Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui .
Já tive a oportunidade de acompanhar inúmeros seminários, congressos e encontros, tantos que já perdi a conta. Muitos foram interessantes e instrutivos, outros foram modorrentos e inúteis. Mas não me recordo de um tão impactante como o realizado na semana passada em um auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.
Ao longo das palestras presenciais e dos testemunhos em vídeo exibidos no telão do seminário, vi pessoas chorando ou com os olhos marejados, incluindo um dos ministros do tribunal. Um defensor público discursou com a voz trêmula, prestes a irromper em lágrimas.
Era gente calejada, advogadas e advogados, defensoras e defensores públicos e magistradas e magistrados que há anos militam no sistema judicial e que, por isso, estão bem acostumados a ver as maiores barbaridades. Mas encarar essa chaga do sistema policial-judicial continua difícil para qualquer um.
O “Seminário Internacional Prova e Justiça Criminal: Novos Horizontes para o Reconhecimento de Pessoas” foi realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), STJ, Ministério da Justiça, Innocence Project Brasil e outras instituições com o objetivo de aprofundar as discussões acerca do encarceramento de inocentes presos em todo o país a partir de reconhecimentos equivocados, para dizer o mínimo, de suspeitos por crimes diversos.
É difícil encontrar um tema mais urgente no campo da persecução penal. Por muito tempo, ficou sem a visibilidade necessária e sem providências à altura do problema. Centenas, quiçá milhares de brasileiros já foram mandados ao cárcere (e continuam sendo mandados) com base em falsos reconhecimentos realizados presencialmente ou por fotografias como resultado último de procedimentos errados, direcionados, viciados, imperfeitos e contrários ao Código de Processo Penal (CPP), que regula o reconhecimento desde 1941 (artigo 226), ainda que de forma insuficiente.
Em 2020, sugeri, idealizei e participei de uma série de reportagens na Folha de S.Paulo, publicada em maio de 2021, sobre essa revoltante carnificina. Ela pode não matar fisicamente, mas mata de outro jeito. Ao analisar cem casos de inocentes presos, constatamos que 42% se deveram a falsos reconhecimentos e outros 25% a identificações incorretas. Do total de inocentes presos por falsos reconhecimentos, 71% eram negros.
Em novembro de 2021, esta Agência Pública divulgou a série documental de seis episódios do podcast “Até que Se Prove o Contrário ”, conduzida pelos jornalistas Ciro Barros, José Cícero e Ricardo Terto, também tratando do tema das prisões injustas.
Não é uma desgraça exclusivamente brasileira. Segundo dados apresentados no seminário pela professora Jennifer Lackey, da Universidade Brown, o falso reconhecimento “é o maior fator contribuinte para condenações que se provaram erradas a partir de testes de DNA”. Cerca de 70% de um total de 375 condenações anuladas nos EUA derivaram de falsas identificações.
No Brasil, enfim surgem algumas boas notícias. Em agosto de 2021, o CNJ instituiu o Grupo de Trabalho (GT) Reconhecimento de Pessoas. Formado por 43 acadêmicos e profissionais do mundo jurídico sob a coordenação do ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz, o GT formulou, no dizer do CNJ, “a mais ampla e consistente proposta para o enfrentamento de condenações equivocadas em processos criminais em decorrência desses erros”.
O GT apontou que frequentemente o reconhecimento ocorre “em condições precárias, em salas inadequadas e sem qualquer preparo que preserve a integridade da produção da prova”. Os procedimentos “costumam adotar práticas não recomendadas, como a utilização de álbum de suspeitos” e o show-up (apresentação de uma única pessoa ‘suspeita’ à vítima ou à testemunha). No lado da Polícia Militar, o GT explicou que é comum o reconhecimento ser realizado “a bordo de viaturas ou por meio de fotos enviadas por WhatsApp”.
“Essas práticas podem levar à formação de falsas memórias e a identificações equivocadas devido à ausência de um alinhamento de reconhecimento formal, contribuindo para a distorção das lembranças das vítimas ou testemunhas.”
Na hora da produção da prova no Judiciário, mais problemas. Uma das práticas mais comuns é “o reconhecimento diretamente na sala de audiência, na modalidade show-up, ou em alinhamento composto geralmente por pessoas escolhidas dentre as detidas na carceragem do fórum, entre os servidores do fórum ou pessoas aleatoriamente presentes. Outra técnica utilizada é o reconhecimento no corredor de passagem, onde suspeitos e testemunhas podem, inadvertidamente, cruzar-se antes do início da sessão, sendo tais encontros utilizados como oportunidades de reconhecimento”.
Apesar de todas essas deficiências, o reconhecimento “é considerado por 69% dos magistrados(as) entrevistados(as) como prova ‘decisiva’ ou ‘muito importante’ no conjunto probatório”.
Como resultado direto do GT, em dezembro de 2022 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 484 que, pela primeira vez, estabeleceu diretrizes mais claras para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos judiciais e sua avaliação no âmbito do Judiciário.
Na sequência, o GT divulgou o seu Relatório Final, de 172 páginas, e o CNJ lançou o Sumário Executivo (32 páginas). Neste ano de 2024, para o uso direto no dia a dia de delegacias e fóruns, o CNJ lançou um Manual de Procedimentos (88 páginas).
Esse conjunto de documentos, em especial o Manual, deveria se tornar leitura obrigatória de policiais, integrantes do Ministério Público e juízes em todas as esferas do Judiciário.
Ao explicar as novidades trazidas pela Resolução do CNJ nº 484 em relação ao artigo 226 do CPP, o Manual deixa claro que cinco passos fundamentais para o reconhecimento não eram seguidos pelo Brasil, muito embora fossem adotados, por exemplo, no Reino Unido e nos EUA e refletissem as recomendações da comunidade científica. Outras duas medidas (gravar o procedimento e não repetir o ato) são uma recomendação científica, mas não são seguidas por EUA e Reino Unido. No Brasil, elas passam a ser obrigatórias.
“A irrepetibilidade garante que o reconhecimento seja realizado apenas uma vez, minimizando o risco de influências externas e a criação de memórias falsas”, aponta o Manual.
Além disso, a partir de agora, os agentes públicos devem a) fazer entrevistas prévias com a vítima ou testemunha antes de iniciar o reconhecimento; b) repassar instruções claras às vítimas ou testemunhas, pois isso “diminui o cometimento de erros de identificação”; c) avaliar a confiança das vítimas e testemunhas na resposta que deram imediatamente após o reconhecimento; d) selecionar as chamadas fillers (pessoas colocadas ao lado do suspeito) de forma que “correspondam à descrição oferecida pela vítima ou testemunha, com o objetivo de evitar viés”; e e) garantir um alinhamento justo (por exemplo, todos com cabelo raspado e barba ou todos sem cabelo raspado e barba), pois a experiência tem demonstrado que “suspeitos que se destacam em alinhamentos têm maior probabilidade de serem selecionados, mas não pelas razões corretas”.
No caso de um alinhamento por fotografia, as imagens “devem seguir um mesmo padrão de fundo, tamanho e origem”. “Fotos extraídas de redes sociais da pessoa suspeita podem gerar dificuldades de padronização.”
O CNJ elaborou uma lista de checagem. Se a resposta for positiva a todas as recomendações, haverá um reconhecimento “padrão-ouro”. Se for negativa, se tratará de “um reconhecimento catástrofe, manifestamente imprestável como prova”.
O atual estágio de discussão e preocupação sobre o assunto se deve em especial à atuação de dois atores: o Innocence Project Brasil e o ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz. O ministro foi o relator de um habeas corpus no STJ (nº 598.886) que, julgado pela Sexta Turma em dezembro de 2020, passou a ser considerado um divisor de águas.
Houve uma “guinada jurisprudencial” no sentido de se obrigar ao cumprimento do CPP como condição fundamental para a validade da prova. Esse julgamento derivou para centenas de outros, segundo o CNJ, “despertando os operadores do sistema de justiça de um sono que durava mais de 80 anos” e “alinhando a jurisprudência do STJ ao consenso científico”.
Um estudo conduzido pelo gabinete de Schietti identificou 377 casos que culminaram em absolvição ou revogação da prisão pelo STJ a partir daquele julgamento. A maioria dos julgados “que absolveram/revogaram a prisão tiveram como único elemento de prova o reconhecimento fotográfico”.
O capítulo brasileiro do Innocence Project, organização não governamental fundada em 1992 nos Estados Unidos que já conseguiu isentar de culpa 251 inocentes, começou a funcionar em 2016 pela iniciativa de um grupo de advogadas criminalistas bem-sucedidas e experientes, como Dora Cavalcanti e Flávia Rahal.
Na advocacia há mais de 30 anos, Cavalcanti começou no escritório do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), de quem chegou a ser sócia. De lá para cá, atuou na defesa de réus e investigados em diversos casos de grande repercussão. Na Lava Jato, defendeu a empreiteira Odebrecht e um de seus donos, Marcelo. Hoje é considerada uma das principais criminalistas do país. A fama e o sucesso na carreira não a impediram de olhar com atenção para os réus mais pobres e esquecidos.
Desde 2016, o Innocence Project Brasil analisou e atuou gratuitamente em dezenas de casos de inocentes presos. Contabiliza a soltura de pelo menos oito vítimas de erros judiciários.
Em 2020, o grupo publicou um relatório sobre “prova de reconhecimento e erro judiciário” que viria a ser citado no julgamento do habeas corpus nº 598.886, no qual a organização também atuou como amicus curiae.
O trabalho do GT, a resolução do CNJ, o Manual de Procedimentos e o encontro da semana passada são resultado desse esforço conjunto entre autoridades do Judiciário, advogados e famílias das vítimas para enfrentamento do problema.
A emoção que a plateia do seminário viveu na semana passada não estava ligada apenas à força dos depoimentos das vítimas, mas também à sinceridade, como vimos em algumas falas na abertura deste texto, de altas autoridades do Judiciário. O reconhecimento das suas deficiências não fragiliza a Justiça, só a fortalece. Embora seja apenas um primeiro e importante passo nesse longo caminho que o país ainda precisa percorrer.
Fonte
O post “Um manual que todos os policiais, promotores e juízes devem ler e cumprir” foi publicado em 16/10/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública