Literalmente destruir uma empresa de tecnologia de ponta, referência na América Latina e uma das poucas do mundo capazes de produzir chips semicondutores com usos variados, da saúde a passaportes, para favorecer a iniciativa privada.
Sem qualquer justificativa técnica e sem o mínimo de cuidado, isso é que o governo Bolsonaro está tentando fazer com a estatal Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), criada em 2008 pelo governo Lula e sediada em Porto Alegre.
Por pura ideologia ultraliberal, como é a cartilha abertamente seguida por Paulo Guedes, o agora novo ministro de Minas e Energia Adolfo Sachsida, pelo ex-secretário de “desestatização” Salim Mattar, dono da Localiza, e por toda a cúpula do governo, a atual administração tenta liquidar uma indústria de ponta.
Com interesses econômicos escusos e negócios suspeitos, ao mesmo tempo convida Elon Musk, o “homem mais rico do mundo”, recebido com pompa e circunstância na semana passada em encontro com Bolsonaro, Toffoli e executivos brasileiros, para supostamente abrir uma fábrica no Brasil para fazer exatamente o que a Ceitec faz com excelência.
Musk recebeu uma “Medalha de Honra” do governo Bolsonaro e foi chamado de “mito da liberdade”. O ministro das Comunicações, Fabio Faria, foi o mestre de cerimônias e não escondeu a sua admiração digna de fã ao multibilionário americano.
Sem assinar qualquer acordo formal e sem entrar em detalhes, Bolsonaro e Musk anunciaram um suposto trato para que Musk “monitore a Amazônia”, algo já feito com reconhecimento mundial pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), também sucateado, atacado e com orçamento hoje que representa metade do que tinha em 2013.
Outro convite é para a coreana Samsung assumir a produção de semicondutores no Brasil, de olho no mercado 5G, mais um caso em que a própria Ceitec poderia contribuir.
O padrão é claro: destruir empresas públicas de excelência para entregar setores estratégicos para a iniciativa privada, comprometendo indústrias de tecnologia de ponta e a soberania nacional.
No tabuleiro, negociatas e interesses longe de qualquer transparência, como é típico no governo que coloca sigilo de 100 anos para tudo. Jair Bolsonaro e seus asseclas têm muito a esconder.
Neste longo fio que fiz no Twitter , expliquei em detalhes os negócios de Musk com a Vale e a dependência da Tesla e de todo o setor de veículos elétricos de uma quantidade massiva de “minerais críticos” que colocam a Amazônia e a terra indígena no alvo direto.
Estranhamente a Ceitec não fez parte da pauta oficial da visita de Musk. Embora Fabio Faria tenha convidado, no fim de 2021, o multibilionário afeito a golpes de Estado a abrir uma fábrica de semicondutores no Brasil.
Para Silvio Luis Santos Júnior, presidente da Acceitec (Associação dos Colaboradores da Ceitec) , os anúncios do governo com Musk são puro golpe de marketing, já que não fazem sentido algum, inclusive para o perfil das empresas de Musk. A Tesla, por exemplo, compra pronto os materiais que precisa para montar os carros, e não produz do zero cada item essencial, caso dos chips semicondutores.
Além dos negócios com a Vale, de supostamente monitorar a Amazônia – competência que também não possui – e de entregar acesso à internet em escolas rurais – programa que o Ministério da Educação já tem – Musk tenta abrir uma fábrica da Tesla na Zona Franca de Manaus e conta com a extrema boa vontade e com incentivos fiscais para lá de generosos dos políticos para isso.
“Imaginaram que era só chegar aqui e vender a sucata”
Silvio Luis é engenheiro de manutenção da Ceitec e faz parte do restrito grupo de funcionários da empresa que mantém a fábrica funcionando com todo o trabalho de excelência exigido. Dois terços dos 183 funcionários foram mandados embora pela liquidação. O orçamento restante é apenas para pagar as contas básicas, como água, energia, limpeza.
“O governo tenta nos matar por inanição”, resume Silvio Luis.
A sanha privatista de Salim Mattar, que comandou o processo atropelado de liquidação da Ceitec, esbarrou no Tribunal de Contas da União (TCU).
Em decisão de setembro de 2021 o TCU suspendeu a liquidação da Ceitec, determinando que o Ministério da Economia interrompesse o processo. O motivo foi simples: falta absoluta de justificativas técnicas razoáveis.
“Os motivos que conduziram à liquidação da Ceitec não se sustentam, carecendo de maior fundamentação, pois se apoiaram em análises que não ponderaram relevantes perdas e dispêndios de recursos públicos como consequências imediatas desta linha de ação”, considerou o ministro Vital do Rego.
Existe ainda uma representação do Ministério Público junto ao TCU que indica possíveis “graves irregularidades” na desestatização do Ceitec. De acordo com o documento, o processo atende a “interesses alheios aos interesses públicos e nacionais e por estar sendo conduzido com arbitrariedades e perseguições”.
A liquidação segue suspensa e é pouco provável, mas não impossível, que seja consumada no governo Bolsonaro.
O completo desconhecimento da realidade e a pressa em entregar o setor para os amigos do mercado explicam o “fracasso” da turma que segue a cartilha pinochetista da Escola de Chicago.
As instalações da CEITEC estão longe de ser a sucata imaginada pelos plutocratas que não vivem sem subsídios públicos, caso da Localiza de Salim Mattar.
Em todo o mundo, aliás, é comum que o setor de semicondutores seja bancado por dinheiro público, já que os governos entendem que um setor estratégico como esse precisa de proteção e o investimento mais do que se paga.
Um estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – clube de países ricos que Paulo Guedes tenta entrar – mostrou que o apoio governamental total a 21 grandes empresas globais de semicondutores foi de US$ 50 bilhões de 2014 a 2018. No montante estão incluídos repasses, isenções fiscais e compra de ações com retornos abaixo do mercado. As 3 maiores companhias do setor – Samsung, Intel e TSMC– recebem mais da metade do valor total destinado por governos a indústrias de semicondutores.
É justamente para uma delas, a Samsung, que o Ministério das Comunicações quer entregar parte do setor de semicondutores.
Virtual “economia” com a extinção da Ceitec é irrisória
Segundo defendeu o ministro do TCU Vital do Rêgo em seu voto, a “dissolução da empresa, sob o critério contábil-financeiro, representaria uma economia anual de, aproximadamente, R$ 57,8 milhões ao ano, o que representa menos de 0,7% da dotação atual do Ministério de Ciência e Tecnologia para o exercício de 2021, de R$ 8,62 bilhões”.
O valor é irrisório sob qualquer aspecto que se olhe. Especialmente para uma indústria da importância da Ceitec.
Afinal, estamos falando de um governo que gastou, só com militares, R$ 15 milhões em leite condensado e comprou 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas superfaturadas .
Este governo militar, tocado por militares egressos da ditadura e que vivem a ameaçar a nossa frágil democracia com novos golpes, parece se preocupar pouco com a “soberania nacional”, tema de interesse militar em qualquer país do mundo.
Diante do “Projeto de Nação 2035” lançado por militares essa semana, uma obra de ficção em que expõe as suas taras e abraçam ainda mais a bandeira ultraliberal, é razoável concluir que, se reeleito, este governo da escória da ditadura irá destruir o que restou do Brasil.
Como comparação, em 2020 a União pagou a exorbitante e injustificável quantia de R$ 19,3 bilhões apenas com pensões militares , a maioria para filhas de militares mortos.
Longe de serem incluídos na “Reforma da Previdência”, que penalizou apenas o trabalhador, os militares seguem gozando de inúmeros privilégios.
O orçamento necessário para manter a Ceitec é uma fração da fração do dinheiro que o governo brasileiro torra indevidamente em outras aplicações desnecessárias, para ser generoso.
Liquidação atropelada de indústria essencial não está descartada
Enquanto isso, a Ceitec é a única empresa da América Latina capaz de desenvolver, projetar e fabricar semicondutores de silício – também chamados de chips – em larga escala.
A estrutura fabril da Ceitec, com algumas adaptações, é compatível com a produção de componentes para o 5G.
A página dos funcionários da Ceitec defende que “contar com uma indústria de semicondutores é central para o desenvolvimento econômico do país. Os principais campos de avanço na Quarta Revolução Industrial são inteligência artificial, robótica, Internet das Coisas, veículos autônomos, impressões 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica – e a microeletrônica é horizontal a todos eles”.
Em 2020, segundo a associação, a área de produto, pesquisa e desenvolvimento da estatal alcançou a marca de 13 novos produtos e processos desenvolvidos. No mesmo ano também foram finalizados protótipos de plataformas eletroquímicas (base de sensores para detecção de doenças).
E, mesmo sem ter a finalidade do lucro, a empresa registrou lucro em 2021. Mas o importante, destaca Silvio Luís, é a posição estratégica da empresa no cenário brasileiro e mundial. Algo totalmente ignorado por este governo.
Com o processo de liquidação, a qualificadíssima mão de obra empregada na Ceitec foi demitida sumariamente. A maioria dos trabalhadores, em grande parte com mestrado e doutorado, foi obrigada a se reposicionar no mercado privado fora do Brasil.
Conhecimento e investimento público se transformando, por responsabilidade do governo, em expertise adquirida pronta por empresas privadas.
As complicações de encerrar de forma arbitrária uma indústria complexa como a Ceitec, inclusive do ponto de vista ambiental e os investimentos necessários – R$ 140 milhões – para o descomissionamento da planta com segurança, somado a um ano eleitoral e os blefes do governo Bolsonaro faz com que os funcionários acreditem que a liquidação não se consumará em 2022.
“Ao mesmo tempo se Bolsonaro perceber que de alguma maneira ou outra ele tem condições políticas de executar a Ceitec, eles vão fazer. Precisam de uma autorização do Tribunal de Contas. Se o TCU der essa autorização as coisas podem acontecer de uma maneira errada”, prevê Silvio Luís.
Basta lembrar que, mesmo com críticas do mesmo ministro – Vital do Rego – que suspendeu a liquidação da CEITEC, a privatização da Eletrobras acaba de ser aprovada no TCU por 7 votos a 1. Vital do Rego tem sido voto vencido, e com frequência, mesmo apontando inúmeras falhas nos processos viciados de “desestatização” desse governo ultraliberal.
Procurados para comentar a liquidação da CEITEC, o Ministério da Economia, o Ministério das Comunicações e o Ministério de Ciência e Tecnologia não responderam aos pedidos da reportagem até o momento.
Fonte
O post “Para favorecer Elon Musk e a iniciativa privada, governo Bolsonaro tenta liquidar a Ceitec, única fábrica de chips da América Latina” foi publicado em 26th May 2022 e pode ser visto originalmente diretamente na fonte Observatório da Mineração