As eleições presidenciais dos Estados Unidos (EUA) estão programadas para o próximo dia 5 de novembro, terça-feira. Diversos países, entre eles o Brasil, observam atentamente o andamento da disputa para saber quem irá governar uma das maiores potências do mundo.
Contudo, apesar dos impactos que os EUA têm por aqui, o Brasil aparece lateralmente nas campanhas de Donald Trump e Kamala Harris , segundo avalia a professora Cristina Pecequilo, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP).
“O que a gente pode observar é que, nos dois programas de governo, tanto de Trump quanto de Kamala, a América Latina aparece de uma forma transversal. O que eu quero dizer com isso? Que não é uma prioridade. Ela aparece mais como fonte de problemas do que de soluções, muito associada ao foco de Trump na xenofobia, nas críticas à migração”, aponta.
Segundo Pecequilo, exceto por episódios caricatos, como o da imigrante brasileira que interagiu com Trump no McDonald’s, o Brasil praticamente inexiste na campanha do republicano e não é pauta central para o político. O que há, segundo ela, são relações ideológicas da extrema direita, que acabam trazendo o país para o cenário, inclusive, pelos apoiadores de Trump no Brasil.
Já em relação a Kamala, a professora enxerga uma continuidade das políticas de Joe Biden, principalmente no campo dos direitos humanos, questões trabalhistas, comunidade LGBTQIAP+ e meio ambiente. “A gente não pode esquecer que a Kamala também vai fazer pressões sobre o Brasil, no caso de aprofundamento de parcerias econômicas e tecnológicas com a China. Então, eu acho que o impacto é muito mais, às vezes, no campo ideológico do que, essencialmente, em mudanças de padrões geopolíticos e geoeconômicos para a região”, avalia.
Leia a entrevista completa abaixo e ouça o podcast.
EP 144
Eleições nos EUA e o que está em jogo para o resto do mundo – com Cristina Pecequilo
Que impactos vamos ter no Brasil e na América Latina caso Trump ganhe essas eleições? E se for Kamala?
As eleições dos EUA são sempre uma fonte de preocupação para o Brasil, para a América Latina, à medida que é um país que possui uma grande influência política, econômica e também, cada vez mais, um espaço que disputa com a China, principalmente no que se refere a tecnologia e investimentos.
Então, o que a gente pode observar é que, nos dois programas de governo, tanto de Trump quanto de Kamala, a América Latina aparece de uma forma transversal. O que eu quero dizer com isso? Que não é uma prioridade. Ela aparece mais como fonte de problemas do que de soluções, muito associada ao foco de Trump na xenofobia, nas críticas à migração.
A América Latina, na campanha do Trump, vem muito associada à questão migratória. A suposta crítica que ele faz é a invasão dos migrantes. Veja, são questões que ele pinta de um nacionalismo e de uma xenofobia muito grande, justamente para afastar o eleitor mais moderado, de certa forma, mas para reforçar sua base eleitoral.
No caso, o Brasil praticamente inexiste na campanha de Trump. O foco de Trump é Venezuela, Haiti, Nicarágua. O Brasil aparece, às vezes, quando há episódios caricatos, como daquela imigrante brasileira que foi pegar coisas com ele no McDonald’s, que tem muito mais a ver com uma ideologia da extrema direita do que efetivamente com uma pauta.
O que a gente teria, numa eventual eleição de Trump, seria a continuidade da guerra econômica com a China, pressões sobre o Brasil e, certamente, uma satisfação muito grande dos apoiadores dele aqui no Brasil, mas políticas específicas, assim, a gente não vê muito anunciadas.
No caso da Kamala, é um pouco parecido também. Na América Latina, ela, obviamente, não aparece com uma forma negativa. Não tem essa carga, esse turbilhão emocional que o Trump está trazendo na campanha, o que até é motivo de muitas críticas das próprias comunidades latinas, a associação da América Latina com crime, tráfico de drogas [na campanha de Trump]. Mas existe, sim, um foco na questão migratória e, obviamente, na tentativa de humanização do sistema [de migração], com maior atenção aos direitos humanos, e legalização daqueles migrantes latino-americanos que já estão lá.
No caso do Brasil, o que a gente espera também é uma continuidade das políticas de Joe Biden, então, principalmente, uma convergência no campo dos direitos humanos, questões trabalhistas, comunidade LGBTQIAP+ e meio ambiente.
Mas, de fato, América Latina e Brasil são duas questões que tendem a estar ausentes durante a eleição.
Agora, a gente não pode esquecer que a Kamala também vai fazer pressões sobre o Brasil, no caso de aprofundamento de parcerias econômicas e tecnológicas com a China. Então, eu acho que o impacto é muito mais, às vezes, no campo ideológico do que, essencialmente, em mudanças de padrões geopolíticos e geoeconômicos para a região.
Nos Estados Unidos, como no Brasil, as decisões da Suprema Corte têm impactado no processo eleitoral. O Trump está concorrendo esse ano, depois da corte de lá ter decidido, por exemplo, descartar uma ação movida no Colorado que buscava torná-lo inelegível pelo episódio da invasão do Capitólio. A ação não vingou. Como as ações no Judiciário dos EUA estão influenciando a política por lá? Você vê paralelos com o Brasil?
Tem paralelos sim, que é a presença da disputa política por espaços conservadores e liberais nas cortes do país. Quando a questão chega na Suprema Corte, no caso dos EUA, significa que ela já teve muitos percalços, fora os estaduais.
Então, a gente tem duas dimensões. Uma batalha jurídica, associada à candidatura de Trump, às condenações criminais dele. Não existe ficha limpa nos Estados Unidos, então significa que, mesmo Trump tendo sido condenado criminalmente, ele pode concorrer. Foi uma condenação criminal associada a mentiras, a corrupção, existem outras acusações também de assédio sexual que foram e continuam aparecendo na campanha dele, mas existe todo um arcabouço jurídico americano que não impede o candidato de concorrer.
A gente também tem que lembrar que a Suprema Corte, que tem maioria conservadora de juízes, hoje favorece muito a não condenação ou a imunidade de presidentes quando eles estão no cargo. Isso beneficiou Trump completamente, não só com relação à invasão do Capitólio, mas com todas as outras acusações de tentativa de interferência na eleição, a tentativa de barrar outras candidaturas. Então, você tem, de fato, um papel do Judiciário muito importante no sentido de até validar muitos aspectos da candidatura do Trump.
A gente também tem uma outra situação, estamos até aguardando um pouco para ver como vai se desenvolver após a eleição, que vai ocorrer em 5 de novembro, que são as batalhas judiciais relativas à contagem de votos, a possível fraude ou não, reconhecimento da eleição pelas partes perdedoras, né? Então, tudo isso é uma controvérsia muito grande, porque aí vai escalando até a Suprema Corte. O Judiciário está tendo um papel muito importante na disputa política.
Uma coisa que os democratas têm explorado muito na campanha, saindo até desse contexto atual, é o seguinte: “Olha, eleitor, se você votar no Trump, é muito provável que toda a Constituição americana, todo o sistema de direitos que vocês conhecem, ele pode sofrer mais abalos. Porque nós temos aqui um risco de que esse presidente, ele bata de frente de novo com a nossa Constituição”.
A questão é que muitos eleitores – fora os grupos que já foram mais afetados, principalmente na questão dos direitos reprodutivos, direitos de gênero –, a maioria da sociedade ainda não se tocou que o efeito não é só para um grupo, é para todos, é para toda a sociedade. Porque você começa com as questões mais polêmicas, mas existe algo também pendente na Suprema Corte, que é, por exemplo, ações de universidades, de empresas contra ações afirmativas para garantia de cota em escolas, em serviço público. Então, o Judiciáriotem papel importante nesses dois rumos, como garantidor de direitos, mas também a questão de ver o que os candidatos estão fazendo aí nas eleições. A gente pode, de repente, ver uma eleição judicializada.
Vindo aqui para o Brasil, o Judiciário é um dos três poderes. Ele tem que ser o garantidor, mas ele não pode ter uma inclinação política. Só que, como a gente sabe, existe, sim, a possibilidade de nomeações vindas dos governos para as altas cortes. Isso acaba interferindo nos processos políticos, não só no campo dos direitos, mas também no campo de julgamento, de questões, se a pessoa pode concorrer ou não, qual é o limite. É uma questão muito séria.
Algumas pesquisas apontam que o eleitor de direita mudou nos Estados Unidos, com relação ao nível de escolaridade, renda e, nos últimos anos, inclusive com mais imigrantes nesta base. Por quê? Já que, se a gente pensa na campanha do Trump, que é totalmente hostil aos imigrantes, parece não fazer sentido. Como você vê isso e como esse dado também pode interferir nessas eleições?
O eleitorado americano é muito heterogêneo. Eu acho que isso é uma coisa que muitos partidos políticos ainda não perceberam, tanto lá quanto no Brasil, e também a partir dos resultados eleitorais da Europa, com o crescimento da extrema direita – isso ainda não foi percebido por determinadas forças políticas, eu diria, principalmente, pelas forças progressistas.
Por isso que há uma perda de espaço muito grande para as forças progressistas, e, de certa forma, eu compartilho um pouco essa sensação de um pouco de desamparo. Por que esse eleitor, de um determinado perfil eleitoral, muda para um candidato da direita? Por que essa base eleitoral se reforça? É justamente por causa dessa heterogeneidade.
Vamos pegar, por exemplo, um migrante latino. O migrante latino, a pessoa que hoje é indocumentada, ou mesmo documentada, já é legalizada, ela vai ter um perfil diferente num estado como a Califórnia e num estado como a Flórida. Então, na Flórida, ela tem um voto mais conservador. Por quê? Porque são migrantes que normalmente fugiram de situações de autoritarismo em seus países, estamos falando de Cuba, da Venezuela. Há um apelo muito grande para esse eleitorado, mesmo para um eleitorado migrante jovem, de um discurso pró-liberdade, pró-empreendedorismo, a ideia do sonho americano. Então, esse conservadorismo é explicado por esse perfil.
Quando a gente pensa em estados como Nevada, Arizona, o próprio Texas, que tem uma grande população migrante, apesar da gente estar vendo algumas mudanças populacionais importantes – que acho que vão refletir em eleições lá para 2028, 2032 –, é um eleitorado que aí vai estar muito dividido. Você vai ter um eleitorado migrante progressista, que vê, por exemplo, em Nevada, e Arizona, com muita preocupação as falas do Trump de deportação e tal, mas aí tem um eleitorado que vê com uma certa tolerância a procura do Trump de combater aquilo que ele costuma dizer que é o migrante criminalizado, que é a pessoa que “vem para os Estados Unidos para cometer crime e pessoa que vem para roubar o emprego”.
Eu costumo dizer, desde a primeira eleição do Trump, que ele trabalha com um tripé, que é o preconceito, medo e ignorância. Então, esse próprio migrante, que está vivendo há muitos anos nos Estados Unidos, sente o emprego ameaçado pelo grande fluxo de novas pessoas que, potencialmente, estão chegando lá. Com isso, há uma incompreensão também das forças progressistas democratas de que as pessoas também são afetadas por essas questões. Aí pega o discurso liberal, o discurso do roubar emprego, as fake news associadas a animais de estimação, à violência.
É muito complicado, porque o eleitorado, quando vai subindo, às vezes, de renda, de classe, ele também vai mudando as percepções daquilo que é a ameaça para ele. Hoje, muito migrante se sente ameaçado pelo próprio migrante. Ele esquece que já foi aquela pessoa que tentava cruzar a fronteira. É um quadro muito complicado, mas eu acho que, basicamente, vem desse problema da heterogeneidade, da questão geracional do que as pessoas viveram. A diferença entre uma pessoa que nasce nos Estados Unidos e uma pessoa que veio e cresceu nos Estados Unidos.
Todas essas diferenças, assim como a escolaridade, têm que ser pontuadas. É um eleitorado muito heterogêneo, mas também não é a primeira vez que o eleitorado latino tem demonstrado interesse na pauta republicana. Só para a gente lembrar um episódio que, na verdade, foi a eleição de 2000, um momento que tinha o George W. Bush, republicano, que tinha ligações até familiares com a comunidade latina, havia um foco muito grande nas questões econômicas, que preocupam muito o eleitorado, questões econômicas associadas à moradia, custo de vida. Naquele momento, Bush, filho, estava disputando com o democrata Al Gore e conseguiu, não só pelos laços familiares, 45% do voto latino, que foi inédito.
Agora, 24 anos depois, o Trump entra um pouco por conta desse tripé do medo, ignorância, do preconceito, mas também pelo viés da crise econômica, das oportunidades e da liberdade. São tendências que os democratas precisam ficar mais atentos, até porque a Kamala vem sendo muito criticada na campanha pelo seguinte: ela fala de democracia, fala de fascismo, mas, às vezes, o eleitor está preocupado com como ele vai pagar a hipoteca e não quer ser confrontado com uma realidade que ele já sabe [Trump ser autoritário].
Ele quer soluções que talvez o outro partido vai apresentar para ele. Então, aí nem é só uma questão do voto migrar para o Trump, às vezes a pessoa só não vai votar no dia da eleição. E em uma eleição tão apertada, como a gente está vendo agora, uma eleição que depende de cada voto que está depositado para cada um dos candidatos, eu acho que, aos democratas, às vezes falta um pouco essa percepção de ajustar o discurso à realidade do eleitor, e não ser tão repetitivo em temas que todo mundo já conhece. Todo mundo sabe quem é o Trump, mas nem todo mundo sabe quem é a Kamala.
Fonte
O post “Da xenofobia de Trump às pressões de Kamala: como fica o Brasil com as eleições nos EUA” foi publicado em 02/11/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública