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Em outubro de 2015, o historiador, escritor e cientista político José Murilo de Carvalho, morto neste domingo (13) aos 83 anos de idade, vislumbrou o ovo da serpente. Em um artigo intitulado “Luz amarela”, publicado no jornal O Globo, Carvalho chamou atenção dos leitores para um discurso proferido por um obscuro (para o grosso da opinião pública) general do Exército chamado Hamilton Mourão , então comandante militar do Sul. No Dia do Soldado daquele ano, em agosto, Mourão havia “complementado” o texto da ordem do então comandante do Exército Enzo Peri e diante da tropa em Porto Alegre afirmado que no Brasil ainda havia muitos inimigos internos, mas que os militares não estariam desprevenidos. “Eles que venham”, desafiou Mourão.
O discurso conspiratório e a bravata de Mourão foram repercutidos na época pela mídia, mas Carvalho, do alto de sua experiência acadêmica, considerado um dos principais intérpretes e intelectuais do Brasil, lembrou que Mourão não havia sofrido nenhuma punição dos seus superiores. Em setembro, Mourão voltou a fazer ataques políticos, dessa vez dirigidos à então presidente Dilma Rousseff .
Desde 2 de outubro, o ministro da Defesa era o ex-comunista Aldo Rebelo, hoje um ativo disseminador de fake news contra jornalistas e organizações ambientalistas e palestrante para ruralistas e garimpeiros. Antes, o cargo fora ocupado por Jaques Wagner (PT-BA).
“Que eu saiba, não houve até agora qualquer reação de seus superiores militares, do ministro da Defesa ou da chefe suprema das Forças Armadas (artigo 142 da Constituição), a presidente da República. A repercussão na mídia não fez justiça à importância do tema”, cobrou o articulista.
Carvalho disse que o comportamento de Mourão era um divisor de águas. “As manifestações públicas do general Mourão mudam o cenário. Podem ser sintoma do surgimento do único perigo real para nossas instituições, o envolvimento político das Forças Armadas, um retrocesso de 30 anos. E o general ainda tinha que ter o mesmo nome daquele outro que, em 31 de março de 1964, colocou suas tropas nas ruas, em Juiz de Fora, deslanchando o golpe civil-militar de 1964. Está acesa a luz amarela.”
Carvalho fazia referência ao general Olympio Mourão Filho (1900-1972), um dos golpistas de 1964, sem parentesco com Hamilton. Certamente por coincidência, Mourão foi exonerado do comando do Sul no mesmo dia do artigo de Carvalho, após o Ministério da Defesa ter sido cobrado por um senador do PSDB, Aloysio Nunes, que então comandava a comissão do Senado para os assuntos militares.
Dono de vasta produção acadêmica, que inclui 19 livros, Carvalho se notabilizou pelos estudos sobre Império, Primeira República e formação da cidadania. Com a ascensão da extrema direita, contudo, ele não se furtou a observar, criticar e condenar o comportamento de militares e de Jair Bolsonaro (a quem, numa entrevista a um jornal de Portugal, chamou de “um bronco, totalmente inculto”). Em 2019, relançou um livro de 2005, Forças Armadas e política no Brasil.
Em maio de 2020, no segundo ano do seu mandato, Bolsonaro marcava dois meses de sua catastrófica resposta à pandemia da Covid-19. Paralelamente a esse desastre como líder político – foi um instigador da divisão nacional quando a união era mais necessária do que nunca –, Bolsonaro e alguns de seus principais auxiliares, como o ministro Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), aumentaram os ataques contra o Supremo Tribunal Federal (STF), a imprensa e outras instituições.
Em 22 de maio, Heleno distorceu o conteúdo de uma decisão protocolar do então ministro do STF Celso de Mello, que havia recebido um pedido de partidos de oposição ao governo (PDT, PSDB e PV) para apreensão dos telefones celulares de Bolsonaro e de seu filho Carlos. O ministro do STF apenas solicitou a opinião da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o pedido dos partidos, uma medida de praxe.
Isso bastou para que Heleno soltasse uma nota ameaçadora contra o STF, ao dizer que “alertas às autoridades constituídas que tal atitude [apreensão dos telefones] é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. A nota de Heleno foi apoiada por outros militares, como o então ministro da Defesa Azevedo e Silva.
Meses depois, em agosto, a revista Piauí publicou uma reportagem baseada em apuração “em off”, isto é, sem que os entrevistados fossem identificados, na qual afirmou que Bolsonaro, naquele mesmo dia 22 de maio, teria dito a seus auxiliares: “Vou intervir”. “Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros”, explicou a impressionante reportagem. O Murilo de Carvalho de 2015 já tinha alertado.
Para tentar compreender o momento histórico, procurei em maio de 2020, por telefone (muitos jornalistas o entrevistaram ao longo de décadas), o historiador, a quem eu havia conhecido pessoalmente em 2015 durante o 3º Festival de História de Diamantina (MG), no qual ele fez uma palestra e lançou um livro, Guerra literária: panfletos da Independência (Editora UFMG), produzido em parceria com Lúcia Bastos e Marcelo Basille. Como outros convidados do festival, ficamos hospedados no mesmo hotel. Em um dos cafés da manhã, pude conhecer melhor seu jeito tranquilo e atencioso, com observações perspicazes sobre o cenário político.
Em 2020, eu esperava juntar o depoimento de Carvalho com os de mais dois historiadores a fim de compor uma reportagem sobre o cenário dentro das Forças Armadas. Por uma série de imprevistos, a reportagem acabou não sendo possível e as falas de Carvalho, que foram respondidas por e-mail no início de junho, permaneceram inéditas. Três anos depois, compartilho-as aqui, lamentando a grande falta que José Murilo de Carvalho fará ao país.
O sr. está preocupado sobre a estabilidade das Forças Armadas no governo Bolsonaro?
Estou preocupado com a estabilidade da democracia.
O país corre o risco de uma quartelada?
O risco existe, ainda distante, mas crescendo. As Forças Armadas podem alegar que está havendo invasão do Poder do Executivo pelo Judiciário e intervir para, segundo a Constituição, garantir os poderes constitucionais.
O ministro do GSI, Augusto Heleno, soltou há uma semana uma nota com ameaças ao Poder Judiciário. A nota depois foi apoiada pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e pelos três clubes de oficiais da reserva e reformados. Os militares não sabem conviver com as decisões do Poder Judiciário, em especial do Supremo? Em caso positivo, de onde vem essa dificuldade de lidar com o Judiciário?
Foi a mais clara ameaça de intervenção militar até agora. Trata-se de uma visão das Forças Armadas como acima dos poderes constitucionais. Não sei avaliar o impacto no oficialato da ativa. Mas o simples fato de que militares no governo estejam agindo com a psicologia da caserna já é um mau sinal.
É crescente a convicção, entre os ministros militares, de que o Congresso, o STF e a imprensa “atrapalham” o governo Bolsonaro e de que o presidente precisa “ter liberdade para trabalhar”. Os militares não conseguem ou não aprenderam até hoje a conviver com a democracia?
As Forças Armadas, como organização, não são democráticas. Baseiam-se em hierarquia e disciplina. No poder, tentam impor esses valores ao mundo civil.
Que tipo de instrumentos ou ferramentas ou canais de diálogo a sociedade civil e o Congresso Nacional precisam ou devem criar para estabelecer um diálogo franco e aberto com os militares sobre a democracia?
Esse diálogo sempre foi importante, mas nunca houve. O período da ditadura criou um divórcio entre as Forças Armadas e vários setores da população, como jornalistas, artistas, intelectuais. Os 35 anos de democracia não foram capazes de acabar com as desconfianças mútuas.
Fonte
O post “José Murilo de Carvalho (1939-2023): “As Forças Armadas não são democráticas”” foi publicado em 16/08/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública