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Um dos motivos pelos quais a Agência Pública escolheu o Vale do Javari, no oeste do Amazonas, para um podcast detalhado sobre seu passado e seu presente foi mostrar como um mergulho na realidade daquela região poderia ajudar a entender o cenário de diversos outros pontos da Amazônia.
De modo geral, com nuances e diferenças, uma das principais ameaças vividas hoje pelos povos indígenas no Vale do Javari se repete também em outras partes da região amazônica: o avanço das igrejas e agências religiosas em busca da evangelização de indígenas.
Intitulado “Corrida pelas almas”, o quarto episódio do podcast Morte e Vida Javari, que vai ao ar nesta quarta-feira, 26 de junho, vai mostrar como as iniciativas evangélicas têm crescido em toda a região. Configuram uma ameaça de profundas mudanças na “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, as expressões que constam da nossa Constituição (artigo 231) como direitos indígenas fundamentais.
A ideia do Deus cristão e as formas como ele é cultuado divergem bastante da cosmovisão indígena no Javari. Foi o que nos explicou para o podcast, por exemplo, a Feliciana, liderança do povo Kanamari. Tamakuri, o deus criador na cultura Kanamari, vive na floresta, onde pode ser consultado, e não numa igreja ou num templo. Quando vão caçar, os indígenas se dirigem a Tamakuri.
“Para nós, o deus está em todo lugar. Ele vai nos ouvir onde nós estivermos, até na floresta. A floresta, para nós, tem vida igual à de um ser humano. Ela sangra, ela adoece, ela ouve. Por isso é que nós a preservamos. […] Quando os homens saem para caçar, antes de caçar, antes de entrar na floresta, eles pedem ‘com licença, Pai, eu estou entrando na floresta, e eu vou retirar só o consumo da nossa aldeia, da nossa família’.”
Durante o trabalho de campo de cerca de dois meses para o podcast da Pública, em dois momentos em 2023 e 2024, imediatamente saltou aos olhos a expressiva presença de igrejas evangélicas na cidade de Atalaia do Norte, a “porta de entrada” da Terra Indígena Vale do Javari, que é a segunda maior em extensão do país.
Um dos chamarizes do Javari para os evangélicos, inclusive internacionais, é que o território abriga diversos grupos indígenas ainda em isolamento voluntário – a Funai trabalha com dez registros confirmados. Para diversas missões evangélicas, traduzir a Bíblia em todas as línguas existentes no planeta e consequentemente ensiná-la aos falantes dessas línguas é um objetivo importante que também ajuda a captar recursos de doadores evangélicos internacionais para suas operações.
No podcast, ouvimos a indigenista católica Cristina Alejandra Larraín Manzo, graduada em trabalho social pela Universidade Alberto Hurtado, no Chile. Ela se especializou no estudo das ondas evangélicas missionárias na região do Javari e do rio Solimões, que ela divide em três fases: a pioneira, nos anos 1950, a segunda, nos anos 1990, e a atual.
Manzo fez um extenso trabalho de campo em 2022. Naquele ano, 29 igrejas evangélicas funcionavam na cidade de Atalaia do Norte, sem contar os templos localizados na terra indígena e nas 17 comunidades ribeirinhas do município. Além disso, pelo menos três cultos autointitulados indígenas ocorrem nas casas de pastores em Atalaia.
A pesquisadora descobriu que dois desses pastores indígenas foram treinados por um mesmo pastor evangélico Tikuna, enquanto o terceiro culto “é acompanhado por um missionário norte-americano”.
Há ainda projetos tocados por cinco casais missionários com filhos, dos quais três têm origem nos Estados Unidos e dois no Brasil. Um dos casais é formado por uma missionária do Canadá.
“Os pleitos são os mais diversos: sociais, esportivos, educativos, de evangelização, de tradução [da Bíblia]. Então, se considerarmos todas as igrejas, cultos e projetos presentes na cidade de Atalaia, até o ano de 2022 eram pelo menos 40 iniciativas.”
Em 2023, quando Manzo retornou ao Javari, ela apurou o acréscimo de mais quatro projetos missionários e igrejas, totalizando 44 iniciativas na cidade de Atalaia, que tem cerca de 15 mil moradores. Dez anos antes, em 2013, Manzo havia contabilizado apenas 14 igrejas evangélicas.
O quarto episódio do podcast Morte e Vida Javari documenta e procura entender a ampliação da presença evangélica na terra indígena e no seu entorno. Uma ameaça talvez ainda mais devastadora sobre os povos indígenas do que o garimpo e o desmatamento, por exemplo. Ela age silenciosamente no seio das comunidades indígenas, sem o barulho das dragas e das motosserras.
EP 4
Corrida pelas almas
Fonte
O post “Morte e Vida Javari: igrejas evangélicas competem entre si pelas almas indígenas” foi publicado em 26/06/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública