“Quando começou a boiar direto, a gente já sabia: vai morrer muito peixe. O rio seca, eles (peixes) ficam aqui no lago, pensam que não vai secar e morrem. Queria que você visse. Desde o roelo (filhote de tambaqui), branquinha, aracu. Morrem os mais fracos.”
Nascido e criado na área ribeirinha do município de Manacapuru (AM), o pescador e barqueiro Arnoldo Paiva, de 43 anos, lamenta da beira da sua voadeira o tapete formado no Lago do Piranha com milhares de peixes mortos, durante três dias, como efeito da estiagem no rio Solimões no fim de setembro. O município é um dos 19 em estado de alerta no Amazonas. Outros 40 estão em situação de emergência em função da vazante.
A casa do barqueiro é uma das flutuantes da comunidade de pescadores na RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) do Piranha. Com a voadeira – uma canoa de alumínio com motor de popa –, transporta as crianças da comunidade para a escola. Por passar mais tempo no rio que na terra firme, aprendeu a entender os sinais do Solimões, nas cheias e vazantes, ano após ano.
“A seca está mais forte, mas se parar de descer [o nível do rio] em Manacapuru, não morre mais peixe. Mas se não parar…”. A sede urbana de Manacapuru fica a pouco mais de 100 km de Manaus. Cerca de uma hora de carro. Para chegar ao lago, o tempo gasto depende das condições do rio.
A morte de peixes no Piranha, que a experiência da convivência com o rio ajudou Paiva a prever, é um dos problemas que afetam o ambiente e as comunidades da calha do rio Solimões, um dos mais volumosos da bacia amazônica e que se aproxima da maior estiagem de sua história, potencializada por uma combinação entre o aquecimento anormal do oceano Atlântico e a ocorrência do El Niño . Dos 40 municípios do Amazonas em situação de emergência, 21 estão na calha do rio.
O El Niño, fenômeno climático de aquecimento das águas do Pacífico, ocorre em intervalos, não regulares, de quatro a sete anos. Um deles, em 2010, resultou na pior seca de rios já registrada na Amazônia, quando peixes também boiaram mortos pela insuficiência do volume de água na maior bacia hidrográfica do planeta.
Naquele ano, a comunidade do Lago do Piranha, cuja estrada de acesso é o rio, ficou isolada, o que está prestes a ocorrer novamente, caso a vazante não cesse nos próximos dias.
O tempo de deslocamento entre a cidade e a comunidade e o gasto de combustível aumentaram. No sábado, quando a Agência Pública esteve na região, o trajeto de Manacapuru até o lago durou quase quatro horas – o normal seria em torno de uma hora. Entre ir à cidade para fazer compras e voltar para a comunidade, a jornada está levando cerca de nove horas.
Desde a orla de Manacapuru, o desenho do Solimões interage com a paisagem. As palafitas de madeira guardam nas paredes as marcas da última cheia. Hoje, estão a cerca de 20 metros acima do nível da água.
Após 38 minutos de viagem contra a correnteza, é preciso diminuir a velocidade da embarcação. Quem faz o percurso com frequência, sabe que, para enfrentar os efeitos da seca, é o momento de usar o remo, único instrumento disponível para escapar de um possível encalhe. Mais uma hora, e o rio começa a mudar de cor: a água barrenta escurece e toma aparência de uma lama entre cinza escuro e preto.
O sedimento deixado pela seca do Solimões forma ilhas onde antes era vastidão de água. Em todas elas, o cheiro de peixe morto é forte. Diferentes espécies em decomposição são disputadas por urubus e jacarés. Gaivotas, mergulhões e garças, em grupos grandes, sobrevoam de perto o rio sem interesse nos peixes apodrecidos.
A região do lago é um berço ecológico escolhido por várias espécies de animais para reprodução. O odor de peixe podre só ameniza quando um outro problema se sobrepõe: a fumaça das queimadas que também pioraram no estado a partir de setembro.
Foi naquela altura da travessia que a reportagem cruzou com o barqueiro Paiva e família. No trecho de pior navegabilidade, eles avaliavam cada centímetro de água antes de avançar para evitar encalhe nos montes de sedimentos, que deixam o rio mais raso. Os ribeirinhos voltavam da cidade após comprar alimentos, água potável e vacinar o neto de cinco meses.
Na embarcação, a mulher de Paiva, a pescadora Francisca Pinheiro de Moraes, 42, vigia o neto que ora dorme, ora sorri numa cadeirinha de segurança de carro. Uma filha ajuda a mãe, a outra, com o remo, manobra as curvas para o pai. Um toldo ameniza o calor do sol quente sobre os passageiros.
Apesar dos cuidados, a voadeira encalhou em um trecho onde o rio – que é um dos maiores do mundo – chegou a cerca de meio metro de profundidade. No ponto mais seco e enlameado, a voadeira dos ribeirinhos precisou ser empurrada pela embarcação da reportagem para deixar o atoleiro. Os ribeirinhos seguiram o trajeto da rotina com a aparência no semblante de quem conhece o curso do rio, sem demonstrar aflição. A embarcação navegou lenta até entrar na comunidade, cerca de quatro horas após deixar o porto de Manacapuru.
Ao chegar em casa, Francisca desabafa: “Pra quem olha quando está cheio, não diz que seca assim. E ainda não está bem seco. Vai ficar só lama até Manacapuru e aí só passa de rabeta. Se secar mais, fica difícil para a gente. Por causa da criança. Se adoecer… A gente pede a Deus que não adoeça, porque aqui não chega socorro na seca.”
Com a cesta básica do mês e a expectativa de mais água potável chegar da cidade no dia seguinte, a preocupação da pescadora, além da saúde dos filhos e neto, passou a ser a nova ameaça de suspensão das aulas. O atraso escolar vem desde a pandemia. Era Paiva que deixava as apostilas em cada uma das casas para os alunos da comunidade, quando a escola fechou por dois longos períodos.
“Não queria que parasse porque atrasa muito. Ela (aponta para a filha de 16 anos, mãe da criança de cinco meses) quer fazer faculdade”, afirma a mãe.
Paiva também quer que os filhos avancem nos estudos e conta com orgulho que uma filha se formou em Manacapuru e é a única professora da comunidade. Diz que outro filho é bom de computador. Na casa, com energia elétrica há dois anos, os eletrodomésticos são geladeira, televisão e rádio. A internet costuma funcionar à noite.
“Para os meus filhos, eu acho que a cidade é melhor. Para quem trabalha na cidade, se estudar, se arranjar um bom trabalho, não pega sol. [Viver da] pescaria é complicado”, disse.
Ribeirinhos ficam sem água potável
O lago impede que falte proteína para os ribeirinhos. Mesmo com a seca, as famílias se alimentam de peixe. A estiagem e a falta de armazenamento adequado, porém, prejudicam o escoamento para venda. Nem todos têm geladeira. Nos varais das casas flutuantes, postas salgadas de peixes secam estendidas ao lado de roupas.
Na casa da pescadora Ingrid Ferreira Levi, de 30 anos, o fogão tinha panela com peixe, as crianças comiam biscoitos e a mesa estava arrumada com uma garrafa de café. Ela disse que foi ruim passar dias com fumaça dentro de casa e depois com o cheiro dos peixes podres. A dificuldade atual tem sido água potável. Há dias em que é inevitável tomar água do lago, diz a pescadora.
“A gente sempre traz água de Manacapuru, na cheia e na seca. Quando não tem, a gente toma do rio, põe o cloro. Meus vizinhos todos consomem água daqui. Nem todo mundo tem condições de comprar. Mas com a poluição dos peixes mortos ficou ruim”, disse.
Vender peixe piorou para os que não têm voadeira, relata Ingrid: “Quem vai de canoa para levar os peixes, gasta em torno de seis horas. Tanto na ida quanto na volta. É o caso da maioria. Os moradores que vendem peixe têm esse sufoco”.
A pescadora mora na comunidade desde que casou, mas não se arrepende de trocar a sede urbana de Manacapuru pelo Lago do Piranha. “Tem gente que pensa em ir para Manacapuru, mas de lá a gente já veio. Se você só tiver um real, lá você não come. Aqui, jogo a malhadeira bem aí”, diz apontando para a porta a menos de meio metro do rio. “Aqui você almoça e janta peixe. Tem só o barulho da rabeta. Mas não incomoda tanto quanto a poluição dos carros que tem na cidade.”
Na orla de Manacapuru, por volta de 17h30, com sol ainda quente, o casal de pescadores Francilene da Silva, de 37 anos, e Chaberlan Pereira dos Santos, de 42, chega à beira do rio em busca de lugar para atracar a pequena embarcação de madeira. No chão do barco, bodó, pacu e pescada. Pela frente, 25 minutos de subida até em casa numa lama escura. A cada passo, as pernas afundam, o que dificulta a caminhada.
Parte do trajeto é feito com os pés descalços. As sandálias vão nas mãos para serem preservadas da lama.
“Peixe tem muito, mas a gente não pode levar para a feira devido às dificuldades [provocadas pela seca]. A gente está tirando só para o alimento mesmo”, reclama Chaberlan, enquanto se prepara para fazer duas voltas: uma carregando o motor do barco e a outra uma saca com peixes, aparentando cerca de dez quilos. O pescador leva o motor para casa desde que o barco foi furtado no ano passado.
Enquanto Chaberlan caminha, outros moradores empurram na lama uma lancha para alcançar o rio. Francilene observa o marido e comenta que ele sente dores nas costas. Ela conta que, na cheia, faturam R$ 200 por dia com a pesca e, agora, conseguem apenas R$ 20 para comprar arroz e alguns alimentos para casa.
“A gente sai pra pescar um dia, outro não. Está ficando muito longe. Na cheia, a gente pesca e encosta lá em cima.”
A pescadora diz que a terra, na região onde mora, não é boa para plantar, e quando não tem peixe, comem salsicha com os três filhos, de 1 a 3 anos de idade. Seu olhar se volta para o rio e ela diz não entender porque ele seca tanto. “Só Deus.”
Em Manacapuru, segundo o censo de 2022, 3.257 pessoas vivem da pesca como atividade econômica e para subsistência. No site do Ministério da Pesca e Aquicultura, constam cadastros de 5.350 pessoas recebendo seguro defeso na cidade, entre dezembro de 2022 e março de 2023.
Em todo o estado, o último boletim da Defesa Civil do governo do Amazonas apontava 64.448 mil famílias atingidas pelos efeitos da estiagem.
Tragédia vira argumento político em defesa de asfaltamento da BR-319
Enquanto a estiagem, as queimadas e a fumaça agravam a condição de vida da população, os parlamentares do Amazonas usam os números da tragédia social e ambiental para defender o asfaltamento da BR-319 – rodovia que liga Manaus a Porto Velho construída durante a ditadura e que tem um trecho de mais de 400 km sem asfalto.
A obra é considerada por cientistas e socioambientalistas uma das maiores ameaças de devastação da Amazônia por dar acesso ao interflúvio Purus-Madeira, que está entre as áreas de floresta mais conservadas da Amazônia. A região também é conhecida como a nova fronteira de expansão do agronegócio. O chamado trecho do meio da BR-319, há décadas, apresenta problemas em relação ao licenciamento.
Ao defender a obra em suas redes sociais, o senador Omar Aziz (PSD) afirmou que a seca dos rios levará ao isolamento 4 milhões de pessoas e que a culpa seria do que ele chamou de “estreiteza política e vaidade” da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. “Esbarramos nessa política ambiental que parece não se preocupar com o ser humano”, afirmou.
O senador Eduardo Braga (MDB) disse que o desabastecimento ocorrerá em função da “inexistência da BR-319” e “da questão ambiental”. Nas redes sociais, comentou ainda que é difícil “segurar a revolta” diante do avanço da estiagem que atinge a população. O senador Plínio Valério (PSDB), que presidiu a CPI das ONGs, usou uma sessão da comissão para também atacar a ministra.
Nesta quarta-feira (4), quando uma comitiva de ministros acompanhou o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), em Manaus, para fazer anúncios de ações emergenciais na região, o deputado estadual e presidente do PT-AM, Sinésio Campos, cobrou de Marina Silva, com dedo em riste, a liberação da obra da BR-319.
Questionada pela imprensa sobre as cobranças e seu posicionamento sobre a obra, Marina disse que o “licenciamento deve responder a critérios de viabilidade econômica, social e ambiental”.
Ela lembrou que no ano passado o governo Bolsonaro chegou a emitir uma licença prévia para a obra. “O presidente Lula encaminhou no PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para que estudos sejam feitos [sobre a obra]. E foi criado o GT. O Ibama não dificulta nem facilita, ele faz uma análise técnica”, disse.
A ministra frisou, ainda, que se passaram 15 anos entre ela sair do governo, em 2008, e voltar, em 2023. “Se fosse fácil fazer a BR, ela teria sido feita nesses 15 anos. Existem licenças para recuperação de trechos, uma desde 2007, e nada foi feito”, afirmou.
A pressão dos políticos locais vêm crescendo nos últimos tempos. Há algumas semanas, a bancada do Amazonas boicotou uma reunião que teria a participação de Marina sobre a estiagem e prestigiou uma com Renan Filho, titular do Ministério dos Transportes, para discutir a obra na rodovia.
Omar Aziz e Eduardo Braga fazem parte de um grupo político que se reveza no poder no Amazonas há quase 40 anos. Os três mandatos dos dois como governadores do Amazonas somam doze anos. Aziz foi vice-governador nos dois mandatos de Braga.
O petista Sinésio Campos foi aliado dos governos dos dois senadores e hoje é base do governo do bolsonarista Wilson Lima. Apagado por quatro anos no Senado, Plínio Valério busca holofotes diante do eleitorado que deu 62% de votos para Bolsonaro em 2022, em Manaus, e ataca direitos indígenas no estado com maior população de povos originários do País.
Intervenções potencializam calamidades, alerta cientista
O doutor em física ambiental Marcelo Rodrigues dos Anjos, que é professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade do Sudoeste da Amazônia, afirma que os governantes falham ao incentivar intervenções no meio ambiente que potencializam as calamidades. Outro erro, para ele, é os governantes ignorarem os alertas científicos sobre os impactos dos fenômenos climáticos na região.
Os efeitos do El Niño não são novidade para a ciência, diz. “Assusta, mas é muito esperado. A pesquisa sabe que isso vai acontecer. Quando você altera o sistema natural, evita uma atenuação da severidade desses fenômenos climáticos. A falta de políticas públicas, no sentido de garantir os serviços ecológicos, aumenta a magnitude dos efeitos”.
O pesquisador explica que o desmatamento, o garimpo, a agricultura, a pecuária extensiva e a construção de rodovias levam os materiais para dentro dos rios. “Quando tira a floresta, a gente promove grandes erosivos. Eles carreiam aquele material do solo para dentro do rio. Isso faz com que o rio se torne mais raso, o que também acentua a possibilidade de haver um aquecimento maior dessas águas. É o que estamos vendo no Madeira, no Solimões e em outros rios de água barrenta”
Anjos critica que a sociedade reaja como se não houvesse alternativas para evitar danos graves à população e a biodiversidade em eventos climáticos como o El Niño.
“É preciso pensar em estratégias que mitiguem esses eventos de ordem global. Não dá para esperar acontecer e ficar se lamentando. Não é a primeira vez que estamos passando por um El Niño. A gente precisa entender que eventos de mudanças na ordem global terão efeitos severos em determinadas regiões. Então, é preciso se planejar para que a gente não sofra tanto e nem a biodiversidade”, defende.
Fonte
O post “‘Aqui não chega socorro na seca’, relatam comunidades em lago no Amazonas” foi publicado em 06/10/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública