Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
Quem acompanha esta coluna vai lembrar que ainda em setembro chamamos a atenção para uma trama de oito assassinatos e torturas que assombra o campo político da direita no estado de Goiás. Tudo começou com o assassinato com dois tiros, em 23 de junho de 2021, do representante comercial e militante político do União Brasil (UB) Fábio Alves Escobar Cavalcante, 38 anos, um dos coordenadores municipais da campanha do governador Ronaldo Caiado (UB) em 2018 na cidade de Anápolis, o terceiro município mais populoso de Goiás, com 398 mil habitantes.
Escobar havia participado ativamente da campanha de Caiado em 2018, mas rompeu com o governador eleito ainda em 2019. A partir daí, passou a fazer denúncias e divulgar vídeos contra o comando do União Brasil (ex-DEM) em Anápolis. Em diferentes vídeos, sugeriu que saberia de caixa dois – não apresentou provas sobre esse ponto. Afirmou que chegou a receber R$ 150 mil como suborno para ficar calado, mas em seguida devolveu o dinheiro. Também fez críticas ao governador. Em um dos vídeos, Escobar disse que Caiado não quis ouvi-lo a respeito das denúncias. “Governador, o senhor não me recebeu, não quis me escutar, sabendo que eu fiz parte do projeto do DEM, seis anos, acreditando no seu governo. […] Na denúncia que eu fiz, governador, o senhor ficou atrás da moita. Agora eu pergunto, o senhor vai continuar nela?”
Dois anos depois do assassinato de Escobar, em setembro passado a Polícia Civil de Goiânia (GO) prendeu dez policiais militares sob suspeita de terem matado sete pessoas, incluindo uma mulher grávida, que poderiam, de alguma forma, ajudar a esclarecer o assassinato de Escobar. A operação, batizada de Tesarac, focou nos executores do assassinato de Escobar. A indagação sobre o mandante ficou no ar. Pois bem, nos últimos dias o escândalo se aprofundou, jogando luzes sobre um homem próximo do círculo familiar do governador e seu primo, um influente policial federal aposentado.
Na última quinta-feira (16), o juiz da 1ª Vara Criminal de Anápolis Fernando Augusto Chacha de Rezende acolheu uma representação feita pela delegacia de Polícia Civil responsável pelo combate ao crime organizado, a Draco, e decretou a prisão preventiva de seis dos dez PMs presos, e também de um personagem-chave nas investigações: Carlos César Savastano Toledo, conhecido como Cacai, que vem a ser o ex-presidente do União Brasil em Anápolis, corresponsável pela campanha municipal de Caiado em 2018, ao lado de Escobar, e foco principal das denúncias do militante assassinado em 2021.
Em junho de 2019, Cacai foi nomeado diretor administrativo da Codego, a companhia estadual de desenvolvimento de Goiás. Naquele mesmo ano, ele recebeu a mais alta honraria concedida pela Assembleia Legislativa de Goiás, a medalha do Mérito Legislativo Pedro Ludovico Teixeira. Na tribuna, ele explicou que sua participação no governo fora uma decisão do próprio Caiado: “Atualmente, a convite do governador Ronaldo Caiado, exerço o cargo de diretor administrativo da Codego”.
Após a nomeação de Cacai, Escobar divulgou vídeos e deu declarações contra seu ex-aliado político. Os fatos posteriores deram sentido às alegações de Escobar. Em julho de 2020, Cacai foi preso em uma operação da Polícia Civil batizada de Negociatas, ao lado de um ex-prefeito de Caminaçu (GO) e um empresário de informática. A prisão de Cacai foi relaxada ao final do prazo legal. Dois dias depois da prisão, a Codego informou que Cacai pediu o desligamento da companhia.
Na ordem de prisão contra Cacai da última quinta-feira, o juiz disse que “verifica-se que o principal desafeto de Fábio seria Carlos César Savastano de Toledo”. “Apurou-se das provas colhidas nos autos […] em que o referido representado [Cacai] é investigado, diálogos travados por Carlos, os quais indicam sua insatisfação quanto às críticas veiculadas na internet por Fábio contra Carlos”, escreveu o magistrado.
O jornal O Popular, de Goiânia, divulgou na quinta-feira (16) duas reportagens da jornalista Fabiana Pulcineli com detalhes impressionantes sobre a investigação que envolve Cacai. A jornalista relatou que teve acesso à representação pela qual a Polícia Civil solicitou a prisão de Cacai – a Agência Pública depois também teve acesso ao documento e confirmou as informações.
Um ano antes da morte de Escobar, ainda durante a Operação Negociatas, a Polícia Civil havia apreendido o telefone celular de Cacai. A representação da Draco diz que o material foi analisado e que “podemos constatar diversos diálogos em que Carlos César demonstra descontentamento com as denúncias e críticas que a vítima Fábio Escobar estava divulgando contra Carlos César”.
