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Não é só o jogo do Tigrinho. Com nomes inusitados como “iribet”, “jogo do cassino” e “amuleto bet”, as empresas de jogos virtuais tomaram conta do dia a dia dos brasileiros de uma maneira fulminante, repentina – e talvez sem retorno. Em alguns meses, passaram de anúncios em redes sociais para patrocínio dos maiores clubes de futebol do país, contratos com os maiores jogadores e influencers, propagandas em outdoors e banners em sites de jornalismo (que, assim, ajudam a espalhar essa epidemia).
A encrenca é tão grande que o Exército teve que criar uma cartilha e adotar terapia para afastar os militares de baixa patente das bets. Economistas avaliam que os brasileiros perderam R$ 24 bilhões em um ano com as apostas, tendo apostado um total de R$ 68 bilhões. As remessas internacionais para “serviços culturais, pessoais e recreativos” – classificação que incluem as bets – deram um salto: foram de pouco mais de R$ 3 bilhões para R$ 47 bi.
Agora, temos a notícia de que grupos como Globo e SBT estão entrando na farra. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, o Grupo Globo fechou parceria com uma empresa da Suíça, usando as empresas Cartola e Globo Ventures. Patrícia Abravanel, do SBT, vai lançar uma empresa própria de apostas, de nome Todos Querem Jogar, em parceria com uma empresa britânica.
Já cobrimos muito aqui na Agência Pública a tentativa do dono de cassino milionário Sheldon Adelson, antigo apoiador de Donald Trump, contando com apoio de Bolsonaro, tentar mudar a legislação do país para abrir o mercado extremamente promissor para os cassinos-resort no Brasil.
Com as bets, elas nem precisaram mudar a lei: sites com servidores no exterior e sede em paraísos fiscais valeram-se da falta de regulamentação do mundo digital e de uma lei do governo de Michel Temer que liberou os anúncios e entraram pelas redes sociais e ferramentas de buscas, veiculando milhões de dólares em anúncios ultradirigidos.. Assim, criaram uma epidemia de apostas que atinge brasileiros de todas as classes sociais, segundo pesquisadores vêm alertando – como fez o psicólogo Altay de Souza em entrevista recente à Pública .
Uma recente portaria do Ministério Fazenda regulamentou os caça-níqueis online, assim como havia sido feito com as bets no ano passado, trazendo alguns avanços interessantes que devem ser adotados em 2025. Então essas empresas terão que usar um domínio .br, registrado no Brasil, e limitar sua margem de lucro a no máximo 15%. Sites não cadastrados serão proibidos de fazer publicidade. Do lado do jogador, a probabilidade de ganho deve ser claramente informada, assim como o tema de cada jogo. Deve haver, ainda, uma indicação explícita de que os jogos são proibidos para menores de 18 anos.
Mesmo assim, vai ser difícil monitorar essa indústria gigante e transnacional, conforme demonstrou uma decisão judicial na semana passada. No dia 9 de setembro, a Justiça de São Paulo determinou a suspensão de 15 sites de jogos. Uma semana depois, porém, verifiquei que apenas quatro deles tinham saído do ar. Um deles anunciava que mudaria de URL – fugindo assim da decisão judicial, que designava uma URL específica. E ainda prometia “bônus extra” a quem seguisse o novo site nas redes sociais. Quem vai conseguir fiscalizar as novas regras?
O Brasil é um campo ideal para essas empresas que vivem de explorar viciados em jogos porque somos um país pobre, com pouca mobilidade social e uso onipresente da internet. Assim como fez tradicionalmente o jogo do bicho e já fizeram os cassinos durante um período, os caça-níqueis e as bets minam regras sociais e cooptam com muito dinheiro empresas e pessoas influentes, criando um clima propício para outros tipos de crime, lavagem de dinheiro inclusive.
Mas além disso, aponta o pesquisador Rafael Zanatta, a crise das apostas chega em um momento em que já temos uma população – mundial, não só brasileira – com um comportamento compulsivo em relação às redes sociais.
“Temos que encarar isso como um problema de danos sociais em duas camadas de adição. Já estamos viciados em redes sociais e estamos nos viciando em jogos de azar em larga escala”, explica ele, que dirige a organização Data Privacy Brasil.
Existe vasta literatura científica que demonstra que o vício em redes sociais tem se tornado um fator corriqueiro e determinante na vida dos jovens, por exemplo. É o próprio design desses produtos que induz a esse comportamento. “Ficamos em posição vulnerável, pois o design embutido nessas plataformas estimula comportamento aditivo. Percebemos isso claramente com nossos impulsos de abrir um mesmo aplicativo dezenas de vezes em um curto espaço de tempo, pois há centenas de mecanismos de recompensa. São escolhas de design intencionais”, diz Zanatta. “Ficamos ansiosos, dependentes, e isso altera nossa própria composição bioquímica, como níveis de dopamina.”
Nos Estados Unidos, um usuário médio de smartphones checa seu dispositivo 63 vezes por dia, sendo que 85% usam quando estão conversando com amigos e familiares, e 69% checam o telefone em até cinco minutos depois que acordam. Menos da metade das pessoas que tentam mudar de hábitos consegue.
Pesquisas já demonstram que o vício digital tem efeitos físicos, alterando a produção de dopamina, um hormônio que traz a sensação de satisfação, pelo cérebro. Em circunstâncias normais, o cérebro libera apenas uma quantidade pequena de dopamina, mas, com a superestimulação pelas redes, essa dopamina aumenta, e ficamos viciados na gratificação gerada por essa substância. Assim como em outros vícios, a produção natural reduz-se e precisa de estímulos externos cada vez maiores. E a pessoa fica ansiosa e deprimida quando perde esse estímulo externo.
“No Brasil, este problema é muito severo, considerando que a utilização de Instagram, Kwai e TikTok é uma das maiores do mundo”, diz Zanatta. “Há também o problema de o brasileiro ser o povo que mais é influenciado por profissionais em redes sociais: os influenciadores, que não seguem qualquer código de ética, como advogados ou médicos”.
Zanatta sugere que, para além de tentarmos conter o fenômeno das bets como se fosse algo isolado, nossos governantes deveriam encarar o problema pela raiz: temos uma epidemia de vício em redes sociais que deve começar a ser tratada como um problema de saúde pública.
Ele não está sozinho nessa.
A primeira e mais famosa proponente da teoria é a professora de engenharia Elaine Ou, da Universidade de Sydney. Em 2019, ela propôs que se tratasse redes sociais da mesma maneira que tratamos as empresas de tabaco ou de bebida alcoólica. E sugeriu duas abordagens possíveis: usar rotulagem, explicitando os riscos do consumo exagerado, por exemplo; ou criar uma inspeção sanitária, de modo a garantir a redução da assimetria entre consumidores e manufatura – uma espécie de “auditoria” dos algoritmos.
O debate tem avançado no domínio público e já há projetos de lei que tentam restringir o uso de redes sociais por adolescentes, como no estado de Nova York, que conseguiu limitar algumas funcionalidades para menores de 18 anos que usarem redes sociais – como a exibição de postagens cronologicamente e a redução de alertas durante a noite. Recentemente , o cirurgião-geral dos Estados Unidos, Dr. Vivek Murthy, tem defendido que as redes sociais devem adotar rotulagem.
Quem sabe, em alguns anos, vamos passar a considerar os bilionários do Vale do Silício como vemos hoje os magnatas do tabaco: gente que enriqueceu destruindo a saúde de populações mundo afora, gerando crises sociais e econômicas pelo caminho.
Fonte
O post “Epidemia de azar” foi publicado em 17/09/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública