Enquanto o Brasil pulava Carnaval vibrando com os yanomâmis no Salgueiro, torcendo pela prisão de um golpista ou dez e tentando não pegar dengue, a revista científica Nature tratou de jogar água no nosso chope: em plena quarta-feira de Cinzas publicou um artigo científico por pesquisadores brasileiros descobrindo que quase metade da Amazônia pode entrar no estado pré-colapso até 2050. A combinação entre aquecimento global, desmatamento e manipulação está empurrando vastas porções da floresta tropical para um estado no qual a vegetação densa é abundante por um capim com poucos árvores, com efeitos catastróficos para o clima e a biodiversidade.
O estudo é o mais robusto publicado até aqui sobre o temido “ponto de virada” da Amazônia, teorizado nos anos 1990 e cada vez mais próximo, segundo um conjunto crescente de evidências. No ano passado, na Cúpula da Amazônia, líderes de nove países que compartilham o bioma se comprometeram a agir para evitar que ele atinja esse temido limiares – mas foram incapazes de concordar em zerar desmatamento e impedir a exploração de combustíveis fósseis, as duas únicas maneiras de salvar os ecossistemas amazônicos.
Entrevistado pelo OC, o ecólogo Bernardo Flores, da UFSC, que liderou o estudo conjunto com Marina Hirota , da mesma universidade, afirmou que, embora suas projeções falem em risco para 10% a 47% da floresta, nenhuma parte da Amazônia está a salvo . “Quanto mais se perder da Amazônia, mais a gente pode perder outras partes da Amazônia”, afirmou. Leia abaixo.
Calor e chuvas intensas fazem a alegria do mosquito; 151 pessoas já morreram
Você certamente tem algum amigo, parente ou conhecido que pegou dengue neste verão. E, se não tem, é porque quem pegou foi você. O ano de 2004 já registrou, em sete semanas, mais de 700 mil casos da doença, e quase cinco vezes mais casos por 100 mil habitantes do que todo o ano de 2023, que detém o recorde de casos neste século (1,6 milhão de afetados, empatado com 2015). No DF, a incidência é alucinante: 2.956 casos por 100 mil habitantes, sete vezes mais que a média nacional, já extraordinária.
O número de casos de dengue registrados nas primeiras sete semanas de 2024 já é maior que o total de casos em 2014, 2017, 2018 e 2021, como mostra a série histórica do Ministério da Saúde. Além disso, três semanas deste ano, isoladamente, já concentraram mais casos do que a semana de pico de 2023. A alta até aqui é de 350% no número de casos em relação ao ano passado, e de 20% no número de mortes.
Como argumentamos aqui , uma série de estudos nos últimos anos vêm relacionando a expansão da dengue no Brasil com o aumento das temperaturas médias, a intensificação das chuvas de verão e a urbanização descontrolada. Tirando este último, todos os fatores são consistentes com um mundo em aquecimento.
“ZERAR DESMATAMENTO NÃO BASTA”
A Amazônia está no rumo acelerado de um ponto de não retorno: a persistirem as tendências de desmatamento, degradação e aquecimento global, entre 10% e 47% do bioma podem ser empurrados para um estado no qual qualquer estresse mínimo, como um El Niño, causaria um colapso auto-sustentado da floresta, transformando-a em mata degradada, ou num deserto de brachiaria com árvores, ou em savanas empobrecidas.
Zerar o desmatamento imediatamente e regenerar ou recuperar áreas desmatadas em grande escala são necessidades urgentes, para aumentar a resiliência da mata. Só que isso não evita o colapso se a humanidade não fizer nada a respeito do aquecimento global. “Se a gente zerar desmatamento e o [aquecimento global] continuar se intensificando, talvez a gente nem consiga zerar o desmatamento porque vai queimar para todo lado e a gente vai perder o controle”, diz o ecólogo Bernardo Flores, da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos autores principais do estudo, em entrevista ao OC .
COLAPSO ABRUPTO DE CORRENTE DO GOLFO ESTÁ MAIS PRÓXIMO DO QUE VOCÊ GOSTARIA
Passou batido por nós, mas não pelo Jon Watts, do The Guardian : um novo estudo no periódico Science Advances sugere que a circulação meridional do Atlântico, conhecida pela sigla Amoc, pode estar perto de um colapso abrupto, após ter enfraquecido em 15% desde 1950. Esse conjunto de correntes oceânicas, cuja ramificação mais conhecida é a corrente do Golfo, distribui calor entre trópicos e o Ártico e torna grande parte da Europa cultivável. Seu desligamento repentino, encenado na ficção científica O Dia Depois de Amanhã, de 2004, teria impactos sérios para o clima – alguns contraintuitivos, como deixar a Europa gelada e seca muito rápido, tornando impossível a adaptação.
Assim como no caso amazônico, a ideia de um ponto de não-retorno para a circulação do Atlântico vem sendo proposta há décadas e já passou por idas e vindas na ciência. Nos últimos anos, um corpo cada vez maior de evidências vem fortalecendo a hipótese de colapso. Ainda é impossível saber quando ele ocorrerá, mas este é mais um caso de uma peça grande do maquinário climático da Terra que foi um dia julgada inabalável e que descobrimos ser, na verdade, bastante frágil.
COMITÊ DA COP29 TERÁ CEO DO PETRÓLEO E ESPIÃO
Começou a funcionar no Carnaval a “troika” , como é chamado o trio de presidências de conferências do clima que tentará botar de pé a Missão 1.5, a tentativa de salvar a meta do Acordo de Paris. Emirados Árabes, Brasil e Azerbaijão (sedes das COPs 28, 29 e 30) farão ao longo dos próximos 18 meses uma série de reuniões para produzir um mapa do caminho para o aumento da ambição das novas metas climáticas que todos os países terão de apresentar até fevereiro do ano que vem, antes da COP de Belém.
O Azerbaijão, cuja capital, Baku, hospedará a conferência do clima deste ano, já começou a organizar a COP29, mas se espelhando no coleguinha de troika errado. Primeiro deu a presidência da COP a um ex-executivo do petróleo. Depois, formou um comitê para a conferência sem nenhuma mulher (voltou atrás após uma grita internacional). Agora, nomeou para esse comitê simplesmente o CEO de sua petroleira estatal e o chefe do serviço de espionagem . Mal comparando, é como se o general Heleno fosse nomeado para organizar uma COP. Não que alguém tivesse esperança de que um país petroleiro e ditatorial fosse hospedar um evento aberto e inclusivo, com ampla participação da sociedade civil e enormes protestos de rua e sem influência do lobby petroleiro. Mas a escolha dessa turma para o comitê não tem nenhuma sutileza.
NA PLAYLIST
- Hutukara é o título do samba-enredo do Salgueiro que homenageia os yanomâmis . De arrepiar até para quem não gosta do gênero.
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O post “Na newsletter: Um petroleiro e um espião entram num bar em Baku” foi publicado em 26/02/2024 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima