmovisões, essas narrativas, e isso fez com que determinadas pessoas ou grupos se incomodam. Dentre esses grupos, os de feministas são os radicais trans excludentes. Elas não se identificam como trans excludentes porque elas acreditam que, ao dizer que mulheres trans travestis não são mulheres, elas não estão sendo transfóbicas, elas estão sendo realistas. Parte de uma realidade que eu espero que, e pelo que eu vejo, o movimento feminista não compactua e não compartilha, especialmente o movimento feminista de mulheres negras, composto por mulheres negras, dos quais as mulheres trans travestis bebem cotidianamente e compactuam cotidianamente das pautas, das ações.
Então tem sido um desafio construir um diálogo unificado pensando o movimento feminista e especificamente as mulheres trans travestis, porque existe uma concepção que ainda é extremamente equivocada e nos ataca constantemente quando inclusive somos colocadas enquanto mulheres pelo movimento feminista. Acho que isso cria um entrave nas proposições que o movimento feminista faz, porque assim, gente, está tudo bem as pessoas não pensarem igual. Não existe nenhum tipo de problema nisso, o movimento feminista não é uno, ele tem inúmeras divergências, complexidades, proposições, mas todas essas proposições precisam partir da premissa da ética, precisam ser feitas e realizadas com ética.
Não é o caso das feministas radicais trans excludentes, que eu não consigo chamar de movimento por serem tão poucas e grupos tão pequenos, que eu acho que nem abarcam o conceito de movimento, mas infelizmente, do meu ponto de vista, mais atrapalham do que contribuem para o movimento feminista. Quando a gente olha as ações que são propostas por esse pequeno grupo de feministas radicais trans excludentes e a gente olha a extrema direita, não tem tanta diferença, estão em pé de igualdade. Isso por si só já diz muita coisa, porque nós estamos vivendo um momento onde não é tão difícil perceber o que a extrema direita tem feito com o nosso país e com os movimentos sociais que reivindicam direitos no nosso país.
O Supremo Tribunal Federal estendeu a proteção da Lei Maria da Penha a casais homoafetivos formados por homens e mulheres travestis e transexuais. E aí, no relatório que orientou essa decisão, aparece um dado que mostra que 37% das vítimas de agressões em relacionamento com homens eram mulheres trans. Como você vê essa decisão do STF?
O STF está fazendo o trabalho que precisa ser feito, de criar uma jurisprudência no sentido de dizer que essas mulheres podem ser amparadas, essas populações podem ser amparadas por essa lei. A gente sabe que o Brasil fez um trabalho intenso e, evidentemente, poderia ter feito muito mais aprofundado sobre a Lei Maria da Penha.
As pessoas podem até desconhecer de fato o que é a lei, mas existe uma noção de que as mulheres não devem ser agredidas nesse país. Acho que a Lei Maria da Penha sem dúvidas contribuiu nesse processo. Isso não significa dizer que as mulheres deixaram de sofrer violência, mas que existe uma lei que ampara esse grupo. Quando a gente consegue ampliar, compreendendo a complexidade que as mulheres trans e travestis estão inseridas no Brasil, a gente dá margem para criar uma concepção de segurança mesmo, de proteção a essa população, que infelizmente carece desse tipo de proteção.
Não existem muitas resoluções, leis que pensam especificamente as pessoas trans e travestis no Brasil. Os avanços que nós tivemos, eles são pouquíssimos, e, ainda que pouquíssimos, são cotidianamente atacados. A gente iniciou essa conversa falando sobre a perspectiva global de pacote antitrans, que pessoas trans e travestis estão sendo submetidas no sentido da violência. Mas, se a gente pensa nos trabalhos que são realizados aqui no Brasil, nas câmaras municipais e nas assembleias legislativas, de leis antitrans para institucionalizar a transfobia no sentido de violentar essa população, reforça a importância de termos leis que protegem essa população.
Noventa por cento da população de mulheres trans e travestis estão na prostituição, e, se essas trabalhadoras do sexo estão na prostituição, significa dizer que elas também são mais expostas à violência. Quem busca majoritariamente as meninas no ponto de trabalho delas são homens cisgêneros, mas os homens cisgêneros que buscam por esse trabalho não respeitam as meninas como respeitam um dentista quando vão ao consultório fazer qualquer tipo de tratamento com o dentista.
Não respeitam da mesma maneira que respeitam um advogado ou um jornalista quando vão dar uma entrevista. Então as meninas acabam sendo mais suscetíveis. O Brasil tem educado as pessoas a cometer violência contra as mulheres trans e travestis. Acho que é preciso visualizar com um avanço a decisão do STF sobre ampliar a Lei Maria da Penha, pensando nessas demais populações, sejam casais homoafetivos, pessoas trans e travestis, e compreender que isso também sinaliza a carência de que mais leis sejam construídas nesse mesmo sentido, garantindo às pessoas trans e travestis a devida proteção que elas merecem.
Fonte
O post “Luta pelo direito ao corpo atravessa mulheres cis e trans, diz pesquisadora” foi publicado em 08/03/2025 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública