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Estiquei o feriado da Proclamação da República para apresentar a capital do nosso país à minha neta, de 13 anos, que adorou conhecer as principais instituições da República apesar do calorão surreal que fazia na Praça dos Três Poderes.
A visita mais emocionante foi ao Supremo Tribunal Federal (STF). O tradicional tour, que percorre as instalações do edifício-obra de arte de Niemeyer, agora passa por “pontos de memória”, pequenas exposições que relembram o ataque dos golpistas de 8 de janeiro à sede da Suprema Corte, com vídeos, fotos e restos de objetos que não puderam ser recuperados.
A consternação do funcionário do cerimonial com a profanação do ambiente tão simbólico e a perda de riquezas culturais transparecia em sua voz, enquanto conduzia a visita, assim como o tom de orgulho ao relatar que durante um mês, enquanto se esperava a troca do enorme carpete amarelo do plenário, os ministros trabalharam nas instalações semidestruídas apesar do “terrível mau cheiro”, disse, que persistia desde o ataque.
Na frente do prédio projetado por Niemeyer, a escultura de 3 metros de altura que representa a Justiça como uma mulher sentada com uma espada nas mãos e uma venda nos olhos já está livre das pichações dos vândalos daquele domingo, explicou o funcionário do STF, que contou a história da escultura, inspirada em uma deusa grega, e brincou: “A venda nos olhos da Justiça representa a imparcialidade, nunca mais digam que a Justiça é cega”.
A frase voltou à minha cabeça, no dia seguinte, o feriado de 15 de novembro, quando fiquei sabendo da condenação por difamação da jornalista Schirlei Alves, do Intercept, por uma juíza da 5ª Vara Criminal de Florianópolis, que estipulou como pena um ano de prisão em regime aberto e o pagamento de R$ 400 mil em indenizações. O motivo: a publicação de uma reportagem, de grande repercussão, revelando as ofensas e humilhações sofridas pela influenciadora digital Mariana Ferrer durante uma audiência de instrução em que ela participava na condição de vítima.
Ferrer, que acusa o empresário André de Camargo Aranha de estuprá-la depois de dopada, em um clube de luxo de Florianópolis em 2018, foi pesadamente ofendida e humilhada pelo advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, em uma audiência de instrução do processo em julho de 2020. Isso sem que o advogado fosse impedido ou repreendido pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço, que não apenas encobriram os seguidos abusos, como absolveram o réu. Foi a vítima, que chegou a implorar ao juiz para que interrompesse as ofensas do advogado de defesa, quem pagou o pato.
Por fim, favorecendo o réu, promotor e juiz adotaram a estranha tese de que o empresário era inocente porque não tinha como ele saber que a vítima não estava em condições de consentir o ato sexual, apesar do depoimento de Mariana Ferrer de que o próprio empresário a havia drogado e das evidências apresentadas no processo. O empresário foi absolvido em setembro de 2020.
Dois meses depois, em novembro de 2020, a jornalista Schirlei Alves revelou trechos do vídeo da audiência, que comprovam os abusos do advogado de defesa e a ausência de censura de juiz ou promotor. Por causa de sua reportagem, foi criada uma lei, em 2022, batizada de Mariana Ferrer, que acrescenta à Lei de Abuso de Autoridade o crime de violência institucional contra vítimas e testemunhas de infrações e crimes violentos. A revitimização, como ocorreu com a influenciadora.
E não termina aí. No dia 14 passado, véspera da divulgação da condenação de Schirlei, o juiz Rudson Marcos recebeu uma advertência formal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por sua atuação nas audiências do processo de Mariana Ferrer. Por unanimidade, o conselho concluiu que ele agiu de forma negligente diante das agressões do advogado de defesa à vítima. Um entendimento que só corrobora a reportagem de Schirlei.
Promotor e juízes tentaram restringir a repercussão do caso colocando sob sigilo o processo contra a jornalista. “Não há nada ali que justifique o sigilo, mas é um jeito de tentar abafar a divulgação”, diz o advogado do Intercept, Rafael Fagundes, que defende Schirlei no processo criminal (o Intercept é réu apenas no processo civil, já que no Brasil empresas não respondem a processos criminais, como me explicou Fagundes).
Curiosamente, a mesma juíza não acolheu a ação do advogado de defesa contra Schirlei, também por infâmia e difamação, com as mesmas alegações do juiz e do promotor. Agiu de forma diferente em relação ao seu colega de magistratura e ao promotor de justiça, o que só reforça a suspeita de ter decidido contra a jornalista por corporativismo.
Segundo Fagundes, o argumento central da juíza para condenar a jornalista de forma absurdamente desproporcional é uma expressão usada por esta: “estupro culposo”, uma figura de linguagem que pretendia resumir as alegações da defesa e do promotor de que o empresário não sabia que o estupro era… um estupro. Por estar em sentido figurado, a expressão, que inexiste juridicamente, foi colocada entre aspas, levando a juíza a concluir que era uma falsa citação dos autos.
“Em nenhum momento, a reportagem diz que o juiz ou promotor usou essa expressão, foi um jeito que a jornalista encontrou para mostrar a ideia que estava por trás da decisão. Não é diferente de ‘orçamento secreto’, por exemplo, que também é uma expressão jornalística, não é oficial. Além disso, do jeito que se alegou, parece que toda a repercussão do caso se deu pelo uso dessa expressão – se não existisse ‘estupro culposo’, não haveria a pressão social que houve, o que é absurdo. É claramente uma tentativa de mudar a narrativa. Por fim, mesmo que se chegasse à conclusão de que Schirlei errou ao usar a expressão, isso não seria suficiente para condená-la. Na difamação é preciso haver a vontade de ofender, que a intenção seja a de atacar a honra de outra pessoa, ou seja, a Schirlei teria que ter escrito a reportagem com o objetivo de difamar o juiz e o promotor. Ora, isso não é verdade, a reportagem é totalmente fática”, explica.
A defesa de Schirlei vai recorrer à segunda instância, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mas, apesar das muitas falhas no processo, segundo o advogado, há poucas esperanças de vencer, já que esse é o “território” do juiz Rudson Marcos e da juíza que condenou a jornalista. Para piorar a situação, esse mesmo tribunal tem influência na decisão de o caso seguir ou não para a terceira instância, o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
É por isso, explica Fagundes, que é tão importante o caso ser discutido na esfera pública, inclusive como tentativa de intimidação da imprensa. “Tem que falar publicamente não apenas para que o tribunal de Santa Catarina se envergonhe da decisão da juíza, mas para mobilizar o STJ, se conseguirmos que chegue lá”, diz o advogado.
Desde as primeiras tentativas de calar a jornalista, organizações de jornalistas, como a Abraji, e de direitos humanos vêm articulando notas e ações em defesa de Schirlei e da liberdade de imprensa, inseparável da democracia e da justiça. Também manifestamos toda a nossa solidariedade à jornalista e ao Intercept.
Aos leitores, deixo também um voto de esperança, trazida de mais esse aniversário da República depois da tentativa de golpe: que a Justiça enxergue muito bem e puna também os vândalos do próprio Judiciário que depredam leis e direitos essenciais para o fortalecimento da nossa democracia, ainda tão frágil, neste país de privilégios.
Fonte
O post “Mariana Ferrer e Schirlei Alves: quando a Justiça obscurece os fatos” foi publicado em 18/11/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública