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Estive na Venezuela uma vez apenas, em 2017, para fazer uma reportagem que buscava ser equilibrada sobre a situação de então. O texto, editado pela Marina Amaral, saiu com o título de “Venezuela sem fake news ” e detalhou como muitas das informações circuladas na sociedade venezuelana eram falsas, fossem elas vindas do governo ou da oposição. Encerrava citando a frase do diretor de um instituto de pesquisa que me disse: “O tema da verdade foi perdido completamente como um valor na Venezuela. Quando se está no clímax da polarização, a verdade é vista como uma traição”.
Durante os vinte dias que estive no país, fiquei confusa inúmeras vezes. Os apoiadores de Maduro achavam que todas as manifestações massivas que estavam ocorrendo naquele ano – fui a algumas – eram fruto de orquestração americana, lotada de “terroristas” e aplaudiam a dissolução da Assembleia Nacional eleita pelo voto popular. Os oposicionistas, por sua vez, estavam eufóricos, acreditavam que o governo iria cair no dia seguinte.
Nada disso aconteceu, claro. Foi a primeira vez que eu vi uma sociedade destroçada por campanhas de desinformação orquestradas e como isso nubla a percepção dos cidadãos sobre sua própria realidade.
Desde então, várias verdades se estabeleceram. Contrariamente ao que eu escrevi em 2017, a Venezuela passou, sim, por uma enorme crise humanitária que levou um terço de sua população a emigrar, desesperada. Em crise, o governo de Nicolás Maduro entregou as reservas de petróleo, atuais e futuras, às mãos da China e da Rússia. Entregou também boa parte da economia do país nas mãos dos militares e aferrou-se ao poder.
Sob qualquer prisma, é um péssimo governo
Ao longo desse processo, a ditadura de Maduro criou um método próprio de criar ondas de desinformação para corroborar a sua posição, criando fatos políticos – trapaças – que têm apenas a função de se tornarem argumento para um exército de apoiadores, que se mobilizam nas ruas (os “motorizados”), nas redes sociais, sejam por bots ou apoiadores orgânicos, em textos em sites ultrapartidários. E, também, servem como argumento a abaixos-assinados de movimentos sociais, decisões de partidos aliados, como o PT, ou governos aliados, como os de Cuba e da Nicarágua.
O pano de fundo narrativo é sempre o mesmo: a oposição é fascista e trabalha a mando dos Estados Unidos, enquanto o governo trabalha para garantir os direitos da população e a vontade popular. Um playbook que, com os sinais trocados, foi adaptado por Steve Bannon e usado tanto pelo trumpismo quanto pelo bolsonarismo. E cujo elemento mais importante é a pretensão de serem eles os verdadeiros bastiões da democracia enquanto, na verdade, a enterram.
É assim que chegamos às eleições de 28 de julho.
Até aquele dia, o governo de Nicolás Maduro arquitetou uma série de trapaças para não cumprir com os termos dos Acordos de Barbados, que haviam assinado em outubro de 2023 tendo tanto o Brasil quanto os Estados Unidos na mesa de negociação. Entre os compromissos estavam a libertação de oposicionistas presos, pela Venezuela, e o levantamento parcial, pelos Estados Unidos, de sanções econômicas. Estava também garantir eleições limpas e livres, sem repressão à oposição. Mas ali, à vista de todos, alguns dos principais nomes da disputa foram inabilitados, como Henrique Capriles e a líder direitista María Corina. A sua candidata substituta, Corina Yoris, também foi proibida de participar.
A oposição decidiu persistir com um candidato pouco conhecido, o Edmundo González Urrutia, que mesmo assim conseguiu alavancar enormes intenções de voto: as pesquisas mais confiáveis apontavam uma vantagem de pelo menos dez pontos sobre Maduro.
Então, Maduro resolveu inventar o seu próprio evento de “compromisso” com o processo eleitoral, uma cerimônia na qual os candidatos assinaram outro documento que garantia “a absoluta vontade de reconhecer os resultados emitidos pelo Poder Eleitoral” e exigia o respeito da comunidade internacional à soberania do país. González Urrutia não compareceu por se tratar de uma iniciativa unilateral de um candidato, além de repetir compromissos que estavam nos Acordos de Barbados, chancelados pela comunidade internacional.
Era mais uma armadilha. Apoiadores do chavismo usam essa audiência até hoje como “prova” de que a oposição estava tramando não reconhecer os resultados e armando um golpe de Estado.
Antes ainda do pleito, o governo de Maduro retirou o convite a observadores eleitorais da União Europeia, decisão que levou a protestos dos líderes do G7.
Afinal, no dia em que os venezuelanos acudiram às urnas em grandes números, todos os observadores e jornalistas que estavam no país afirmaram que, durante o dia, o processo aconteceu em paz. Os problemas começaram já no cair da noite.
Pipocaram vídeos de grupos de “motorizados” circulando por diversos colégios eleitorais, amedrontando opositores que faziam vigília para garantir que os votos fossem registrados amplamente. Lá dentro, diversos relatos de chefes de mesa que não permitiram à oposição assinar ou fotografar as atas.
À noite, pouco depois de encerrada a votação, Maduro se autodeclarou presidente. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) confirmou apresentando dados inacreditáveis. Com 80% dos votos apurados, Maduro teria recebido 5.150.092 votos, Edmundo González Urrutia, 4.445.978 votos e outros candidatos, 462.704 votos. A porcentagem seria de 51,2% para Maduro, 44,2% para Urrutia e 4,6% para os demais. O problema é que esses números são mais uma trapaça. Isso porque, diferentemente de todas as eleições do mundo, as porcentagens são exatas: Maduro recebeu 51,20000% e o opositor, 44,20000%.
A porcentagem da votação é tão redonda que matemáticos, economistas e qualquer um que entenda de estatística apontaram que a chance de ela acontecer é de uma em cem milhões .
Vamos olhar os votos de Maduro. Se tomarmos o número total e ampliarmos um decimal, a porcentagem seria de 51,199997%. Trata-se do número de votos mais próximo possível da porcentagem 51,2%, dentre cerca de 10 mil possibilidades, como bem explicou o economista uruguaio Fernando Esponda .
É bem possível que funcionários do governo venezuelano tenham trabalhado de trás para a frente: decidiram uma porcentagem que seria adequada para o ambiente político do país e então calcularam quantos votos seriam necessários.
Para comparação, Lula foi eleito com 60.345.999 votos, ou 50,902405%, enquanto Bolsonaro recebeu 58.206.354, ou 49,097595% dos votos. Uma eleição apertada, mas real.
Até hoje, o CNE não liberou os dados detalhados. Apesar de ter apurado, agora, mais de 96% das urnas, não se sabe quantos votos foram contabilizados em cada estado, em cada região ou em cada colégio eleitoral. É impossível checar a votação (diferentemente do Brasil, onde o TSE sempre abre a base com todos os dados).
Mas, a se considerar que os dados de atas recolhidos pela oposição são verdadeiros, a realidade é aterradora para o chavismo. Nunca, ao longo de 25 anos, a população rechaçou-o tão fortemente. Maduro perdeu em todos os estados do país, e em 90% dos municípios, assim como em todos os estratos sociais, segundo uma análise do economista venezuelano Omar Zambrano.
Pode ainda haver novas trapaças, uma vez que os governistas insistem que houve um “ataque cibernético” contra o sistema do CNE durante a noite de votação. Como não foi oferecida nenhuma prova desse ataque, ouso dizer que é mais uma narrativa que vai ganhando corpo nos círculos chavistas, o que poderia levar até ao cancelamento das eleições. O site do CNE, aliás, está fora do ar desde as eleições.
Em vez de deixar o CNE concluir seu trabalho, o Supremo Tribunal de Justiça, agora, decidiu ser o responsável por avaliar os resultados das eleições, a pedido de Maduro. Chamou os candidatos a apresentarem as atas eleitorais, em uma reunião na semana passada. González Urrutia não foi e acusou que era mais uma armadilha.
Eu acho que Maduro acreditava de fato que venceria as eleições. Embora a grande maioria dos institutos confiáveis desse larga vitória à oposição, havia pesquisas que o colocavam até 9 pontos à frente. Eram essas que lhe eram apresentadas como confiáveis. É esse um dos problemas dos autocratas cercados de puxa-sacos (o mesmo vale para Bolsonaro): perdem, eles mesmos, contato com a realidade factual. Assim, Maduro deve seguir daqui em diante convencido de que está resistindo à ingerência americana, sem ouvir a vontade da maioria da sua população.
Fonte
O post “A trapaça como método” foi publicado em 06/08/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública