Anteontem à noite, no fim de um debate com os candidatos ao governo de SP, o deputado bolsonarista Douglas Garcia se aproximou da jornalista Vera Magalhães e passou a gritar fake news em forma de perguntas. O objetivo imediato, óbvio, era filmar tudo e coletar material pra alavancar sua candidatura à reeleição. Entre bolsonarentos, atacar mulheres e jornalistas rende voto.
Mas parece que o tiro saiu pela culatra. Assim como o fato mais marcante do debate da Band foi o ataque de Bolso a Vera, o fato mais marcante deste debate acabou sendo o ataque de Douglas a mesma jornalista. Mais uma vez, uma atitude misógina e troglodita mostrou o que apoiadores de Bolso pensam das mulheres e da liberdade de imprensa. Nacionalizou um debate que era pra ser regional. Fez os bolsonaristas baterem cabeça. Pode levar à cassação de Douglas (é o que espero). E rendeu uma onda de solidariedade a Vera.
Por mais que eu discorde de muita coisa que a jornalista falou (tipo chamar Sérgio Moro de enxadrista, pedir para a Folha cancelar a coluna de Guilherme Boulos, ou dizer que Lula transformou o velório de Marisa em comício), não tem como não ficar do lado dela nesse caso. O outro lado é a barbárie. Vai contra a lei, a ética, o bom senso que um presidente de um país não só ataque jornalistas mulheres, mas que coloque todo seu Gabinete do Ódio para atacá-las, e incite seus seguidores (muitos dos quais colecionam armas) ao ataque. Simplesmente não é aceitável.
Vale lembrar que não é de hoje que Bolso ataca Vera. Seus seguidores a chamam de “datilógrafa” e “Verba Maugalhães” há anos. Isso vem desde antes do “imbroxável” virar presidente, mas atingiu o ápice em fevereiro de 2020, quando a jornalista publicou que o próprio Jair usava o WhatsApp para convocar seus seguidores para participar de atos golpistas contra o Congresso. Bolso a xingou numa live, e o Gabinete do Ódio passou a atacá-la com ainda mais afinco. Por exemplo: inventaram uma troca de mensagens entre ela e o ex-presidente FHC, e divulgaram imagens de seus filhos. As fake news sobre seu salário na TV Cultura são também dessa época.
Portanto, não foi tão surpreendente quando Bolso a escolheu como alvo no debate da Band. O presidente disse em rede nacional no fim de agosto: “Vera, eu acho que eu não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro”. Pra quem patina na intenção de votos das mulheres, não parece ser uma estratégia racional atacar mulheres. Mas acho que é mais forte que ele.
No dia 31 de agosto, bolsonaristas adulteraram e espalharam um vídeo em que uma jornalista do Uol, Fabíola Cidral, dizia que Simone Tebet havia feito uma pergunta para deixar Bolso nervoso no debate de 28/8. No vídeo falso, Fabíola diz que foi Vera Magalhães (não Tebet) que lhe confidenciou: “eu sabia que ele ia ficar nervoso. Eu fiz até de propósito para mostrar quem ele é”. A emissora oficial do bolsonarismo, a Jovem Klan, chegou a passar e comentar o vídeo falso em um de seus programas.
Em 1 de setembro Vera pediu para que denunciassem ao Twitter uma ilustração que a mostrava dormindo com Bolso, uma referência à fala misógina de Bolso (“você dorme pensando em mim, tem alguma paixão por mim”).
Durante o ato de 7 de setembro no Rio , convocado e organizado por Bolso, um trator exibia um cartaz com a foto de Vera e ofensas a ela. Na ocasião, Vera quis saber: “Quem pagou o guindaste em que penduraram minha foto e uma mensagem ameaçadora? Personalizando um ataque por uma pergunta sobre vacina num debate? Por que a virulência? Porque o desgaste para Bolsonaro pelo que ele respondeu, não o que eu perguntei, foi grande”.
E agora mais este ataque, protagonizado por um deputado fascistinha (mesmo: antes de ser eleito, ele esteve em ato dos Carecas do ABC). Está longe de ser um ato isolado. É um ataque orquestrado, que tem o presidente da república como chefe. Pra mim, isso é um escândalo.
A repercussão tem sido gigantesca, o que levou Dudu Bananinha, no auge da sua hipocrisia e cinismo , a classificar a atitude de Douglas de “lamentável”: “O que ocorreu ontem após o debate dos candidatos ao Governo de SP é lamentável por muitos motivos. Em primeiro lugar, não há justificativa para provocar uma jornalista e tentar constrangê-la gratuitamente no seu local de trabalho, sem que ela tenha dado qualquer motivo para isso”. Reparem no “sem que ela tenha dado qualquer motivo pra isso”. Seu pai fez muito pior durante o debate da Band (constrangeu a mesma Vera no seu local de trabalho), mas, aparentemente, ela deu motivo (fez uma pergunta pro Ciro sobre a queda de vacinação para crianças!).
Na verdade, foi assim: o advogado da campanha de Bolso, um outro Tarcísio (Vieira, ex-ministro do TSE) viu que a atitude de Douglas poderia levar a um processo judicial não só contra o candidato bolsonarista ao governo de SP, mas contra Bolso. Pensou-se em fazer Jair repudiar Douglas, mas, né, não ia colar. Então pegaram Dudu, que já havia brigado com Douglas dois anos antes, quando o deputado estadual, que havia feito um dossiê de mil páginas expondo antifas (ou seja: quem combate fascistas é o inimigo), envolveu o filho do presidente no negócio.
Se o repúdio de Dudu a Douglas não foi convincente, Ciro Nogueira, sinistro-chefe da Casa Civil, preferiu defender o deputado estadual neste episódio do debate. Pra ele, o jornalista Leão Serva ter arremessado o celular do parlamentar (yay!) é “mil vezes mais grave” (Douglas se desesperou e correu atrás do celular em modo avião, gritando “jonazistas”, o que, vindo dele, deve ser um elogio). Paulo Figueiredo, neto de ditador e comentarista da Jovem Klan, foi na mesma linha. Mas, em geral, bolsonaristas odiaram que o candidato Tarcísio tenha pedido desculpas a Vera. Isso fez dele um frouxo. Ser ogro é nunca ter que pedir desculpas.
Já pro resto da população, Tarcísio apenas reforçou sua imagem de mentiroso, algo absolutamente normal entre qualquer apoiador de Bolso. Ao ligar pra Vera, ele disse sobre Douglas : “Mal conheço esse idiota”. As imagens o desmentem. Douglas estava lá a convite de Tarcísio. E premeditou tudo. Já sabia que iria acusar a jornalista de receber grana para falar mal de Bolso.
Mas quem é, afinal, Douglas Garcia? Acho que eu nunca tinha ouvido falar dele antes do ataque que ele fez em 2019 a Erica Malunguinho (Psol), primeira deputada trans de SP. Depois de um discurso de Erica, Douglas afirmou que tiraria a tapas e chamaria a polícia pra levar presa uma mulher trans que usasse um banheiro feminino onde estivesse sua mãe ou irmã.
Quando passaram a ameaçar divulgar imagens de Douglas com homens (e também após ser denunciado ao Conselho de Ética pelo discurso transfóbico), ele teve que se assumir homossexual, sem, claro, defender qualquer bandeira LGBT. Muito pelo contrário: ele é um dos muitos que associam gays à pedofilia. Mas Douglas ficou mais ou menos conhecido em 2018 , ao criar o bloco de carnaval Porão do DOPS, para homenagear torturadores. O bloco foi impedido de desfilar pela Justiça.
E, logicamente, engana-se quem pensa que os ataques de Douglas a Vera começaram anteontem. Já em 2020, Douglas e Gil Diniz, o “carteiro reaça”, ambos deputados estaduais bolsonarentos, usaram o plenário da Assembleia Legislativa para difamar Vera. Os dois alegaram que ela recebia meio milhão de reais por ano da Fundação Padre Anchieta para atacar Bolso. Ela mostrou um trecho do contrato no Twitter e avisou que os processaria. A TV Cultura também se manifestou: disse que o salário seguia um teto estabelecido e era pago não com dinheiro do Estado de SP, mas com a verba gerada por anúncios.
Não adiantou. Os dois parlamentares continuaram insistindo, e a TV Cultura respondeu, entregando exatamente qual era o salário de Vera. E o que os dois deputados fizeram? Divulgaram o valor de dois anos de contrato (R$ 528 mil) como se fosse anual!
Na época, a TV Cultura lançou uma nota pública : “Em tempos de crise de saúde em todo o país, os dois usaram a sede do Legislativo e tempo de seus mandatos, estes sim pagos com dinheiro dos contribuintes, para caluniar e difamar. E como sempre, preferencialmente, jornalistas mulheres. A TV Cultura mais uma vez se solidariza com sua companheira e lamenta que as milícias do presidente Bolsonaro sigam dando mostras de descolamento da realidade que os cerca. Enquanto o Brasil se preocupa com a maior epidemia dos últimos 102 anos, eles se ocupam em abusar da paciência do País”.
Em outras palavras, anteontem, quando Douglas foi atacar Vera, ele só estava repetindo o que fez dois anos atrás. Ele já tinha visto o contrato dela, já tinha espalhado a mentira que ela ganhava mais de R$ 500 mil da TV Cultura (e não os R$ 264 mil/ano que recebe), provavelmente já está respondendo a processo, e foi lá dar seu showzinho grotesco pra lembrar seus eleitores que existe e conseguir ser reeleito. E, tipicamente prum misógino, ele não pediu desculpas a Vera, e sim a Tarcísio .
Mas Douglas é só um peão nesse tabuleiro. Seu mandante todos nós sabemos quem é. O que é incompreensível pra mim é que um presidente que está há quatro anos atacando jornalistas mulheres vai terminar seu mandato e ainda tenha chances de chegar ao segundo turno.
O post “OS ATAQUES A VERA MAGALHÃES TÊM MANDANTE” foi publicado em 15th September 2022 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva