Os negociadores dos 196 países presentes à conferência do clima de Bonn, encerrada na última quinta-feira (15), pareciam estar com tempo sobrando. Enquanto o mundo real pega fogo, com ondas de calor no México, incêndios em todas as províncias do Canadá, nuvens de fumaça transformando Nova York num cenário de filme distópico e o norte da Europa enfrentando secas e calor antes mesmo de o verão começar, o evento preparatório para a COP28 quase chegou ao fim sem ao menos adotar uma agenda de trabalho, o que poria 12 dias de negociações a perder. O fracasso completo foi evitado, mas a conferência mandou um sinal muito ruim para a conferência de Dubai, no fim deste ano. Presidida por um CEO da indústria do petróleo, que passou por Bonn na semana passada sem mover uma palha para destravar a negociação, a COP já é cercada por desconfianças e incertezas. Nesta newsletter, contamos sobre os impasses entre países desenvolvidos e em desenvolvimento que marcaram as negociações em Bonn e resumimos o que, afinal, foi encaminhado por lá. Falamos também sobre os desastres climáticos que não dão trégua, escancarando uma urgência que parece não ter sido captada por quem tem o poder de decidir sobre o futuro do planeta.
Boa leitura.
Imagina na COP
Conferência preparatória para a COP28 é marcada por impasse político e sinaliza limite da ONU para lidar com crise do clima
A SB58, reunião preparatória para a COP28 realizada em Bonn, pode ser resumida em duas palavras: treta e caos. O encontro de duas semanas passou perto de ser um grande fracasso e não conseguir sequer adotar uma agenda de trabalho, o que levaria toda a negociação à estaca zero. O que deveria ter sido o primeiro passo da reunião, quase uma formalidade burocrática, transformou-se numa guerra de 11 dias entre países ricos e pobres. A política entrou pela porta da frente de uma reunião que deveria ser técnica, antecipando tensões que não costumam ser vistas em encontros preparatórios e lançando muitas dúvidas sobre o futuro do processo multilateral
A chamada “briga de agenda” de Bonn começou na abertura do encontro, no dia 5, com os países em desenvolvimento se recusando a aceitar a inclusão, pedida pela Europa, do chamado MWP (Programa de Trabalho sobre Mitigação) na lista dos temas a debater. Algumas nações do G77, o bloco que inclui mais de 130 países em desenvolvimento, veem o MWP como uma enrolação inventada de última hora (na conferência de Glasgow, em 2021) para forçar nações emergentes a adotar compromissos mais estritos de corte de emissões sem cumprir a parte delas no trato – botar na mesa os recursos financeiros para ajudar os pobres a fazer esses cortes.
Diante do bloqueio, os presidentes da sessão resolveram adotar uma “agenda provisória”, ou seja, prosseguir na negociação enquanto se tentava costurar uma saída para o impasse. Caso a costura falhasse, Bonn terminaria com documentos informais, que não poderiam ser sequer enviados à COP, e o trabalho teria ido para o lixo. O suspense se estendeu por toda a primeira semana, até que a Noruega fez no sábado uma proposta salomônica: cairiam da agenda o MWP e um item sobre financiamento aos países em desenvolvimento. Parecia haver concordância. Só que não.
Na segunda-feira 12, Dia dos Namorados no Brasil, o clima entre os 196 países que compuseram a conferência foi de uma grande DR . Falando em nome do grupo LMDC, que inclui os árabes e outros países da linha dura do mundo em desenvolvimento, a Bolívia resolveu exigir a inclusão de um novo item sobre financiamento na pauta. A UE esbravejou e a plenária virou uma longa sessão de acusações mútuas e mágoas revividas. Os países pobres acusaram os ricos de não cumprirem suas promessas, enquanto os ricos contra-atacavam dizendo que os pobres queriam implodir a conferência. Todos estavam certos, e nenhum estava.
Com a conversa à beira da implosão, o paquistanês Nabeel Munir, copresidente da sessão, lembrou que vinha de um país no qual 33 milhões de pessoas ficaram debaixo d’água no ano passado. Segundo ele, seria impossível explicar em casa por que em duas semanas não conseguiram nem adotar uma agenda. “Parece que eu estou falando com crianças de escola primária”, exasperou-se. O que foi uma injustiça, já que qualquer criança de escola primária entende muito bem a gravidade da crise do clima.
