DO OC – Em 19 de dezembro no apagar das luzes do ano legislativo, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 4.994/23 que classifica a BR-319 (Manaus-Porto Velho) como “infraestrutura crítica e indispensável à segurança nacional”. O PL prevê a eliminação de etapas do licenciamento ambiental e até mesmo o uso de recursos do Fundo Amazônia para asfaltar 405,7 km dos 885 km da via.
A proposta, que ainda será votada pelo Senado, ignora que um licenciamento frágil contribui para a destruição da floresta. O entorno da BR-319, inclusive, já está sendo devastado. Reportagem publicada pelo InfoAmazonia mostra que, em quatro ramificações de estradas ligadas à BR-319, os ramais AM-254, AM-354, AM-364 e AM-366, houve aumento de focos de incêndio. De janeiro a 26 de setembro foram registrados 1.753 focos, contra 805 no mesmo período em 2022. Em fevereiro do ano passado, o Observatório do Clima havia mostrado que o desmatamento no entorno da BR-319 havia crescido 122% entre 2020 e 2022. O pico coincidiu com o anúncio da gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre a pavimentação.
O que tem ocorrido na BR-319 é parte de algo que até hoje é virtualmente uma lei matemática na Amazônia: estrada asfaltada = grilagem, madeira ilegal, fogo e violência. Foi assim com todas as grandes rodovias pavimentadas na região; ao ligar A e B, elas facilitaram a penetração de todo tipo de especulador e criminoso na floresta e causaram a explosão no desmatamento do bioma a partir dos anos 1970.
O governo só tentaria intervir nessa realidade em 2003, quando se buscou vincular a pavimentação da BR-163 (Cuiabá-Santarém) a um rigoroso processo de licenciamento ambiental, que incluiu a interdição de 8 milhões de hectares em volta da estrada em 2005 para criar unidades de conservação. Os resultados foram agridoces: embora a devastação tenha caído num primeiro momento, algumas áreas protegidas no entorno da 163 vêm sendo invadidas e desmatadas, e a violência fundiária grassa na região.
A experiência acumulada na 163 e a tragédia das outras rodovias fez o Ministério do Meio Ambiente subir a barra das exigências para licenciar a 319. Contra isso se insurgiram o governo Bolsonaro, cujo ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas (atual governador de São Paulo) obteve uma licença prévia de legalidade questionada para o principal trecho da obra, e a bancada do Amazonas na Câmara dos Deputados, que ora busca legalizar as ilegalidades do licenciamento por meio do PL 4.994.
Um estudo do pesquisador da UFMG Raoni Rajão, hoje diretor de Controle do Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente, mostrou que a pavimentação da 319 poderia quadruplicar a devastação até 2050 nos 12 municípios do seu entorno .
Conheça abaixo outras estradas na Amazônia que causaram desastres socioambientais:
BR-010 (Belém-Brasília)
Projeto de Juscelino Kubitschek, a BR-010 foi a primeira ligação rodoviária da Amazônia com o restante do Brasil, e abriu a fronteira agropecuária na região. A ocupação do seu entorno, com exploração de madeira, carvão e grilagem de terras, arrasou as florestas do leste do Pará e do sudoeste do Maranhão, gerou conflitos fundiários e produziu o flanco leste do Arco do Desmatamento, região que concentra 75% da devastação na Amazônia. Uma das cidades icônicas da rodovia, Paragominas, chegou a ser o maior polo madeireiro e carvoeiro da América Latina nos anos 1990, era conhecida pelo apelido de “Paragobala”.
BR-230 (Transamazônica)
A Transamazônica foi planejada e entregue por Emílio Garrastazu Médici dentro do Plano de Integração Nacional (PIN). Inaugurada em 1972, a via de 4,9 mil quilômetros segue da Paraíba até Humaitá, no Amazonas, onde desaparece na selva.
A Transamazônica foi um dos maiores desastres socioambientais do Brasil, iniciando o ciclo de desmatamento explosivo que perdurou até 2005. O modelo de assentamento criado pela ditadura para espalhar colonos nordestinos ao longo da estrada, com ramais abertos a cada 3 quilômetros, deu origem ao padrão de desmatamento conhecido como “espinha de peixe”, facilmente visível nas imagens de satélite. A rodovia causou massacres de indígenas, esgotamento de florestas e violência no campo. O assassinato da freira Dorothy Stang, em 2005 em Anapu, cidade à beira da rodovia, é resultado direto dos problemas fundiários decorrentes da colonização, que permanecem até hoje.
BR-364 (Cuiabá-Porto Velho-Rio Branco)
A BR-364 também é obra de JK e abriu o flanco oeste do Arco do Desmatamento. Em 1982, reta final da ditadura militar, a rodovia foi pavimentada graças a recursos financeiros do Banco Mundial, gerando o período conhecido como a Década da Destruição em Rondônia – talvez o maior desmatamento num período curto já visto em todo o mundo tropical. Conforme lembra Philip Fearnside no artigo “Destruição e Conservação da Floresta Amazônica”, o asfaltamento do trecho em Rondônia deveria ter ocorrido em paralelo com medidas de mitigação, como demarcação de terras indígenas e criação de áreas protegidas, mas as ações foram ignoradas. Em meados dos anos 1980, o governo contraiu um outro empréstimo internacional para estender o asfalto até o Acre, enfrentando resistência dos seringueiros liderados por Chico Mendes.
BR-163 (Cuiabá-Santarém)
A BR-163 também é obra da ditadura militar. Integrante do PIN, de Emílio Médici, foi inaugurada em 1976, durante o mandato de Ernesto Geisel. Os projetos de pavimentação já em governos democráticos prometiam sustentabilidade, o que não ocorreu.
O Avança Brasil (2000 – 2003), lançado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que comandou o país de 1995 a 2002, enfatizava que a obra teria impacto ambiental mínimo, mas somente o anúncio da pavimentação fez o desmatamento subir 500% no entorno. Na primeira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), iniciada em 2003, a BR-163 também aparecia em um plano de desenvolvimento sustentável , que não se sustentou.
Um estudo de caso produzido pelo Greenpeace e publicado em 2020 ressalta que o plano “BR-163 Sustentável” não foi eficaz devido à baixa aplicação de recursos no projeto, fiscalização insuficiente e falta de implementação adequada das áreas criadas para proteção, o que contribuiu para o avanço da agropecuária.
Em 2008, um levantamento de dados do INPE feito pelo site O Eco mostrava que as áreas de proteção criadas em volta da BR-163 estavam no topo entre aquelas com o maior número de focos de incêndio. Em 2012, era noticiado que o desmatamento disparava no trecho paraense da estrada mesmo em um momento que as taxas caíam no restante do estado.
Já um relatório do Greenpeace e da Rede Xingu+, grupo que reúne comunidades tradicionais e instituições da sociedade civil, mostrou que o desmatamento no entorno da rodovia aumentou 359% entre janeiro e abril de 2021 em comparação ao mesmo período do ano anterior.
BR-174 (Manaus-Boa Vista)
Construída entre 1967 e 1977, a BR-174 foi útil para que os militares massacrassem o povo índigena Waimiri-Atroari. As populações eram atacadas a tiros e facadas, degoladas e envenenadas por substâncias jogadas a partir de aeronaves. Estima-se que o número de habitantes Waimiri-Atroari era de 3.000 em 1968. Por volta de 1974, a população havia diminuído para menos de 1.000 pessoas, sem casos de epidemias. Em 1983, existiam apenas 332 indígenas na região, sendo 216 pessoas com menos de 20 anos de idade e crianças. Ao menos 10 aldeias desapareceram.
A rodovia também facilitou a mineração na região. Ainda durante a construção da via, empresas mineradoras conseguiram autorização para explorar as terras dos Waimiri-Atroari. Além disso, após a inauguração houve a invasão de uma mineradora que foi legitimada por órgãos do governo. A grilagem de terras foi outro problema gerado pela obra da ditadura. Na década de 1970, homens da elite de São Paulo invadiram terras, algumas ainda ocupadas por indígenas, com o suporte do governo do Amazonas.
Por fim, a BR-174 é apontada como um estopim para o desmatamento em Roraima . O impulso começou pela ocupação para plantar bananas e seguiu com exploração desordenada de madeira. (PRISCILA PACHECO)
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O post “Estradas na Amazônia são tapete vermelho para desmatadores” foi publicado em 08/01/2024 e pode ser visto originalmente na fonte OC | Observatório do Clima