Em entrevista exclusiva para o Futuro com floresta, realizada dia 18/09/2020, Cláudia Sala de Pinho falou sobre os atuais incêndios florestais no Pantanal e sobre como as comunidades tradicionais estão sendo impactadas nesse cenário. O Pantanal teve até o momento quase 20% do seu território queimado após a pior seca no bioma nos últimos 50 anos. Claudia é Bióloga, Pantaneira, Coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira, Articuladora da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (Rede PCTS), Presidenta do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais – CNPCT e Conselheira do Conselho Nacional do Patrimônio Genético – CGEN.
Futuro com floresta: Qual o sentimento da população tradicional que vive no Pantanal neste momento?
Cláudia: Nós das comunidades tradicionais pantaneiras estamos num momento bastante crítico no Pantanal. A gente já vinha sendo afetado pela questão da pandemia e agora soma com a questão dos incêndios florestais. Nós estamos num momento de bastante reflexão e também buscando ajuda de várias formas. Pouca gente menciona a questão das vidas que estão sendo perdidas no Pantanal. Quando eu falo vidas, a gente está falando de uma diversidade de animais, plantas e microorganismos que não puderam ser salvos. O nosso sentimento é de incapacidade, de não ter como fazer nada. É muito difícil essa situação. Paira no ar uma perda… de muitas coisas juntas. Por que para nós está tudo conectado… a nossa vida humana tem uma conexão muito grande com as coisas no Pantanal. Com as coisas, com as árvores com a água, com os pássaros, com os animais de uma forma geral. Nós estamos sentindo o Pantanal agonizando, esse é o nosso sentimento, que muitas vidas estão se perdendo. Nesse cenário avassalador a gente se sente impotente.
Futuro com floresta: O fogo já chegou a atingir territórios tradicionais? Esses territórios estão ameaçados se o fogo não for controlado? Quais são os impactos que vocês já podem prever, que irá alterar o cotidiano da vida no Pantanal?
Cláudia: O fogo tem atingido já vários territórios tradicionais diretamente. Essa semana, por exemplo, uma comunidade no município de Barão de Melgaço, uma comunidade tradicional Pantaneira, perdeu todo o seu apiário, que era de mais ou menos 100 caixas de abelha e o fogo chegou muito próximo, muito próximo das casas. Em outras comunidades se faz vigilância dia e noite para ver para onde que o vento vai, de que forma que vai, há quantos quilômetros ele está da comunidade. É uma vigilância dia e noite. Existe ainda que indiretamente a questão da fumaça que atinge várias comunidades, mesmo quando a comunidade não foi atingida diretamente pelo o fogo Nós temos casos muitos graves de crianças com problemas respiratórios , ardência nos olhos . Isso está afetando diretamente a saúde de muitos membros das comunidades.
A gente pensa também muito nessa questão dos territórios tradicionais tanto pós pandemia, quanto pós incêndio porque os impactos que a gente está percebendo agora podem ser intensificados, por incrível que pareça, também com a presença das chuvas. Porque a chuva vai levar todas essas cinzas para os rios, para os córregos, corixos, baia. E a gente teme por uma dequada* que é normal, é natural no Pantanal , mas que pode ser intensificada agora com essa questão dos incêndios e com certeza isso irá mudar toda a forma e o modo de vida das comunidades tradicionais pantaneiras. Sobre a questão do extrativismo, podemos ter uma insegurança alimentar muito grande, muitas das áreas onde se coletava os frutos e sementes foram destruídas. E com a situação das cinzas a gente não sabe como vai ficar a questão do peixe. Então existe aí um cenário muito incerto, do pós-incêndio com a chegada das chuvas. Queremos que a chuva chegue, é preciso, é urgente, a gente ta aí com várias conexões, para que realmente a chuva desça, mas a gente sabe que a chuva por si só ela não vai resolver o problema dos incêndios. Ela vai apagar o fogo, mas a destruição, a gente não tem ainda muita dimensão.
Futuro com floresta: Abrir áreas para pastagem de gado foi a causa do incêndio, segundo investigações da Polícia Federal. Na visão das comunidades pantaneiras quais foram as causas do incêndio? Quem são os responsáveis pelo que está acontecendo?
Cláudia: Sobre a questão das pastagens. O pantanal tem muitas áreas de pastagem natural e o manejo do gado é feito também por comunidades tradicionais. É claro que a proporção de área e a quantidade de gado é pequena, perante muitas fazendas. Mas essa questão a de que o incêndio ele foi provocado, isso está bastante certo, não só porque já tem investigação, tanto da Polícia Federal quanto dos órgãos ambientais. Tem imagens de satélites feitas por várias instituições que tem feito esse acompanhamento, que sabem onde iniciaram o fogo. A gente sabe que é uma forma de limpeza, o fogo nessas áreas. Só que não dessa forma como foi agora. Não foi só num ponto o início do fogo. Para nós, comunidades tradicionais, o maior responsável, com certeza é o governo que aniquila a política ambiental de prevenção ao fogo, que destitui os órgãos responsáveis por fazer a prevenção a fiscalização e o monitoramento. Todas as vezes que a gente tem um órgão do governo com recurso menor, o governo está assumindo a responsabilidade de que as coisas não vão caminhar bem. Colocar fogo nessa área do Pantanal é uma forma indireta de dizer que concorda com a política de destruição ambiental que o governo federal vem implantando no país.
Abrir novas áreas para a pecuária, abrir novas áreas pro agronegócio, essa responsabilidade, ela não pode cair sob as comunidades tradicionais como muitos tentaram fazer no início dos incêndios florestais, dizendo que quem tinha colocado fogo eram os ribeirinhos, eram as comunidades tradicionais. Precisamos realmente analisar as responsabilidades do Estado brasileiro, do governo atual e também daqueles que concordam com esse tipo de política.
Futuro com floresta: Qual é a melhor alternativa de convivência com o bioma? Como há anos os povos e comunidades tradicionais contribuem para preservação da vida no Pantanal?
Cláudia: O Pantanal é o que é hoje porque existiram e existem comunidades tradicionais, dentre elas a pantaneira. Temos povos indígenas, quilombolas, os que se autoafirmam ribeirinhos e dentre eles as comunidades tradicionais pantaneiras. O manejo no Pantanal sempre foi muito presente. Eu costumo dizer que a gente não sabe qual é a data dos primeiros habitantes do pantanal porque nós sempre estivemos aqui. Os nossos ancestrais estiveram e continuam estando no Pantanal. Por isso que esta questão do incêndio, das energias da agonia dos animais, das plantas, ela mexe muito com a gente. Porque todas as formas de vida do Pantanal importam, porque todas as formas de vida do Pantanal estão conectadas e essa é a melhor forma de conviver, de co-viver, de moldar o Pantanal: respeitar todas as formas de vida e seus espaços. Nós temos áreas no Pantanal manejadas pelas comunidades tradicionais que hoje foram afetadas pelos incêndios, principalmente na questão da extração vegetal e da pecuária e a agricultura de pequena escala, a agricultura familiar.
As comunidades sempre manejaram o Pantanal de forma sustentável sabendo qual é o limite do Pantanal, quais são os períodos, respeitando os ciclos das águas e das chuvas. Para nós é muito importante que a nossa casa que é o Pantanal esteja em pé, porque abrigar as diversas formas de vida na nossa casa é uma forma de contribuir diretamente com o restante da sociedade seja para amenizar o aumento dos gases de efeito estufa, as mudanças climáticas de forma geral, seja na produção de alimentos, seja na conservação do ciclo hidrológico ou simplesmente contemplando o Pantanal que é um patrimônio da humanidade.
Nós temos dentro Pantanal comunidades tradicionais que estão aqui há muitos e muitos séculos, que tem uma tarefa muito importante, uma contribuição social muito importante que algum tempo atrás foi usurpada das comunidades por meio da criação das Unidades de Conservação. Na época não houve nenhum consulta às comunidades, elas simplesmente foram expulsas dos seus lugares.
Então a gente vê que esse incêndio no Pantanal junto com outros impactos que o Pantanal vem sofrendo e que de alguma forma não tinha destaque na grande mídia, são formas que possibilitam a exclusão. É o modelo econômico e social capitalista de oprimir as comunidades tradicionais, de extinguir as comunidades tradicionais do Pantanal.
Tem aí vários e vários empreendimentos. Para nós, comunidade Pantaneira, o Pantanal não é só a parte úmida ele é todo esse complexo da bacia do Pantanal, a beirada do Pantanal é Pantanal. Um complexo de empreendimentos de Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCHs) em vários rios que deságuam no Pantanal. É como se cortassem uma veia que sustenta o Pantanal quando colocam essas PCHs. E temos também agora o licenciamento dos portos fluviais. Tudo isso para implantar a hidrovia. E agora com essa questão da seca a gente sabe o quanto o Pantanal é sensível e o quando qualquer mudança e qualquer alteração trás um desastre muito grande pro ambiente pantaneiro. Tem trechos no Rio que não tem 70 cm de água e vai acontecer o que quando passarem embarcações pesadas pelo Pantanal? É acabar com aquilo que a gente ainda tem.
Entenda o que é a dequada*
A dequada é um fenômeno natural, caracterizado pela alteração das características da água. Ocorre sempre na subida das águas, quando o nível do rio Paraguai passa dos 3,5m. Ocorre a deterioração da qualidade da água, dependendo das características do regime hidrológico de cada ano, pois está relacionada com a quantidade de biomassa de plantas terrestres que sofrerá decomposição na cheia subseqüente.
Carta da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira aos Parlamentares da Câmara dos Deputados, por ocasião da diligência Queimadas no Pantanal.
Nós, Comunidades Tradicionais Pantaneira nos autorreconhecemos na identidade coletiva, alicerçados por marcos legais internacional como a Convenção 169 da OIT e nacional como a Constituição Federal, o Decreto 6040/2007 e Decreto 8750/2016.
Nós, vivemos e convivemos no Pantanal, a maior área úmida contínua do planeta e seu entorno, nas regiões serranas, temos nosso modo de vida, secularmente há várias gerações, moldando e se adaptando aos contrastes dos ciclos das águas, e seus diversos ambientes naturais, a floresta, o cerrado e área de transição. Temos nossos conhecimentos tradicionais alicerçados nas vivencias e experiências ambientais, ecológicas e culturais, oralidade e observação, costumes e cultura próprios na percepção, uso, manejo e conservação deste bioma.
Nossos antepassados e ancestrais estiveram e estão presentes no Pantanal,
não conseguimos datar os nossos habitantes originários, mas sabemos que somos frutos da miscigenação dos povos indígenas que habitam e habitaram a região antes da chegada dos europeus somadas aos negros vindos do continente africano.
Nós que ao longo dos séculos temos existido e resistido as todas formas de mudanças no Pantanal ocasionadas pela ação humana ou impostas por ela, e
suas consequências, que muitas vezes nos têm colocado em situação de vulnerabilidade e invisibilidade social, ou até mesmo tentado nos extinguir e
não reconhecer nossa existência neste lugar.
Somos os guardiões do Pantanal, este é nosso território sagrado, e nele estão todos os ensinamentos e a vivência que precisamos para desenvolvermos nossa vida com dignidade, onde os diferentes espaço se conectam, seja pela agricultura familiar, pesca, extrativismo e outras formas de ocupação. Muitos de nós desenvolvemos atividades como peões, vaqueiros, capatazes, coletores,bem como desenvolvemos funções ligadas aos ciclos das águas, como piloteiros, isqueiros, pescadores, dentre outros. Contribuímos significadamente com nosso modo de vida, para a mitigação ou adaptação aos efeitos adversos das mudanças climáticas, bem como para manter o Pantanal como um dos biomas até então mais conservados.
Neste momento, somos atingidos pela Pandemia do COVID19 e incêndios florestais, dois eventos avassaladores em nossos territórios. O Estado brasileiro tem sido omisso e negligente com nossa situação, nos colocando em situação de miséria e vulnerabilidade, fingindo não nos enxergar. De acordo com o exposto, vimos apresentar nossas demandas, exigindo que nossos direitos como comunidade Tradicional Pantaneira sejam reconhecidos e efetivados, em ações mínimas para minimizar os efeitos colaterais dos incêndios florestais que atingiram nossos territórios. Assim, apresentamos:
Participação de representantes da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira na Comissão da Câmara Federal que discutirá questões dos Incêndios no Pantanal.
Criação de um grupo de trabalho específico pós incêndios no Pantanal, junto
à Assembleia Legislativa de Mato Grosso, com participação efetiva de representantes de Comunidades Tradicionais Pantaneira para construção e implantação de politicas públicas.
Construção de um plano emergencial a nível estadual, de caráter proativo e protetivo para atendimento as comunidades tradicionais, com informações nítidas e realistas da situação sócio ambiental e cultural do Pantanal.
Criação e formação de brigada junto às comunidades tradicionais em pontos focais no Pantanal.
Disponibilização de recursos financeiros diretamente para as organizações de
base das comunidades tradicionais para restauração ambiental e ecológica, recuperação de nascentes e reflorestamento dos territórios tradicionais atingidos pelo fogo.
Implantação de sistema de tratamento de água potável e de qualidade em comunidades tradicionais pantaneira, cuja seca originou escassez de água ou que a água do rio não pode ser consumida.
Financiamento em crédito rural (PRONAF) para custeio e investimentos em implantação, ampliação ou modernização da estrutura de produção, beneficiamento, industrialização em áreas comunitárias ´para geração e melhoria de renda com produtos do agroextrativismo.
Fortalecimento dos programas de aquisição de alimentos (PAA).
Implantação de bancos de sementes, produção de mudas nativas nas comunidades tradicionais.
Fomento para valorização da medicina tradicional com a implantação de
farmácias tradicionais.
Diante disso, reafirmamos que somos resilientes, resistentes e continuaremos a existir nesta casa chamada Pantanal, e que sempre vamos lutar pelos nossos direitos, caminhando nas pegadas de nossos ancestrais, na busca da construção de uma sociedade socioeconômica, justa e inclusiva que combata as desigualdades, as violências, a pobreza e que nos assegure minimamente à condição humana e a busca pelo direito à vida digna.
Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira
Poconé, 20 de setembro de 2020.
Foto em destaque: Juliana Arini Palmo, fotógrafa, storyteller, Dó Bemol, jornalista e mãe-azul
O post ““A chuva vai apagar o fogo, mas não a destruição”, diz Claudia Sala de Pinho, representante das comunidades tradicionais Pantaneiras.” foi publicado em 21st September 2020 e pode ser visto originalmente na fonte Futuro com floresta