Nem assim a coisa andou. Falando em nome do G77, Cuba chamou de enrolação a conversa dos países ricos sobre dinheiro. “Tudo que a gente vê é diálogo, diálogo, diálogo” (e está aí uma verdade). A promessa feita em 2009 pelos ricos — e até hoje não cumprida —, de US$ 100 bilhões por ano (que agora já são US$ 300 bi) a partir de 2020, foi lembrada. A sessão foi mais uma vez suspensa, depois de duas horas e meia, e o nó só foi desfeito na quarta-feira 14, véspera do encerramento, quando enfim decidiu-se por excluir o MWP e o financiamento da pauta para salvar os avanços feitos nos outros itens.
Mas e cadê a liderança? O presidente da COP28, o emirati Sultan Al-Jaber, passou por Bonn e foi incapaz de dar um alô para os delegados na plenária para tentar construir alguma ponte. Al-Jaber é o controverso presidente da Adnoc, a estatal petroleira dos Emirados, e até agora não disse a que veio. Ou melhor, disse: ele já declarou que a COP precisa decidir pela “eliminação gradual das emissões de combustíveis fósseis”, o que na prática significa continuar usando óleo, gás e carvão mineral, desde que acompanhados de captura e armazenamento de carbono, algo que especialistas afirmam não ser possível fazer em grande escala e ambientalistas chamam de greenwash. As ONGs, representadas pela rede internacional Climate Action Network, iniciaram em Bonn uma campanha para que a decisão da COP28 contenha a menção explícita à eliminação de todos os fósseis. Vem muita emoção por aí.
O que aconteceu (e o que não aconteceu) em Bonn
Somente no dia 14/6, penúltimo dia de Conferência, chegou-se a uma agenda, com os dois itens polêmicos fora da pauta. Como explica o excelente resumão produzido pela Laclima , ocorreram quatro rodadas de negociação sobre o Programa de Mitigação, apesar da discordância entre os países. A mitigação também foi abordada em outros itens de agenda, como transição justa, medidas de resposta e balanço global do Acordo de Paris.
No tema de adaptação, ganharam destaque as discussões sobre a criação de uma meta global. Mesmo que haja o prazo para a definição de uma Meta Global de Adaptação até 2024, definido por programa iniciado na COP de Glasgow, permanecem indefinições sobre métricas e sobre como mensurar o alcance da meta ao longo do tempo. No último dia da Conferência, os países concordaram em levar para a COP28 um documento informal com as visões apresentadas em Bonn, que servirá de ponto de partida para o debate.
Já a agenda de financiamento climático teve como único item a segunda revisão das funções do Comitê Permanente de Finanças, estrutura criada para auxiliar a Conferência das Partes no tema. Foram elaboradas algumas recomendações, como a consideração sobre representatividade de gênero e geográfica dos membros do Comitê; a carga de trabalho e tempo de entrega; a interação do Comitê com demais órgãos constituídos e stakeholders, e a transparência nos processos de tomada de decisão.
Aconteceu ainda o 6° Diálogo Técnico da Nova Meta Global Quantificada de financiamento climático, que busca estabelecer o montante de financiamento necessário para os objetivos do Acordo de Paris. Foi produzido um resumo das discussões, que será encaminhado à COP28. Há impasses em jogo: países desenvolvidos e em desenvolvimento discordam sobre a inclusão de recursos privados no montante estabelecido.
O balanço final é de uma reunião preparatória que não preparou muita coisa, complicando ainda mais o cenário para a COP em Dubai no final do ano. De todo modo, iniciativas como os “textos informais” com as posições dos países sobre determinados pontos, a serem apresentados na COP28, podem poupar algumas horas de discursos repetidos e conferir alguma agilidade às negociações — que deveriam, há muito, acompanhar a velocidade da crise climática.
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Promessas de emissão zero têm gap de credibilidade, vê estudo
Enquanto o pau comia em Bonn, um estudo publicado por um grupo internacional de pesquisadores na revista Science mostrou que as promessas climáticas dos países para neutralizar suas emissões em 2050 não são críveis em sua maioria. Isso levaria o planeta a um aquecimento de 2,4oC a 1,7oC acima da média pré-industrial se todas elas fossem implementadas.
“Podemos olhar o copo meio cheio ou meio vazio”, diz Joana Portugal-Pereira, pesquisadora da Coppe-UFRJ e coautora do estudo. Segundo ela, um fato a comemorar é que o pior cenário de emissões, no qual os países não adotam políticas de mitigação, já pode ser descartado sem medo. Nesse cenário, o mundo esquentaria 2,6oC em média até 2100, quase o dobro da meta de 1,5oC do Acordo de Paris.
O copo meio vazio é que as maioria das promessas de longo prazo existentes valem tanto quanto arrependimento de homem. Portugal e seus colegas as analisaram fazendo três perguntas básicas: a meta está na legislação nacional? Tem um plano de implementação? As emissões do país dono do compromisso estão em trajetória de estabilidade ou queda?
Testando as metas para 2050 à luz desses critérios, os cientistas concluíram que apenas Reino Unido, Nova Zelândia e União Europeia têm planos de descarbonização críveis. “Mais de 90% das metas receberam luz amarela ou vermelha”, afirma a pesquisadora luso-carioca. O recado é que a lacuna de ambição das metas pode até começar a ser fechada, mas a de implementação está apenas sendo descoberta.
E mesmo os países com metas estão fazendo quase nada para fechar esse buraco. Também em Bonn foi publicado um estudo do consórcio Climate Action Tracker mostrando que todos os grandes países produtores de petróleo aumentaram substancialmente sua produção nos últimos dez anos, apesar dos repetidos alertas da ciência de que não há mais lugar para esse combustível num mundo que quer ter uma chance de atingir as metas de Paris. Nos EUA, por exemplo, a produção mais do que dobrou.
Temperatura segue aumentando e o El Niño nem chegou
O fenômeno atmosférico-oceânico El Niño já está com o pé na porta e deve causar. Ele chegará provocando um aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico tropical, o que deixa o Norte e o Nordeste mais secos e o Sul mais úmido no Brasil. É aí que a Amazônia padece mais sob o fogo, por exemplo. E com as mudanças climáticas, tudo fica mais intenso.
A propósito, a Universidade do Maine, nos Estados Unidos, divulgou que as temperaturas médias globais preliminares registradas até agora estão quase 1°C acima dos níveis registrados anteriormente para o mês de junho, desde 1979. Segundo Michael Mann, cientista climático da Universidade da Pensilvânia, a temperatura global já intensificada pelo aquecimento causado por ações humanas pode ganhar entre 0,1°C e 0,2°C do El Niño.
“A anomalia da temperatura da superfície global está em níveis recordes ou próximos deles. E 2023 quase certamente será o ano mais quente já registrado”, disse Mann ao jornal The Guardian . “É provável que isso também seja verdade para quase todos os anos de El Niño no futuro, desde que continuemos a aquecer o planeta com a queima de combustíveis fósseis e a poluição de carbono”, completou.
México torra, Europa seca e ciclone mata 4 no RS
E por falar em tempo mais quente, o México está passando por uma onda de altas temperaturas que pode continuar por mais 15 dias, segundo o Instituto de Ciências da Atmosfera e Mudança Climática da Universidade Autónoma do México (UNAM). De acordo com o governo mexicano , em 23 localidades os termômetros podem passar dos 40°C. Alguns já passaram, na verdade. Em Coahuila, estado localizado no norte do país, a temperatura bateu 44 °C. Segundo Maydes Barcenas, meteorologista do Instituto de Astronomia e Meteorologia da Universidade de Guadalajara, o que está ocorrendo no México é uma condição atípica para o mês de junho, pois os registros mais altos do país costumam ocorrer entre abril e maio.
As coisas continuam quentes no Canadá também. No início de maio, falamos sobre como o fogo estava devastando o oeste canadense devido ao estímulo do tempo quente e seco durante a primavera. O problema não deu trégua e o fogo se intensificou no lado leste do país. A fumaça gerada pelos incêndios alcançou os Estados Unidos e causou um rebuliço. Em Nova York, máscaras começaram a ser distribuídas pelo governo por causa da má qualidade do ar. A temporada do fogo começou cedo e veio com força: mais de 2.600 incêndios já ocorreram no Canadá neste ano. Há um risco de a intensidade continuar acima da média até o fim de junho.
Já o norte da Europa está em alerta por causa da seca e do calor atípico – ainda é primavera e o verão costuma ser frio e úmido na região. Pequenos incêndios florestais já estão ocorrendo na Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Escócia. Especialistas esperam que chova nos próximos dias para que o fogo não piore. Mais para baixo, na Península Ibérica, a Espanha pode atingir 45 °C até o fim do mês. A lista de eventos extremos não tem fim.
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