Ontem a América Latina sofreu uma derrota marcante: o Chile não aprovou sua nova Constituição! Minha
correspondente no Chile , a jornalista
Isabela Vargas , conta como foi e como está sendo. Ela é feminista, mãe da Gabriela, e integra a coordenação do coletivo Mujeres por la Democracia Santiago de Chile, que organizou os protestos do #EleNao no Chile.
Difícil escrever esse texto porque ainda estou em choque e processando a dura derrota do
#Apruebo no plebiscito de ontem que poderia enterrar para sempre a constituição de Pinochet no Chile. Com quase 100% das urnas apuradas, o resultado mostrou que 61,86% dos chilenos optou pelo
rechazo (rejeito) enquanto apenas 38,14% votou
apruebo (aprovo) quando consultados sobre o texto da nova carta.
Quando eu ouvi o discurso do comando da campanha, por volta das 22 horas, comecei a chorar. Depois do choro, não conseguia dormir. Meu marido, que é fotógrafo e trabalhou na cobertura direto do comando do #Apruebo, chegou em casa arrasado e rasgou todas as bandeirinhas do Chile que ele tinha colocado para decorar a casa por conta das festas pátrias, celebradas em setembro.
Foi uma derrota acachapante. Nem nos meus piores pesadelos poderia esperar um resultado tão ruim como esse. A gente tinha medo, sim, de uma derrota, mas ninguém esperava um percentual dessa magnitude. Foi um verdadeiro terremoto que abalou as estruturas na esquerda chilena.
Por que os chilenos não aprovaram o texto?
A proposta da nova constituição previa, entre outras mudanças, um sistema de saúde pública, a igualdade entre homens e mulheres na politica, reconhecimento dos povos originários do Chile, extinção do Senado e criação de câmaras regionais, ampliação do acesso à moradia e serviços sociais. Por que, então, os chilenos não aprovaram o texto?
Ainda é cedo para fazer uma leitura calma e detalhada, mas tem alguns fatores que indicam o que aconteceu aqui. O primeiro deles são as já conhecidas fake news que foram muito usadas, assim como ocorreu na campanha presidencial no Brasil, em 2018. A equipe do
#Rechazo espalhou várias mentiras, inclusive com cópias da Nova Constituição alteradas. O tempo usado para desmentir essas inverdades custou caro, já que não foi possível mostrar todas as boas propostas do novo texto.
A deputada Emilia Schneider, primeira mulher trans eleita recentemente, denunciou um panfleto produzido pela campanha do Rechazo que distorcia totalmente a proposta de Educação Sexual nas escolas. A ideia era justamente prevenir os abusos de menores e o panfleto pregava que o objetivo era ensinar as crianças desde cedo a ter relações sexuais.
Representantes da direita que fizeram parte da Convenção Constitucional foram flagrados nas ruas distribuindo esse tipo de material.
Apesar das denúncias , nada foi feito. Principalmente, na cobertura da mídia comercial, grande aliada da direita nessa disputa. Os convencionais ganharam
amplo espaço para difundir suas mentiras e havia poucos jornalistas capazes de confrontá-las, raras exceções como a jornalista Mónica Rincón, da CNN Chile.
Mais recursos para mentir
Os porta-vozes do #Rechazo também tiveram acesso a mais recursos e puderam viajar a vários lugares do Chile. A campanha gráfica também foi muito mais presente nas localidades, além da publicidade em redes sociais. Diferente do segundo turno da campanha do Gabriel Boric para presidente, quando Izkia Sichez rodou o país de porta em porta pedindo votos, desta vez, alguns poucos convencionais saíram a percorrer o país.
Outro aspecto fundamental foi o papel de alguns representantes da DC (Democracia Cristiana), a mesma que traiu e abandonou o Allende na primeira oportunidade. Embora a orientação do partido tenha sido pela opção Apruebo, a senadora Ximena Rincón dedicou bastante tempo e recursos para fazer campanha pelo Rechazo. Obviamente, ela pensava em seus próprios interesses, já que a nova carta extinguia o senado chileno.
Clima de terror e voto obrigatório
Além disso tudo, é importante destacar que os meios de comunicação passaram os últimos meses veiculando diariamente não apenas as mentiras sobre o texto da nova constituição, como também promoveram uma intensa campanha de terror com relação à segurança pública. Depois de atacar sistematicamente a figura da Ministra do Interior, Izkia Sichez, responsável pela segurança nacional, os ataques se transforaram em notícias diárias denunciando roubos, assalto, violência, criando um clima de terror de norte a sul.
Logo após o resultado do plebiscito muita gente questionava como era possível localidades que vivem escassez de água, como Petrorca, rejeitar o novo texto. A resposta: eles não têm água, mas têm televisão em casa.
Outro aspecto que considero relevante é o voto obrigatório nesse pleito. Diferente das eleições anteriores que definiram a opção por uma nova constituição e o presidente com voto facultativo, nesta eleição, todos eram obrigados a votar sob pena de multa. No meu local de votação, havia vários idosos, inclusive, de cadeiras de rodas e com sondas. Todos eles muito amorosos com os militares que faziam a segurança e um deles chegou a dizer: hoje vamos acabar com isso.
Fiquei muito triste. Fui votar de manhã bem animada. Levei minha filha comigo, afinal, 4 de setembro marcava também os 70 anos do voto das mulheres no Chile. Minha filha esperou na fila, entrou comigo na cabine e fez questão de depositar o voto na urna. Eu sinto que a decepcionamos porque essa mudança não era para as atuais gerações, era para ela e para os que virão depois dela.
Hoje, especula-se que haverá uma reforma de gabinete no governo do Boric e apontam que os dois primeiros a saírem seriam o secretário geral da presidência, Giorgio Jackson, e a ministra Izkia Sichez. Nos próximos dias, veremos o que vai acontecer. Por enquanto, choramos e tentamos entender o que foi que aconteceu. Uma coisa é certa: a luta continua porque o Chile ainda precisa responder ao que o povo definiu no plebiscito de outubro de 2020, onde deixou claro com quase 80% dos votos válidas que a população quer uma nova Constituição. Seguimos.