Hoje estreia no Brasil O Som da Liberdade (veja o trailer aqui ), baseado na história real (ou quase) de Tim Ballard, um ex-agente do governo americano que foi pra Colômbia resgatar crianças hondurenhas que foram sequestradas pelo tráfico sexual infantil.
O trailer não parece ruim. O problema é que Som virou o filme de cabeceira da extrema-direita. Figuras proeminentes do extremismo como Trump, Elon Musk e Mel Gibson apoiaram o filme publicamente. Aqui no Brasil, é certeza que bolsonaristas vão adorar e divulgar. Afinal, a produção mais ou menos propagandeia as mentiras que os reaças tanto gostam — de que há uma rede internacional de pedófilos (de esquerda) e que só Trump pode combatê-la. Pois é, Trump, aquele que foi amigão do Jeffrey Epstein e condenado por estupro. Sem falar que durante o seu governo, 545 crianças , filhas de imigrantes ilegais, foram separadas de seus pais. Muitas delas se perderam pra sempre.
Quando Hillary Clinton perdeu para Trump em 2016, uma das maiores teorias da conspiração da extrema-direita foi que assessores da democrata escravizavam, torturavam, estupravam e até comiam crianças numa pizzaria em Washington DC. A mentira se espalhou tanto que resultou num lunático invadindo a pizzaria em questão e disparando um rifle lá dentro para abrir um cadeado.
Mas talvez o pizzagate nem seja a mais bizarra das teorias conspiratórias. Uma loja de móveis nos EUA também virou alvo. Começou quando um ativista da QAnon apontou que armários para escritório vendidos pela loja Wayfair tinham nomes de meninas, logo, obviamente eram usados por uma rede de prostituição infantil para transportar garotas desaparecidas com aqueles nomes (sério: quão lobotomizado você tem que estar pra acreditar numa coisa dessas?!).
Assim que uma nova teoria conspiratória é lançada, ela não para mais. Todos que acreditam na teoria absurda se empenham para ampliá-la. Então uns caras da QAnon descobriram que se você digita alguns produtos da Wayfair num site de buscas russo chamado Yandex, aparecem imagens de mulheres jovens. Até era verdade, mas o Yandex gerava os mesmos resultados para várias outras buscas (essa falha foi corrigida).
O Som da Liberdade não trata diretamente dessas teorias conspiratórias, mas o fato do filme ter sido abraçado pela extrema-direita é sintomático. O ex-agente Ballard, que inspirou a história, já divulgou a barbaridade sobre o Wayfair, e o astro do filme, Jim Caviezel (que interpretou o protagonista na Paixão de Cristo), não só é idolatrado pela direita como é figurinha carimbada no circuito de Steve Bannon para compartilhar teorias como a que a elite pega um hormônio do sangue das crianças para criar uma droga que, além de ser dez vezes mais potente que a heroína, também é rejuvenescedora.
Na realidade, essa teoria do hormônio é uma teoria antissemita antiga que prega que judeus ricos , para ficarem jovens para sempre, bebem o sangue de crianças que são mortas em rituais satânicos (sabe vampiros? Mesma coisa).
Teresa Huizar, diretora de uma organização de combate ao tráfico infantil há quinze anos, explica que a maior parte das crianças traficadas no mundo não são sequestradas de espaços públicos por desconhecidos como o filme mostra, mas vendidas por familiares ou “namorados”, ou seja, por gente que a vítima conhece e confia. Há vários adolescentes traficados (67% dos menores traficados têm entre 15 e 17 anos) após serem expulsos de suas casas por sua orientação sexual ou por sua identidade de gênero e passarem a trocar sexo por comida.
Um dos problemas em fazer um filme com narrativas sensacionalistas é espalhar lendas urbanas. Jean Bruggeman, diretora de uma outra organização anti-tráfico, lembra que ajudar sobreviventes é muito mais difícil e demorado que simplesmente realizar uma batida policial. Muitas das vítimas de tráfico nos EUA, por exemplo, frequentam escolas, e uma das tarefas da organização de Jean é treinar professores para que possam identificar sinais de que alguma aluna está sendo traficada. Quando passamos a crer em lendas urbanas, casos menos flagrantemente violentos de tráfico e estupro acabam levando júris a não condenar acusados. O júri espera algo como Taken (Busca Implacável, grande sucesso de 2006 com Liam Neeson), e, ao se deparar com uma situação mais nuançada, absolve traficantes.
Huizar espera que espectadores comovidos com O Som da Liberdade procurem organizações anti-tráfico sérias e confiáveis em vez de embarcar em teorias da conspiração do QAnon. “Você não precisa inventar teorias sobre abuso sexual infantil”, diz ela. “Tem muita coisa de verdade que não inclui divulgar boatos horríveis sobre loja de móveis ou pizzarias”.
Uma das narrativas fantasiosas da extrema-direita é que a esquerda corrompe as crianças (seja pela mídia, pela doutrinação nas escolas, por hormônios colocados na água), quando não as mata e estupra. E a direita está aí para salvar as criancinhas. Misóginos de chans adoram acreditar nessas besteiras. O pior é que muitos deles são pedófilos. Esses são justamente os que mais vão enxergar O Som da Liberdade como um documentário, não como uma obra de ficção.
O post “O SOM DAS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO” foi publicado em 21/09/2023 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva