O uso de óleo de soja nas refinarias da Petrobrás pressionará os preços do próprio óleo para uso alimentício
A direção da Petrobrás e seu atual presidente, Jean Paul Prates, têm declarado reiteradas vezes que a “transição energética justa” passa por processar óleo de soja nas refinarias da Petrobrás.
Prates afirma que “Será diferente do biodiesel. Vamos inserir 5% de óleo vegetal na origem [na produção] da REPAR (Refinaria Presidente Getúlio Vargas) e capacitar outras quatro refinarias até o fim do ano: RPBC (Refinaria Presidente Bernardes), Cubatão, Paulínia (REPLAN) e REDUC (Refinaria Duque de Caxias) …”. [1]
De acordo com o Diretor Tolmasquim, a REPAR já produz os novos combustíveis, com porcentual renovável entre 5% e 7%, o que deve se repetir na REPLAN e na REDUC. Em Cubatão (RPBC), a Petrobrás se prepara para trabalhar com óleo vegetal em 100% da operação. [2]
As declaradas intenções podem ser festejadas pelo cidadão incauto e que almeja uma diminuição do consumo dos combustíveis fósseis, visando um possível controle das alterações climáticas. No entanto, ele não sabe que a produção do óleo de soja não é 100% renovável, depende de insumos de origem fóssil, que não existe capacidade de se produzir óleo de soja em escala proporcional à demanda por combustíveis líquidos e que os custos para se produzir Diesel Renovável e BioQAV, a partir do óleo de soja, são muito maiores que os custos para produção do Diesel e do QAV do petróleo.
Evidente que os maiores custos de produção vão se refletir, direta e indiretamente, no bolso do consumidor e na economia nacional. Enquanto isso, gigantes multinacionais produtoras e comercializadoras de farelo e óleo de soja, serão beneficiadas com o aumento da demanda e da pressão inflacionária sobre o preço dos seus produtos.
Óleo de soja não é 100% renovável
Na análise do ciclo de vida da soja, pesquisadores da UNICAMP demonstraram que a produção agrícola da soja é a etapa que utiliza maior quantidade de recursos no ciclo de vida dos produtos, a etapa agrícola é aquela que requer mais atenção dos tomadores de decisões em políticas públicas para um ciclo de vida da soja mais sustentável. Os resultados mostram que a produção de biocombustíveis de soja convencional não é uma alternativa sustentável, sendo estimada uma renovabilidade de 31%.
A renovabilidade é uma forma de medir a sustentabilidade ou autonomia de um sistema. Considera-se que a longo prazo sistemas com maiores índices de renovabilidade têm maiores chances de sobrevivência. Tradicionalmente é calculada considerando-se somente os recursos renováveis da natureza.
A renovabilidade de 31% da produção convencional de óleo de soja para produzir farelo de soja e biocombustíveis significa que mais de dois terços da energia incorporada (emergia) usada vem de fontes não renováveis. Este valor mostra como a produção depende fortemente do uso de recursos não renováveis derivados dos combustíveis fósseis, tais como o combustível para tratores e caminhões do cultivo e colheita da soja, assim como para o transporte dos insumos e produtos, os fertilizantes e agrotóxicos para o cultivo da soja, os petroquímicos para extração do óleo de soja, além das fontes primárias não renováveis para suprimento da energia elétrica para todas as etapas da cadeia agroindustrial. [3]
Produção do óleo de soja tem escala muito menor que a demanda por combustíveis líquidos
A demanda de óleo diesel no Brasil, em 2022, foi de 63,2 milhões de metros cúbicos. Assumindo massa específica média de 840 kg/m³, temos a demanda anual de 53,1 milhões de toneladas.
A demanda de querosene de aviação (QAV) foi de 5,96 milhões de metros cúbicos. Com massa específica média de 800 kg/m³, temos 4,77 milhões de toneladas por ano. [4]
Assim, a demanda brasileira em 2022 da soma do Diesel e do QAV chega a 57,9 milhões de toneladas por ano.
Em 2022, foram produzidas 9,94 milhões de toneladas de óleo de soja no Brasil. O consumo nacional foi de 7,34 milhões de toneladas por ano. [5]
Considerando que o principal produto obtido através do hidrotratamento do óleo vegetal direto com o gasóleo proveniente da etapa de destilação atmosférica do petróleo é o diesel híbrido, o rendimento dessa conversão gira em torno de 80 a 85% de acordo com a temperatura de reação e catalisador utilizado. [6]
É razoável assumir que a conversão média do óleo de soja em Diesel Renovável e BioQAV seja de 82%, teríamos assim a necessidade de processar 70,6 milhões de toneladas de óleo de soja nas refinarias para substituir a demanda por Diesel e QAV do petróleo.
Essa demanda potencial é 7 vezes maior que a produção nacional e quase 10 vezes maior em relação ao consumo brasileiro de óleo de soja.
Para produzir uma tonelada de óleo de soja, é necessária área cultivada de 3,89 hectares. [7]
Seria necessário ocupar 274,6 milhões de novos hectares cultivados com soja para atender a essa nova demanda. Em 2016, a Embrapa Territorial calculou a área cultivada do País em 65,9 milhões de hectares. [8]
Como seria o Brasil se multiplicasse por 4,2 vezes sua área cultivada com o plantio de soja?
Seria o avanço sobre o território nacional correspondente à vegetação nativa preservada pelos agricultores no interior de seus imóveis rurais, ou sobre a floresta amazônica. [8]
Ainda que a intenção se limite a substituir 5% do Diesel e do QAV do petróleo, isso significaria mais 13,7 milhões de hectares plantados com soja, um aumento de 21% da área total cultivada no Brasil com a monocultura da soja.
Custo da produção do Diesel Renovável e do BioQAV, a partir do óleo de soja, é muito maior que o custo da produção do Diesel e do QAV do petróleo
O custo da produção do Diesel e do QAV do petróleo é composto pelo preço de equilíbrio da exploração e produção do petróleo, acrescido do custo para seu refino, além de uma margem para equilíbrio financeiro no segmento do refino, ponderados pelo rendimento volumétrico dos combustíveis em relação ao petróleo.
São comparados os custos da produção entre o Diesel e o Diesel Renovável, a diferença entre os custos para produção do QAV e do BioQAV é equivalente.
A Tabela 1 apresenta os custos estimados para a produção do Diesel
O preço de equilíbrio para Exploração e Produção de petróleo da Petrobrás é aquele no qual todos os custos incorridos para procura e produção do petróleo são recuperados. Segundo apresentação da direção da Petrobrás, a prospectiva para o preço de equilíbrio do E&P é de 20 US$ por barril. [9]
O custo do refino da Petrobrás foi obtido a partir dos resultados do 3º trimestre de 2023. [10]
A margem sobre o custo operacional do refino visa compensar outros custos do segmento do Refino para alcançar seu preço de equilíbrio. São custos relativos ao pagamento de juros, taxas, depreciação, amortização e outros. Foi adotada margem segura equivalente a 100% do custo operacional.
O rendimento volumétrico é a razão entre o volume específico do diesel e do petróleo, como o diesel é mais leve que o petróleo se produz um volume maior de diesel em relação ao volume refinado do petróleo.
O custo estimado da produção do Diesel é de 726,77 R$/m³, o equivalente a 23,58 US$/barril, considerando a cotação de 4,90 R$/US$.
A Tabela 2 apresenta a estimativa do custo da produção do Diesel Renovável
Tabela 2: Custos estimados para a produção do Diesel Renovável
A estimativa do custo da produção do Diesel Renovável não considerou investimentos para seu coprocessamento ou produção em unidades 100% dedicadas ao tratamento e processamento de óleo de soja. Em especial, no último caso, investimentos significativos são necessários e impactariam na elevação do custo de produção do Diesel Renovável.
O modelo de negócios da Petrobrás não prevê sua participação nas etapas de cultivo da soja, esmagamento do grão, extração do óleo de soja e produção do farelo. Sendo assim, será necessário assumir o custo de aquisição do óleo de soja com preço de mercado.
O preço do óleo de soja bruto, na primeira semana de novembro de 2023, variou entre R$ 5.200 e R$ 5.450 por tonelada (t). Assumiu-se o valor médio de 5.325 R$/t e a massa específica de 912,5 kg/m³ para obter o preço de 4.859 R$/m³. [11]
O custo do refino via coprocessamento do óleo de soja na Unidade de Hidrotratamento é maior que o custo do hidrotratamento do gasóleo do petróleo, principalmente pela maior demanda relativa de hidrogênio. Por outro lado, o custo pode ser minorado por não ser necessário processar o óleo de soja pelas unidades de destilação e coqueamento retardado.
Ponderando esses dois aspectos, é razoável assumir que o custo do refino do óleo de soja seja equivalente ao do refino do petróleo.
Conforme explicado anteriormente, assumiu-se margem sobre o custo do refino equivalente a 100% do seu custo.
O rendimento da conversão do óleo de soja em Diesel Renovável foi considerado de 82% e o rendimento volumétrico de 109%.
O custo estimado da produção do Diesel Renovável é de 5.619,57 R$/m³, o equivalente a 182,33 US$/barril, considerando a cotação de 4,90 R$/US$.
O custo da produção do Diesel Renovável é quase oito vezes maior que o custo de se produzir o Diesel do petróleo.
Alguém poderia argumentar que “esse é o custo da transição energética”. Não é verdade, esse é o custo de uma decisão, a de processar óleo de soja nas refinarias. Para tentar justificar essa decisão, ela é incluída numa política batizada de “transição energética” que decide processar óleo de soja nas refinarias existentes da Petrobrás, enquanto não se planeja construir novas refinarias e são exportados mais de 1,5 milhões de barris de petróleo cru do Brasil, o que representa quase metade da produção no país.
É preciso deixar claro que esse custo é desnecessário e é resultado de uma escolha política da direção da Petrobrás. Quem vai pagar pela elevação do custo de produção dos combustíveis, com o processamento de óleo de soja nas refinarias, será o consumidor brasileiro, direta e indiretamente. O aumento dos preços dos combustíveis reduz a competitividade da economia, diminui a produtividade do trabalho, traz inflação, aumenta a desindustrialização e prejudica o crescimento econômico nacional.
Por outro lado, os produtos industriais que deixam de ser produzidos no Brasil, continuam a ser consumidos sendo produzidos em outros países, como a China e outros países asiáticos, que tem uma matriz energética muito mais poluente que a brasileira (com uso intensivo de carvão que produz mais CO2 que o petróleo, quando se compara a mesma energia gerada). Dessa forma, a desejada redução das emissões não apenas não acontece, como pode até aumentar.
O uso de óleo de soja nas refinarias da Petrobrás pressionará os preços do próprio óleo para uso alimentício, além dos preços dos combustíveis do petróleo que recebam Diesel Renovável e BioQAV na mistura.
Conclusão
Nas refinarias, ao se substituir o gasóleo de petróleo pelo óleo de soja, no coprocessamento em unidades de hidrotratamento em plena carga, há necessidade de se reduzir o processamento do gasóleo e a produção total diminui.
Não existe infraestrutura para escoamento por dutos ou ferrovias para levar o óleo de soja das regiões onde são produzidos, interior do Centro Oeste e do Sul do país, para as refinarias da Petrobrás. Seria necessário usar o modal rodoviário, com muitas dezenas ou centenas de caminhões, movidos a diesel, transportando óleo de soja para as refinarias todos os dias.
Como foi demonstrado, o óleo de soja é cerca de 70% não renovável, a produção do óleo de soja tem escala muito menor que a demanda por combustíveis líquidos e o custo da produção do Diesel Renovável e do BioQAV, a partir do óleo de soja, é cerca de oito vezes maior que o custo da produção do Diesel e do QAV do petróleo.
A decisão de processar óleo de soja nas refinarias da Petrobrás é um péssimo negócio para a companhia que dispõe de excedente de petróleo cru que tem sido exportado. É também uma decisão de natureza política que prejudica a economia nacional e beneficia companhias estrangeiras produtoras e comercializadoras do complexo da soja.
Enquanto os brasileiros perdem ao se distrair com a falácia da “transição energética justa”, ganham os maiores produtores, comercializadores e processadores de soja no Brasil que incluem as seguintes megaempresas estrangeiras: ADM (EUA), Bunge (Holanda), Cargill (EUA), Louis Dreyfus (França) e Cofco (China). [12]
Felipe Coutinho é engenheiro químico e vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET)
Fonte: AEPET
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