“Precisa de uma ação enérgica nossa”
Foi após a análise dessas mensagens que surgiu o nome do policial federal aposentado Jorge Luiz Ramos Caiado, um primo do governador. Ele é descrito na imprensa de Goiás como uma pessoa “influente” na Secretaria de Segurança Pública de Goiás. Em janeiro passado, o governador indicou e depois revogou a concessão de medalhas para dez pessoas com sobrenome Caiado, incluindo o seu primo Jorge (em um grupo de cerca de 500 pessoas). A honraria seria concedida por reconhecimento e contribuições à segurança pública no estado.
De acordo com o relatório da polícia, em fevereiro de 2020, ou seja, um ano e quatro meses antes do assassinato de Escobar, Jorge Caiado recebeu uma mensagem de Cacai na qual ele dizia que Escobar naquele instante estava num evento em Anápolis “encarando todo mundo no palanque”. “O Ronaldo tá aqui… Rasmussen já tá de olho nele… Mas precisa de uma ação enérgica nossa”, escreveu Cacai. Não há registro de resposta de Caiado, mas, segundo a polícia, ocorreram “três ligações de WhatsApp na sequência, sendo que a segunda ligação, realizada, às 14:45:40, durou 2 minutos e 32 segundos. Não é possível saber o conteúdo da ligação”.
O Rasmussen citado por Cacai é o tenente-coronel da PM Franz Augusto Marlus Rasmussen Rodrigues, que na época era superintendente de Segurança Militar da Secretaria da Casa Civil. Cacai trocou mensagens com Rasmussen, em fevereiro de 2020, também sobre Escobar. Cacai enviou uma fotografia do ex-aliado em um evento político. “Quem é?… Tem o nome dele?”, indagou Rasmussen. Cacai respondeu: “Bandido, perigoso… fica xingando o Ronaldo nas redes sociais… Fábio Escobar… Jorge Caiado tem a ficha dele… Tá sabendo de tudo. Ficar de olho no final do evento, ele gosta de causar tumulto”.
De acordo com a polícia, Rasmussen sugeriu então “quebrar ele no cassete [sic]”. Ao que Cacai respondeu que “já passou da hora”.
Uma terceira conversa por mensagens trocadas por Cacai fala sobre Escobar, segundo a polícia. O então comandante da Rondas Ostensivas Táticas Metropolitana (Rotam), o coronel Benito Franco Santos, disse em fevereiro de 2020 a Cacai que Hrillner – referência ao tenente-coronel PM Hrillner Braga Ananias, então subcomandante do 3º Comando Regional da PM de Anápolis, falecido em setembro daquele ano por Covid-19 – “havia me falado para eu ficar tranquilo que ele resolveria”. “Falou inclusive que instalaria o aplicativo espião no cabra. Deve ter ocorrido algo.” Cacai responde com duas mensagens de áudio para Franco, cujo conteúdo não foi recuperado pela polícia.
“Mas se amanhã pela manhã não resolverem, não tiverem a solução da PP [prisão preventiva] para este cara, ou outra solução que laudável [sic], me informe por favor. […] Deixa comigo. Vamos atropelar se não resolverem amanhã”, escreveu Franco. Em 2022, o coronel Benito Franco foi candidato derrotado a deputado federal pelo partido de Bolsonaro, o PL, e acabou preso pela Polícia Federal em abril passado por participação nos atos golpistas de 8 de janeiro na Esplanada dos Ministérios.
“Só matando”; “É o jeito”
A polícia foi ouvir Franco sobre as mensagens que trocou com Cacai. O policial confirmou que o alvo da conversa era Escobar e que foi o “único assunto” que tratou com o interlocutor por telefone num período “de dez a 15 dias”. No vídeo de 11 minutos que registrou o depoimento, ao qual a Pública teve acesso, o coronel disse que “o Jorge Caiado me passou o telefone do Cacai em fevereiro de 2019”. “O Jorge me passava algumas demandas e tal, as legais a gente resolvia. Por exemplo, [alguém] roubou um carro, a gente recuperava na hora antes de fazer a ocorrência.”
Segundo Franco, Jorge disse que havia “um diretor do DEM em Anápolis” que estava sendo “ameaçado por um rapaz”. Franco disse que foi levando o assunto “com a barriga”, pois Cacai “não falava coisa com coisa”, não explicava “porque ele estava sendo ameaçado”. Ele ponderou, no depoimento à polícia, que a Rotam não poderia ser usada para “interesses difusos”.
Ainda em fevereiro de 2019, continuou Franco no depoimento à polícia, Cacai “apareceu lá na Rotam” acompanhado de Jorge Caiado e de um terceiro homem cujo nome não soube dizer. Segundo Franco, Cacai novamente relatou que “tinha medo de morrer”. Enfim, revelou que Escobar tinha trabalhado na campanha e “doado dinheiro para a campanha e estaria exigindo os benefícios pós-campanha”. Cacai teria dito que Escobar poderia ser pego “com arma, drogas, essas coisas”. O coronel indagou se Escobar tinha algum envolvimento passado com esses ilícitos, ao que Cacai negou, e por fim acrescentou o seguinte, nas palavras do PM: “Não tem isso aí, não. Mas pelo caso, pelo jeito que tá indo e ninguém consegue pegar e resolver, só matando”.
Franco teria indagado: “Senhor Carlos, o senhor quer isso?”. Cacai teria respondido: “É o jeito”.
O coronel perguntou se Cacai tinha oferecido algum cargo para Escobar, mas que seu ex-aliado não queria porque achava os cargos sugeridos “muito aquém do que ele quer”. O PM sugeriu que se buscasse um cargo, junto ao governador, para aplacar as cobranças de Escobar. Cacai disse, segundo o coronel, que “começou a citar o assunto” com um assessor do governador e “recebeu foi pedrada” porque “tinha que conhecer com quem andava primeiro para não ter problema” e que “o governador não tinha que saber disso, não, senão ia [sic] ficar como incompetentes”.
Franco teria dito a Cacai que ele “está movido pela emoção, está com medo”, que se recusou a cumprir qualquer “empreitada” e deu “um conselho” para deixar a ideia de lado. Cacai “não gostou muito” da resposta e foi embora. Ele deixou para trás, na mesa de Franco, duas folhas com dados de um “levantamento” sobre Escobar, como “carro, endereço, tudo, […] dados cadastrais”.
Perguntas sem resposta
É preciso reconhecer que a investigação da Polícia Civil avançou na solução do crime contra Escobar, mas ainda não esclarece muitos pontos. Como uma morte anunciada, ele foi morto mais de um ano depois da reunião dentro da Rotam. São muitas perguntas que ficam:
- As ameaças contra Escobar que constam das mensagens coletadas pela polícia em 2020 foram informadas a Fábio na época?
- O coronel Franco reportou a seus superiores a conversa que disse ter mantido com Cacai na presença de Jorge Caiado?
- A polícia tomou alguma providência para garantir a segurança de Escobar a partir de 2019 ou 2020?
- O Ministério Público tinha conhecimento desde 2020 das ameaças contidas no celular de Cacai?
- Qual programa “espião” teria sido usado contra Escobar?
Uma segunda reportagem de O Popular revelou que a ligação de Cacai com Caiado vai muito além da política. “A relação entre os dois é quase familiar. Cacai perdeu o pai, que era muito amigo do governador, e era tido como filho, juntamente com a irmã, Camila Savastano de Toledo, por Caiado. Camila, que é chefe do Serviço de Bem-Estar do Tribunal de Contas do Estado, é casada com o conselheiro do TCE-GO, Sebastião Tejota. Os pais de Cacai também eram padrinhos de Ronaldo Caiado Filho, que morreu no ano passado”, escreveu a jornalista Fabiana Pulcineli.
Apesar de “aliados do governador apontarem distanciamento entre ele e Cacai desde o caso Codego”, diz a reportagem , o ex-presidente do DEM de Anápolis manteve pelo menos duas audiências com o governador na sede do governo estadual, o Palácio das Esmeraldas, somente em 2023. Cacai teria comparecido na condição de representante de uma entidade privada chamada Instituto de Energia Limpa e Sustentável (Inel).
Até o fechamento deste texto, o mandado de prisão contra Cacai continuava pendente de cumprimento. A imprensa de Goiás relatou que ele estava em viagem ao Canadá. A defesa de Cacai disse aos jornalistas goianos que ele é inocente da acusação sobre a morte de Escobar, que está no exterior a trabalho e que irá se apresentar à polícia assim que regressar ao Brasil.
Em entrevista ao O Popular, Jorge Caiado negou ter conhecido qualquer movimento para o assassinato de Escobar. Disse que levou Cacai à Rotam para “orientação”, que ele é seu amigo e que procura ajudar “todos os amigos”. Afirmou não ter ouvido a declaração do “só matando”.
O escândalo que abala a direita em Goiás tem ficado restrito às divisas do estado. Além de O Popular, o site Goiás24horas, cujo criador, Cristiano Silva, já foi espancado, segundo ele, por policiais militares ligados à sede do governo do estado, tem feito uma cobertura crítica sobre o governo estadual desde 2019. Veículos como o G1 Goiás e a TV Anhanguera, afiliada da TV Globo, têm feito a cobertura correta do caso. A imprensa tradicional do eixo Rio-São Paulo, que manifestou um súbito (justificado e correto) interesse pela violência da PM da Bahia, governado pelo PT, ainda não trouxe ao país o tamanho da violência praticada por policiais militares de Goiás, governado pela direita, nesse episódio aterrador.
Fonte
O post “Escândalo da direita em Goiás inclui ordem de prisão contra ex-dirigente do União Brasil” foi publicado em 22/11/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública