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O caro leitor que acompanha não apenas esta coluna, mas também o debate em torno do papel da humanidade nas mudanças que estão em curso no planeta, talvez já tenha ouvido falar da expressão Antropoceno.
A ideia, que vem do início deste século, é que as chamadas ações antropogênicas (induzidas ou alteradas pela presença e atividade humana) já causaram e ainda causarão um impacto tão profundo nos ciclos naturais e processos do planeta que seriam o suficiente para marcar uma nova era geológica na escala de tempo da Terra.
Assim como o Triássico foi o período marcado pelos dinossauros e o Paleogeno, pela ascensão dos mamíferos, o Antropoceno seria a época humana, sucedendo o Holoceno – oficialmente a era atual, que começou há cerca de 12 mil anos, ao fim da última era do gelo, e que é caracterizada por uma relativa estabilidade climática.
Se tem uma coisa que não parece estarmos vivendo atualmente é uma estabilidade do clima, com a temperatura média do planeta batendo os mais altos valores do registro histórico (talvez a mais alta em 125 mil anos), eventos extremos por tudo quanto é canto, cada vez mais intensos e frequentes, ondas de calor bizarras e o gelo diminuindo perigosamente nos polos.
Há cerca de 15 anos, cientistas se debruçam sobre essas e outras alterações para avaliar se é caso de declarar uma nova era geológica e, em caso positivo, quando ela teria começado. Nesta terça-feira (5), o New York Times publicou uma reportagem (traduzida no Brasil pela Folha ) dizendo que uma votação teria colocado fim ao debate: ainda não seria o momento de fazer essa definição.
Na edição impressa de ontem, o jornal americano publicou a reportagem na sua capa com o título “Geólogos dizem que não é hora de declarar uma época criada por humanos”, posicionada abaixo de uma foto de Donald Trump – que, apesar de não ter nada a ver com a história (a foto dele ilustrava outra matéria), veio carregada de simbolismo, considerando que o ex-presidente (e talvez futuro também…) dos Estados Unidos é um conhecido negacionista das mudanças climáticas.
A reportagem provocou um auê. No texto, o repórter afirma que o resultado de um painel científico havia sido vazado para o jornal. Foram citados dois geólogos que votaram contra a proposta e foi informado que a maioria do comitê que estava analisando o caso dentro da Comissão Internacional de Estratigrafia tinha tido o mesmo posicionamento (12 votos contra e apenas 4 a favor).
Havia, porém, uma ressalva de que ainda não estava claro “se os resultados representavam uma rejeição conclusiva ou se ainda poderiam ser contestados ou apelados”.
Bem, parece que a situação é bem mais enroscada. O presidente do painel, o geólogo Jan Zalasiewicz, se manifestou dizendo que houve irregularidades na votação e que ela deveria ser considerada nula, como informou o veterano jornalista de clima Brad Johnson, que assina a newsletter Hill Heat .
Johnson ouviu a cientista norte-americana Naomi Oreskes, da Universidade Harvard, uma das mais ferrenhas investigadoras dos mecanismos de negacionismo nos EUA e membro do painel, e ela afirmou que “irregularidades nos procedimentos de votação sugerem fortemente que a decisão não teve base científica”.
E ela continua: “Ao rejeitar a proposta do Antropoceno, o painel sugere ao mundo que eles não estão dispostos ou são incapazes de reconhecer o que todos nós podemos ver agora: que nós realmente vivemos no Antropoceno. Ao negar o óbvio, os estratigráficos ameaçam minar a credibilidade da ciência que afirmam proteger”.
O jornal britânico The Guardian também publicou uma reportagem nesta quinta (7) explicando que a votação está sendo questionada. O texto lembra que a definição do Antropoceno “formalizaria as mudanças inegáveis e irreversíveis que a atividade humana tem causado no planeta”.
Quando vi a notícia do New York Times, eu escrevi para o climatologista Carlos Nobre, o único brasileiro e um dos poucos não geólogos a participar do painel. Ele compôs o grupo no início das discussões, mas já não faz mais parte e, portanto, não acompanhou a votação. Seu comentário foi sucinto: “Para cientistas climáticos, é óbvio que já estamos dentro do antropoceno. Por exemplo, até 2050 o gelo do oceano Ártico irá desaparecer no fim do verão. Isso não acontece há muitos milhões de anos”.
O físico Paulo Artaxo, da USP, que é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), fez um comentário um pouco indignado com a cobertura jornalística da decisão. “A questão em discussão é que não é possível determinar um marco estratigráfico preciso e específico para marcar geologicamente como o início de uma nova era geológica, a Antropoceno”, escreveu.
Mas, diz, é “importante salientar que não se nega a influência humana nos ecossistemas terrestres, mas que tão somente precisamos definir um marco estratigráfico que seja estável e forte o suficiente, de acordo com os demais marcos geológicos”.
Procurei também Karina Lima, doutoranda em climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e divulgadora científica. Quando ela viu a matéria do Times, fez um comentário no X (o antigo Twitter) que me chamou atenção. “Quando um paradigma puramente geológico não dá conta da complexidade do problema”.
Pedi que ela me explicasse melhor e reproduzo a seguir alguns trechos da resposta que ela me mandou: “A proposta de formalização do Antropoceno como época foi rejeitada, não porque se negue a influência humana no sistema planetário, mas porque existe uma dificuldade para sua delimitação precisa. Existe um conflito na definição e também uma dificuldade epistemológica, porque um paradigma puramente geológico realmente não consegue abarcar toda a complexidade e transversalidade do impacto humano sobre a Terra. Seria necessário um paradigma multidisciplinar, pois não se trata de uma questão pertinente apenas às ciências naturais. O conceito de Antropoceno já se tornou um zeitgeist que compreende também questões culturais, filosóficas e políticas”.
E complementa: “A definição de Antropoceno como evento geológico é cientificamente pertinente, mas sua formalização como época seria importante no sentido de comunicar de forma muito mais assertiva sobre a relação insustentável do ser humano com o planeta. Me preocupa que esta negativa possa contribuir para um novo e falacioso argumento negacionista mas, independente da formalização como época, o conceito de Antropoceno permanece adequado, importante para inúmeros debates e continuará sendo utilizado por ativistas e pesquisadores de diversas áreas”.
Essa também foi a preocupação que eu senti. De que a votação, de algum modo, possa acabar prestando um desserviço ao combate às mudanças climáticas. Mas vamos aguardar os próximos capítulos.
Se este tema te interessar, deixo aqui um convite. Na próxima quarta-feira (13) a Agência Pública faz aniversário e vamos fazer um evento para debater alguns dos temas que são mais caros para nós no trabalho de defesa e fortalecimento da democracia. A cobertura da emergência climática faz parte disso. Vou mediar uma mesa no Tucarena (na PUC-SP), a partir das 19h, com o Carlos Nobre e com o escritor Ailton Krenak, para debater justamente o Colapso climático e o Antropoceno. O papo também será transmitido ao vivo pelo canal da Pública no YouTube .
Fonte
O post “O auê do Antropoceno e a importância de dar nome ao que estamos causando ao planeta” foi publicado em 08/03/2024 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública