Esta semana deve sair o veredito de um julgamento que diz tudo sobre os dias atuais: o caso Johnny Depp vs Amber Heard. Eles foram casados pouco mais de um ano, Heard pediu o divórcio (ambos assinaram um acordo no valor de 7 milhões de dólares) e uma medida protetiva pouco depois, e no final de 2018 publicou um artigo no Washington Post em que se coloca como vítima de violência doméstica, sem mencionar o nome do ex-marido. O super astro a processou por difamação, pedindo a quantia astronômica de 50 milhões de dólares, e ela processou de volta, pedindo o dobro.
O que temos visto (aliás, eu não vi, só li uma ou outra coisa) foi um julgamento ao vivo comentado por todos, um gigantesco festival sensacionalista. Só na sexta-feira, mais de um milhão de pessoas assistiram ao argumentos finais dos advogados.
Muito do que foi dito nessas últimas seis semanas é uma reprise de um julgamento de 2020, em que Depp processou o tabloide britânico The Sun por chamá-lo de “espancador de esposa”. Ele perdeu. O juiz considerou que as afirmações de Heard em relação a 12 dos 14 abusos denunciados eram “substancialmente verdadeiras”. Aquele julgamento não foi televisionado.
Confesso que nunca tinha ouvido falar de Amber Heard antes de 2016, quando apareceram os primeiros boatos sobre ela ter sido vítima de Depp. Até agora, este é o segundo post que escrevo sobre o assunto. O primeiro foi um post de seis anos atrás, em maio de 2016, que se chamava “Sobre Johnny Depp e outras atrocidades”, em que eu contava que estava na praia e mencionava três coisas desconectadas. Numa delas, publiquei o comentário de uma leitora sobre Heard e Depp (que foi quando o caso começou a vir à tona): “podem observar a quantidade enorme dos comentários no mundo todo dizendo que ‘ele é inocente até que se prove o contrário’, mas apressando-se rapidamente em dizer que a Amber Heard ‘se maquiou’ e é interesseira”. Isso há seis anos! Imaginem agora…
Lógico que este julgamento é um sonho tornado realidade para os mascus e misóginos em geral. Obviamente Depp se tornou um símbolo dos homens falsamente acusados e de homens que são vítimas de violência. A tag pedindo justiça para Johnny Depp foi vista 17.7 bilhões de vezes até ontem. A que pede justiça para Heard, 59.1 milhões (menos de 1%). Não tem a menor chance de Heard ganhar, mesmo se ela ganhar. Ela já perdeu . E, por tabela, o combate à violência doméstica também.
De acordo com a professora de Direito de Stanford Michelle Dauber, “Um homem poderoso usou seu julgamento televisionado para publicamente expor uma mulher que meramente contou sua experiência sob sua perspectiva — sem citá-lo, sem dar detalhes, simplesmente caracterizando sua própria experiência subjetiva de ter se tornado uma ‘figura pública’ sobre violência doméstica. É uma catástrofe para sobreviventes em todo o mundo”.
A promotora Silvia Chakian diz: “O que mais chama a atenção é o altíssimo engajamento nas redes sociais de pseudoanalistas comemorando fatos que desconstruam a ‘verdadeira vítima de violência’. Há um regozijo quase pornográfico nisso, que é revelador da misoginia latente em relação a mulheres que se levantam contra homens poderosos”.
“Pense na mensagem que Mr. Depp e seus advogados estão mandando para Amber e, por extensão, para qualquer vítima de abuso doméstico em qualquer lugar. Se você não tirou fotos, não aconteceu. Se você tirou fotos, elas são falsas. Se você não contou pros seus amigos, você está mentindo. E se você contou pros seus amigos, eles fazem parte da farsa”, disse o advogado de Heard na sua arguição final.
“Os comentários online sobre o julgamento rapidamente deixaram de ser um roteiro dramático de ‘ele disse, ela disse’ para se tornar uma campanha cibernética para difamar Heard”, diz Amanda Hess num artigo no New York Times. Ela aponta que, além das milhões de fãs que Depp conquistou durante décadas, a campanha contra Heard também atraiu ativistas pelos direitos dos homens (mascus), figuras da mídia de direita, manifestantes do “Boicote a Disney”, conspiracionistas de abuso sexual, detetives de sofá, qualquer um que desconfie da mídia tradicional, e muitos oportunistas querendo captar um pedacinho de atenção.
Na minha opinião, Heard não parece ser nada simpática. Nem Depp. Mas dane-se a minha opinião. O fato é que não os conhecemos pessoalmente, não somos seus amigos, tudo que sabemos sobre eles é através dos papéis que fazem e de sua persona (sua imagem pública, na maior parte das vezes construída por publicistas que cobram milhares de dólares). Do pouco que vi sobre o caso, pra mim ficou cristalino que ambos viveram um relacionamento abusivo. Ambos foram agressores e vítimas.
Uma das cenas mostradas no julgamento (gravada por Heard durante o casamento) é inconteste: Depp berrando e batendo portas de gabinete na cozinha. Praticamente todas as vítimas de violência doméstica contam que, antes de serem diretamente agredidas, o agressor destrói e joga coisas, bate portas, aterroriza. Depp também acusa Heard de ter jogado uma garrafa em sua direção, que decepou parte de seu dedo mindinho (um médico que testemunhou disse que essa versão era improvável, pois a unha permaneceu, e os estilhaços de vidro teriam atingido outras partes da vítima; apoiadores de Depp encheram as avaliações de dois médicos que serviram como testemunhas especialistas com uma estrela).
Mas é o seguinte: se o júri decidir que ambos cometeram violência um contra o outro, Heard será absolvida, porque fica provado que ela não mentiu, não difamou. O processo é de difamação, não de quem foi o pior cônjuge ou de quem é mais popular.
A liberdade de expressão é bastante absoluta nos EUA. Para um advogado, astros de cinema mundialmente conhecidos precisam ter uma carga muito alta de provas antes de obterem indenização de quem os critica. Pela definição que a lei americana dá à difamação, a lei favoreceria Heard. Os advogados de cada um quiseram mostrar quem é mais explosivo, mais agressivo, mais vítima. Mas especialistas da lei (nos EUA) clamam que essas alegações não deveriam ser o foco num processo de difamação. O advogado de Heard disse aos jurados que a lei não pede que eles sirvam como árbitros do casamento imperfeito de duas estrelas de cinema. Em vez disso, os jurados deveriam levar em conta o primeiro mandamento da Constituição dos EUA: “a liberdade de expressão e o primeiro mandamento dão a Amber Heard o direito de dizer as palavras que ela disse”.
As leis de difamação nos EUA baseiam-se num caso de 1964 na Suprema Corte, do New York Times contra Sullivan. A corte unanimemente decidiu que criticar figuras públicas é um direito permitido pela liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Essas figuras públicas só podem receber indenização quando mentiras forem ditas ou escritas sobre eles com “actual malice” (malícia). Ou seja, que a pessoa sabia que as afirmações eram mentirosas. No caso Depp vs Heard, os advogados de Depp precisaram provar que o que Heard disse no seu artigo de 2018 é falso, e que ela sabia que era falso. Além disso, Heard não precisava provar que houve violência doméstica o tempo todo. Só uma vez já seria suficiente. Depp teve que provar que ela inventou o abuso.
Ao que me parece, é uma tarefa difícil para ambas as equipes, mais fácil para a de Heard. A torcida para Depp certamente nivelou as forças. Uma reportagem estimou quanto custou a defesa de cada um. Depp tem sete advogados. Supondo que cada um cobre 600 dólares a hora, mais os assistentes e viagens durante o julgamento de seis semanas, calcula-se que ele tenha gastado US$ 5.5 milhões . Como Heard conta com uma equipe menor, pode ser que ela tenha gastado 3 milhões, mais 200 mil nos especialistas. Não são valores de meros mortais. De todo modo, independente do veredicto, é praticamente certo que a parte que perder irá recorrer.
Podem crer que haverá várias teses acadêmicas sobre o julgamento, sobre como os fãs de um astro interpretam e deturpam afirmações complexas. Ativistas lembram que processos por difamação são muito comuns para que os agressores possam controlar e coagir sobreviventes. “Este caso não é a exceção. É a regra”, diz uma pesquisadora. O caso fará com que vítimas se calem, não denunciem. Imaginem uma vítima vendo como seus amigos e sua família falam de Heard.
Mesmo que Heard esteja mentindo, seria justificativa pro carnaval que a mídia faz? Justifica as ameaças de morte e estupro que ela vem recebendo? Heard tem tido que usar escolta, pois é ameaçada de morte várias vezes por dia, todos os dias.
Em 2016, provavelmente depois de Heard pedir medidas restritivas contra Depp, ele escreveu : “Ela está implorando por humilhação global. E ela vai receber”. Inspirado por Depp, o roqueiro Marilyn Manson, acusado de estupro e agressão física pela atriz Evan Rachel Wood e outras seis mulheres, também está processando sua ex-noiva (Evan) por difamação. Pode ser um bom negócio pro agressor: ele estupra, a vítima denuncia, não dá em nada, a vítima, desesperada, sem poder contar com a justiça, fala sobre isso nas redes sociais, e o estuprador a processa. Às vezes, processa também quem se solidariza com a vítima. É uma forma de tentar limpar seu nome e ainda ganhar uma grana.
Concordo totalmente com Hess: “Como o Gamergate, que pegou uma controvérsia de uma comunidade gamer obscura e a inflou numa campanha cibernética de assédio antifeminista e num movimento maior da direita, este circo niilista é um evento potencialmente radicalizante. Quando o julgamento acabar esta semana, a campanha elaborada para difamar uma mulher vai continuar, agora com uma enorme massa de apoio pronta e um manual de operações testado e aprovado. Só vai precisar de um novo alvo”.
Este caso fará com que o enfrentamento à violência contra as mulheres retroceda vários anos. Uniu grupos antifeministas organizados e indivíduos misóginos, ensinou passo a passo como culpar vítimas, e recrutou adolescentes para criar memes e montagens para destruir pessoas. Não é à toa que mascus e a extrema-direita de todo o mundo estejam celebrando o carnaval fora de época. Lembrem-se: o que é bom pra eles é péssimo para as mulheres.
O post “JOHNNY DEPP E A MÁQUINA DE MOER A REPUTAÇÃO DE AMBER HEARD” foi publicado em 30th May 2022 e pode ser visto originalmente na fonte Escreva Lola Escreva