O tema da regulação/legalização das Redes Comunitárias tem despertado muito interesse em todo o mundo. Ao mesmo tempo em que, em alguns países, avança o reconhecimento sobre a importâncias das Redes Comunitárias como um ator relevante para a ampliação do acesso à Internet em áreas rurais e de difícil acesso (ou pouco interesse econômico), em outros o debate sobre infraestruturas de comunicação autônomas ainda precisa de muito aprofundamento, e enfrenta a emergência de governos pouco engajados na ampliação de direitos fundamentais.
Alheio ao debate político, o espectro radioelétrico é hoje concebido em um novo contexto de evolução dos sistemas técnicos, que permite seu uso dinâmico a partir de técnicas de gestão muito mais eficientes que o modelo executado por estados durante o século analógico: trata-se da gestão dinâmica do espectro .
Em todo o mundo, nos mais diversos fóruns e encontros internacionais, novos conceitos de uso do espectro emergem como possibilidade efetivas de ampliação de uso deste recurso tão fundamental para as comunicações locais, regionais e globais. Abaixo seguem alguns dos principais debates em curso entre reguladores, formuladores de políticas e pesquisadores.
- Uso secundário do Espectro
Ao atribuírem faixas de frequências para exploração comercial de empresas, governos e sociedade civil têm observado uma enorme dificuldade em se alcançar a universalização do acesso a serviços básicos de comunicação, como acesso a uma rede de celular ou à Internet. Isso ocorre porque as empresas não vislumbram um negócio lucrativo em localidades onde há baixa densidade demográfica ou de difícil acesso, o que tornaria a instalação de infraestrutura mais cara. Como opção para permitir que esses grupos excluídos tenham a possibilidade de se comunicarem, reguladores de todo o mundo têm debatido sobre a viabilidade de se concederem licenças secundárias de uso do espectro, ou seja, mantendo-se a “propriedade” da faixa de frequência do detentor do direito de exploração primário, que pagou em um leilão de frequências por esse direito: a proposta é de que um uso secundário, local, seja permitido, especialmente se não possuir fins lucrativos. A despeito de seu caráter pretensamente progressista, pesquisadores e representantes da sociedade civil consideram que o uso secundário não garante o investimento local na infraestrutura, uma vez que, ao se criar a demanda de uso, a qualquer momento, o detentor do direito primário poderia se apoderar da frequência e desperdiçar todo o trabalho local de construção da rede comunitária.
- Compartilhamento do Espectro
Uma outra ideia para o uso secundário do espectro é o assim chamado “compartilhamento do espectro”. Trata-se de um conceito bastante ambíguo, pois não garante direito algum, apenas torna mais “flexível” a ocupação do espectro permitindo o uso secundário já citado. Na verdade, o compartilhamento do espectro poderia refletir uma realidade técnica na qual não haveria mais necessidade de funcionamento de faixas exclusivas, ou seja, fosse a partir de uma base de dados ou de tecnologias de monitoramento local do espectro em tempo real, o uso efetivo do espectro ganharia muito mais atores se permitisse e incentivasse o compartilhamento: quando não se estivesse utilizando, outro poderia fazê-lo. Uma transmissão “de alta qualidade” também poderia ser reduzida para dar espaço a outra, enviando menos dados.
- Compartilhamento de Infraestrutura
Com a digitalização dos meios de comunicação, incluindo a tv e o rádio, um único transmissor é capaz de enviar 4 ou mais programações: é o que se chama de multiprogramação. Na atual regulação de tv digital do Brasil, todo município brasileiro tem direito a solicitar o seu canal cidadania gratuitamente (algo inédito até hoje), e com isso dispor de “duas faixas para associações comunitárias, com programação local de interesse da população beneficiada”. Além da programação audiovisual, a tv digital já vem com interatividade, e pode transmitir dados e serviços , constituindo-se em uma tecnologia com enormes potenciais para as redes comunitárias do Brasil e América Latina.
- Espectro Livre
Há quase uma década se discute no Brasil a proposta de uma regulação que contemple tanto técnica quanto socialmente a liberdade de expressão de qualquer pessoa, independentemente de prévia autorização. Além das avenidas privadas de comunicação, por que não existem as vias abertas, o espectro aberto, onde todos podemos nos comunicar sem fins lucrativos ?
Ou seja, tal como previsto no Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no Art 5o inciso 9o da Constituição Federal Brasileira, o Estado não precisa necessariamente autorizar o uso do espectro para atividades de comunicação, sem fins lucrativos. E muito menos nesse começo de século, quando já dispomos de tecnologias muito mais eficientes de gestão do espectro que a atribuição centralizada desde uma capital em um território continental: quão antiquada é essa ideia! (Silveira, 2001).
O Espectro Livre propõe então que levemos em consideração a natureza jurídica das infraestruturas de comunicação que fornecem informação à esfera pública: trata-se, sobretudo, do direito do povo à comunicação . Ou seja, entendendo-se que o “meio é a mensagem”, uma empresa de jornal, televisão ou rádio promove, a partir mesmo de sua estrutura, a contaminação da esfera pública com interesses privados: eis o resultado direto dos editoriais, por exemplo, que fazem parecer de interesse geral as manifestações de particulares. Para contornar essa dificuldade em se promover uma esfera pública de debate público equilibrada, a maioria dos países democráticos adota medidas de “complementaridade dos meios de comunicação social” (no Brasil, o Art 223): fomenta-se a convivência de empresas privadas, públicas e iniciativas comunitárias de comunicação para permitir tanto a pluralidade quanto a diversidade de fontes de informação.
Para nosso especial interesse, em grande parte da América Latina, a complementaridade dos meios de comunicação social resultou na divisão equitativa do espectro : 33% para empresas, 33% para os governos e 34% para comunidades. Na Bolívia, esses 34% foram ainda divididos em 17% para afro-bolivianos e 17% para campesinos, inaugurando uma abordagem étnica para o uso do espectro. Neste sentido, o Espectro Livre representaria a demanda de reserva de 34% do espectro para uso sem fins lucrativos, ou prévia autorização.
Pesquisas jurídicas mais recentes, atentas aos riscos que os equipamentos de radiação podem causar à saúde, à sadia qualidade de vida, apontam para um conceito inovador sobre o espectro: entendem-no como bem ambiental. Não sendo público, nem privado, esse bem difuso seria regulado diretamente pela sociedade civil por meio de relatórios técnicos de impacto ambiental, deslocando a gestão estratégico-militar de comando e controle para uma gestão cidadã e ecológica do espectro.
Considerando o atual contexto de revisão da Lei do FUST, que acumulou um fundo de universalização que está prestes a ser desviado de suas funções originais para atender a desígnios político empresariais, bem como a aprovação do PLC 79, que significa a entrega de infraestrutura de telecomunicações pública para iniciativa privada, parece pouco provável qualquer avanço no reconhecimento da importância do trabalho das Redes Comunitárias. Ao contrário, como bem nos lembra o histórico de regulamentação das Rádios Comunitárias, ao se propor um conceito de Redes Comunitárias, seu resultado imediato seria a criação de um conjunto de regras que tornaria ilegais todas as iniciativas que não se enquadrassem em seus termos (no Brasil, foram condenadas mais de 1mil pessoas por radiodifusão ilegal pós-9.612, de 1998).
Assim, entendendo que todo debate jurídico é também político, econômico e social, por que se defender a criação de um conceito de Redes Comunitárias que em nada se beneficiaria nem de recursos (FUST), nem de infraestrutura (PLC79)? No que a experiência de nossos colegas latinoamericanos, como na Argentina, pode nos ajudar a pensar e atuar em nosso próprio e particularíssimo contexto?
O Espectro Livre se mantém, assim, como uma alternativa tanto prática quanto teórica. Na prática, porque já dispomos da resolução 680, que torna dispensável a autorização para provimento de internet comunitária para menos de 5 mil usuários. Na teoria, porque continuamos firmes na defesa de um direito amparado internacional e nacionalmente: o direito à comunicação, independentemente de fronteiras ou prévia autorização (sendo também uma alternativa à vigilância ).
Por fim, resta ainda nos perguntarmos o quanto as metáforas vigentes no século analógico ainda nos servem com o digital. Se queremos pensar o espectro como bem comum, faz sentido compará-lo à água, cuja natureza é ser escassa? Ou o espectro seria mais bem definido como um bem comum tecnicamente mediado, já que não perde qualidade com seu uso e pode comportar distintos sistemas técnicos que desafiam sua natureza escassa para permitir sua ocupação por muito mais atores? Que implicações sociais e ecológicas podem ser tiradas ao se entender o espectro como um bem ambiental, a que todos temos direito de acesso?
Referências
BELISÁRIO, Adriano [2017]. Espectro Livre como alternativa tecnopolítica à vigilância .
FIORILLO, Celso Pacheco Antonio [2000]. O Direito de Antena Em Face do Direito Ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva.
PINHEIRO, Guilherme Nunes [2013]. “Uma Perspectiva Neoconstitucional da Regulação do Espectro Radioelétrico”. REVISTA Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijuí, ano 1, n. 2, jul./dez. (Ver também tese de doutorado do autor, 2015. A Regulação do Espectro de Radiofrequência no Brasil: uma visão crítica sob a perspectiva dos bens públicos ).
NOVAES, Thiago [2013]. Espectro Livre: o direito do povo à comunicação . Rev. Lugar Comum 40.
SILVEIRA, Fernando [2001]. Rádios Comunitárias. Belo Horizonte: Editora Del Rei.
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