Faz quase um mês, numa terça-feira, 10 de outubro, a comissão de Previdência, Assistência Social, Infância e Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou um projeto asqueroso, desses de envergonhar qualquer pessoa minimamente inteligente. A comissão aprovou, por 12 votos a 5, uma proposta para proibir que pessoas do mesmo sexo possam se casar entre si.
O projeto original, na realidade, é de Clodovil, o primeiro deputado gay assumido. O que ele propôs em 2007 foi justamente o contrário do que foi aprovado mês passado: que pessoas do mesmo sexo possam se casar. Mas o relator, o deputado bolsonarista Pastor Eurico (PL-PE), alterou o projeto, estabelecendo que “nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar”.
No relatório do pastor deputado,
há aberrações como: o “homossexualismo” “separa a sexualidade do seu significado procriador”, “é contrário à lei natural”. Ou seja, se uma união não gera cria, nem deveria existir (tipo a minha: sou casada com um homem há 33 anos mas decidimos não ter filhos; logo, pela lógica do pastor, não temos uma união, nem somos uma família).
Parece que regredimos, sei lá, uns doze anos. O casamento homoafetivo já é uma realidade há muitos anos. Nem
é mais discussão . Ainda em 2011 o STF reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além do mais, ainda que um projeto retrógrado desses represente bem o Congresso ultraconservador que temos (em que a maior bancada é justamente uma bolsonarista repulsiva), ele não representa a maior parte da população brasileira, que não vê problema algum no casamento homoafetivo.
Em 2021, uma pesquisa internacional realizada em 27 países apontou que 54% dos entrevistados apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo (apenas dois países, Rússia e Malásia, tiveram maioria que se opõe). No Brasil, 55% apoia. A maioria do mundo (61%) apoia adoção por casais do mesmo sexo. No Brasil, 69% apoia. Mais ainda: 65% dos brasileiros são a favor de leis contra a discriminação de pessoas LGBT (o projeto aprovado é abertamente discriminatório).
Já uma pesquisa
do DataPoder no final de janeiro mostrou que 46% dos brasileiros são contra o casamento homoafetivo. A onda retrógrada fez que esse percentual subisse 7 pontos em 7 meses, 13 pontos em dois anos. 44% são a favor atualmente, o que configura empate técnico. A pesquisa também indicou a polarização de acordo com a ideologia política: entre quem aprovava o governo Lula (em janeiro, quando ainda estava começando), 61% era a favor do casamento gay (ainda assim, 27% contra). Entre quem desaprovava Lula, 60% era contra o casamento gay (35% a favor).
Uma pesquisa mais recente, de junho deste ano, revelou um placar mais apertado, mas, ainda assim, favorável ao casamento homoafetivo: 52% dos brasileiros aprovam, enquanto 40% são contra. O Brasil está na média mundial, embora o apoio em países como Argentina e México seja muito maior (67% e 62%, respectivamente). Essa pesquisa da
Pew Research Center mostra o contrário daquela da DataPoder — pela primeira vez nos últimos dez anos, a população brasileira é majoritariamente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Essa mesma pesquisa demonstra o peso das religiões: 56% dos católicos apoiam o casamento gay, mas esse apoio cai para apenas 32% entre os protestantes. Ainda outra curiosidade apontada pela pesquisa: apenas entre 1% e 2% dos casamentos realizados no Brasil são entre pessoas do mesmo sexo. E, dentro desse universo, 61% dos LGBTs que se casam são mulheres.
É em cima dessa porcentagem minúscula de gente do mesmo sexo que se casa que a comissão da Câmara quer tripudiar.
O projeto segue para a Comissão de Direitos Humanos, que tem ampla maioria de parlamentares progressistas, como
Erika Hilton (Psol-SP) e Daiana Santos (PCdoB-RS). Essa
comissão deve barrá-lo , só que ainda não sabe qual a estratégia mais eficaz. Se engavetá-lo, existe o risco de algum deputado reaça assumir o comando nos próximos anos e tentar aprová-lo novamente. Também há a possibilidade de ganhar no voto, como pontua Erika: “Se virmos que o projeto pode ser enterrado no voto, às vezes é bom. Isso passa um recado para a sociedade, mostra que a democracia se mantém de pé, e que a Câmara não é esse curral do fascismo e do ódio antidemocrático”.
Ainda que o projeto seja aprovado, o que é duvidoso, ele será barrado pelo STF, pois ele é evidentemente inconstitucional — simplesmente não se pode ter uma lei que discrimine uma parcela da população, que diga que alguns podem casar civilmente ou constituir união estável e outros não. Mesmo assim, temos que lutar e ficar de olho. A
Aliança Nacional LGBTI+ , por exemplo, promove a campanha “Nossas Famílias Existem” em protesto contra o projeto.
Eu sempre me perguntei por que existem héteros conservadores que são contra o casamento homoafetivo. Afinal, não tem nada a ver com eles. Não vai interferir em nada na vida deles se Adão e Evo constituírem
uma união estável . Opa, mas interfere sim. Se eles não são considerados um casal, os bens de um, no caso de morte, vão pros pais (muitos dos quais cortaram relações com o filho ao saberem que ele é gay). Mas, sinceramente, não sei se os héteros conservadores pensam em herança quando vociferam besteiras contra o casamento gay.
Encontrei na feminista americana Rebecca Solnit uma boa explicação para os conservadores se oporem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo — é porque ele pode ser de fato igualitário. E é disso que eles têm medo, que o casamento homoafetivo implique que o casamento entre homem e mulher (o tradicional) também deve ser igualitário, não mais com a mulher sendo vista como propriedade do marido, como foi durante séculos. “O casamento igualitário é uma ameaça sim: ele ameaça a desigualdade”, alega Solnit. É uma ameaça aos papéis tradicionais de gênero.
Mais uma prova de que LGBTfobia e misoginia andam sempre juntinhos.