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Há mais de seis meses o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) da gestão Flávio Dino promove uma blindagem sobre atos do governo de Jair Bolsonaro na pasta dos ex-ministros Sergio Moro, hoje senador, André Mendonça, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e Anderson Torres, que chegou a ficar preso por quatro meses no inquérito que apura a tentativa de golpe em 8 de janeiro, em Brasília.
A história da proteção ministerial começa em 3 de janeiro, logo depois das posses de Lula na Presidência da República e de Flávio Dino no ministério. Naquele dia, portanto há quase sete meses, a Agência Pública solicitou acesso, via Lei de Acesso à Informação (LAI), a uma listagem de diversos relatórios ou documentos “de inteligência” produzidos pelo MJSP de 2019 a 2022. Aqui vale lembrar que, em junho de 2020, o UOL revelou a confecção, no MJSP, de dossiês sobre policiais e professores antifascistas. Essa prática foi depois condenada pela ampla maioria dos ministros do STF em sessão plenária. Em 2023, a Pública revelou outro relatório do MJSP que informava a desnutrição e as doenças que vitimavam indígenas na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.
Eu já havia feito pedidos semelhantes ao MJSP ao longo do governo Bolsonaro, todos repetidamente negados. Em janeiro mudou o governo, mas a negativa se manteve com os mesmos argumentos, incluindo parágrafos quase que inteiramente copiados pela gestão Dino. Um dos truques mais frequentes usados ao longo do governo Bolsonaro e repetidos pela gestão Dino foi dizer que os documentos não poderiam ser acessados porque a questão é regulada não pela LAI, mas pela lei de 1999 que criou o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). É uma falsidade várias vezes explicada nos recursos da Pública. A lei que criou a Abin não pode ser superior à LAI no tema da transparência. A lei de 1999, por exemplo, nunca estipulou prazo para classificação ou desclassificação de documentos. Se aquela lei valesse mais que a LAI, estaria criado o sigilo eterno, tática, aliás, usada e abusada no governo Bolsonaro e que Lula, durante a campanha eleitoral de 2022, prometeu combater.
Nos recursos a essas negativas da gestão Dino, a Pública explicou que não existe uma lei de acesso especial e exclusiva para a atividade de inteligência, “a lei é única”, do contrário, “como pretende o MJ nas suas respostas, estará configurado o sigilo eterno, quando documentos são confeccionados livremente sem qualquer grau de sigilo, ou seja, sem classificação e por conseguinte sem prazo de desclassificação, e assim jamais chegarão ao conhecimento público”.
Contudo, indiferente a esse e a vários outros argumentos levantados pela Pública, em fevereiro passado o então ministro interino da Justiça, Ricardo Cappelli, negou o recurso sob a alegação de que “em temas afetos à segurança pública, tais como: criminalidade violenta, organizações criminosas, corrupção, lavagem de dinheiro, práticas ilícitas no espaço cibernético, entre outros, que integram o escopo de observação e análise da atividade de inteligência, classificam-se como hipóteses legais de sigilo e segredo de justiça”.
O argumento do ministro interino equipara a atividade de inteligência ao sistema judicial, uma distorção sob vários pontos de vista, uma confusão gritante entre conceitos e atribuições de dois Poderes distintos e uma manobra que nem mesmo a ditadura militar ousou fazer com seu famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI). Hoje a base remanescente de dados do SNI (outra parte foi destruída pela ditadura) é totalmente aberta à consulta pública no Arquivo Nacional. Os papéis do SNI nunca foram protegidos com a alegação de “segredo de Justiça”.
A decisão do ministro interino é datada de 1º de fevereiro. A Pública recorreu à Controladoria-Geral da União (CGU), que fez uma ampla análise de toda a questão e deu uma decisão inequívoca a favor do nosso pedido. Em 4 de abril, a secretária nacional de Acesso à Informação da CGU, Ana Túlia de Macedo, deu provimento ao nosso recurso e determinou que, no prazo de 30 dias, o MJSP disponibilizasse a resposta ao pedido das informações solicitadas sobre o período que vai de janeiro de 2019 a dezembro de 2022. Ela ponderou apenas que poderia haver supressão, com tarjamento, de “eventuais informações pessoais existentes na documentação que possam afetar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”.
Conforme a decisão da CGU, a “informação ou a comprovação de entrega” do MJSP deveria ser “postada diretamente na plataforma Fala.BR, na aba ‘Cumprimento de Decisão’, no prazo acima mencionado”, isto é, no máximo em 30 dias.
Em sua decisão, a secretária nacional de Acesso à Informação acompanhou um parecer produzido pelo auditor federal de finanças e controle Paulo Cesar Miranda Bruno, que por sua vez recebeu o “de acordo” do coordenador-geral de Recursos de Acesso à Informação, André Ferreira Fontelles de Lima, e da diretora de Recursos de Acesso à Informação, Fernanda Montenegro Calado. Ou seja, alguns dos principais nomes da CGU no tema da transparência concordaram e acompanharam a posição da Pública.
“A classificação de determinada informação pública constitui-se em ato administrativo de caráter decisório — consubstanciado na produção de documento chamado ‘Termo de Classificação da Informação’, TCI —, que restringe o acesso a essa informação por tempo determinado. O TCI, no entanto, é documento ostensivo, ou seja, público sobre o qual não recai nenhum tipo de sigilo, exceto no campo onde contam as razões para a classificação do documento. […] Em relação ao caso em tela, o MJSP não alegou que as informações solicitadas estavam classificadas em grau de sigilo, o que inviabiliza a imposição de restrição de acesso às informações e documentos de atividades de inteligência”, explicou o parecer do auditor Miranda Bruno.
Porém, os 30 dias se passaram e novamente nada aconteceu. O MJSP jamais fez contato ou apresentou qualquer explicação ao requerente. Encerrado o prazo de um mês estabelecido pela CGU, a Pública fez a denúncia formal sobre o descumprimento da decisão. Um órgão do governo desrespeita a determinação de outro órgão do mesmo governo. Novamente, nenhuma resposta veio do MJSP.
(Aliás, estranhamente, tanto o parecer da CGU, de n° 99/2023/CGRAI/OGU/CGU, quanto a decisão a ele relacionada nos últimos dias não estão mais disponíveis no sistema da LAI na internet; a Pública possui a cópia desse documento de sete páginas e pedirá explicações sobre isso.)
No dia 19 de junho, a Pública abriu um novo pedido via LAI, agora direcionado à CGU. Explicamos que o MJSP olimpicamente ignorou a decisão da CGU, nada fez para cumpri-la. Em resposta, na semana passada a CGU informou que no dia 23 de junho — portanto, “coincidentemente”, quatro dias depois do nosso novo protocolo na CGU —, o MJSP “solicitou pedido de revisão de decisão ao Recurso em 3ª instância”. Com isso, disse a CGU, “se identificou a necessidade de conferir o efeito suspensivo do prazo para o cumprimento de decisão, conforme previsto no art. 61, parágrafo único, da Lei nº 9.784/1999, até que haja a decisão definitiva sobre o caso, a fim de que se proceda à análise do pedido de reconsideração”.
A CGU nos pediu “a gentileza de aguardar o deslinde da análise do pedido de revisão e tão logo seja concluído o senhor será notificado, por e-mail ou pela Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação”. A CGU afirmou que, “após a decisão de provimento ao recurso em sede de 3ª instância, inicia-se o processo de monitoramento de cumprimento de decisão, independente de registro de denúncia registrada na Plataforma Fala.BR. Esse processo envolve acompanhamento, análise das informações disponibilizadas ou não, e se necessário, realização de novas tratativas com o órgão, para o efetivo cumprimento da decisão. O monitoramento em geral ocorre em até 90 dias, a partir do prazo final para cumprimento da decisão, podendo variar, a depender das características do caso”.
Como vemos, toda essa longa tramitação de quase sete meses mobilizou atenção e trabalho de vários servidores públicos, ou seja, recursos públicos que facilmente teriam sido economizados com o simples cumprimento do pedido feito ainda em janeiro. O pedido, é bom lembrar, ainda nem tratou do conteúdo dos documentos, tão somente pediu acesso à listagem dos documentos, discriminados por assunto.
O comportamento do MJSP impressiona pela falta de transparência e também pela proteção a papéis que, em tese, podem comprometer ou gerar incômodo ao antigo governo. Por quê? Com qual objetivo? O que tanto esconde o ministério de Flávio Dino?
Fonte
O post “Como o Ministério da Justiça blinda as gestões de Moro, Mendonça e Torres” foi publicado em 19/07/2023 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Agência Pública